Contos inéditos de Proust

Por Christopher Domínguez Michael



 
Há obras depositadas em baús que, mais que fundo duplo, parecem não o ter, como as de Roberto Bolaño, Fernando Pessoa e, em menor escala, Marcel Proust. Passam-se os anos e as décadas enquanto coisas novas continuam a aparecer. Algumas são verdadeiras surpresas, outras rascunhos cuja preservação se deve ao imperdoável descuido de seus autores, que teriam morrido de novo ao ver esboços enganosos dados à publicidade, e outras ainda vêm simplesmente para enriquecer a paixão filológica de indexadores, estudiosos e arquivistas. A esta última parte pertencem a graça dos contos de Proust resgatados por Luc Fraisse — Le Mystérieux Correspondant et autres nouvelles inédites (Editions de Fallois, Paris, 2019) —, que farão deliciar, inclusive eu, todos aqueles para quem a origem, a essência e o resultado de À procura do tempo perdido é uma das maravilhas do mundo.
 
É natural que o que Fraisse compilou vale pouco em si mesmo. São exercícios para aquecer a mão na época em que o jovem Proust preparava Os prazeres e os dias (1896), sua precoce e malsucedida miscelânea, mais mundana do que literária, um livro inadvertido a não ser para os poucos que tinham o filho do Dr. Proust e de mãe judia que se recusou a repudiar a religião de seus ancestrais, por um caso perdido para a literatura. Por um tolo frívolo e pretensioso.
 
Proust tudo tenta e tudo abandona: o conto de fadas, o conto fantástico, o diálogo entre os mortos, os enigmas à imagem e semelhança de Poe ou um diário íntimo. Mas o denominador comum desses esforços os torna interessantes: a homossexualidade, razão pela qual aquele jovem pela paz deixou aqueles esboços. Proust nunca admitiu publicamente ser homossexual, embora o narrador de Sodoma e Gomorra (1922), deliberadamente confundido com o autor da obra — estamos no quarto volume de À procura do tempo perdido — de alguma maneira se coloque em páginas bastante problemáticas, passagens que também André Gide, confidente do escritor em seus últimos anos, achava-as lamentáveis.
 
A querela entre Proust e Gide, aos olhos de um século em que na maioria das democracias os homossexuais conquistaram o direito ao casamento civil, parece arqueológica se esquecermos que até pouco tempo atrás tais circunstâncias eram inimagináveis. Para Proust, a homossexualidade — a dele e alheia — era um vício e um crime do qual se orgulhava. Fazer parte de uma “raça maldita”, a de Sodoma, era formar fileiras numa altiva sociedade secreta presente em toda a árvore social e seus ramos.
 
Essa condição, marginal e perigosa, tornava-o superior ao resto da humanidade vulgar e, nessas mesmas páginas de Sodoma e Gomorra, Proust associa a nobreza perseguida de ser homossexual à de ser judeu. Mas desde muito jovem e contra todos os seus amigos e mesmo arriscando sua urgência para entrar no aristocrático e decadente Faubourg Saint-Germain, Proust foi um dos primeiros defensores do capitão judeu Dreyfus, condenado à Ilha do Diabo por ter sido caluniado como espião alemão. Nesse episódio que deu início à catástrofe antissemita do século XX, foi Proust quem se atreveu a pedir ao então famoso Anatole France a sua assinatura a favor de Dreyfus, que como muitos — também da esquerda — duvidava da inocência do capitão já que o judaísmo aparecia associado ao grande capital.
 
Proust, como Pasolini mais tarde — com outros argumentos, de cunho anticapitalista — teria abominado toda normalização burguesa da homossexualidade. A admissão de sodomitas ou invertidos, como Proust os chamava, no âmbito da boa moral teria parecido inconcebível para ele. Exatamente o oposto, pensava Gide. Embora este último narre suas extravagantes entrevistas sobre o assunto em horas estranhas, com um Proust moribundo, Frederick J. Harris as resume com precisão em Friend and Foe: Marcel Proust and André Gide (UPA, 2002).
 
Gide, assumindo o legado grego a partir de seu corajoso Corydon (1911), considerava que a pederastia — como ele preferia chamar — era normal na natureza e na sociedade, enquanto o heterossexual havia sido “construído” pela educação. Ser homossexual era outra maneira de ser homem. Ele deu o exemplo e não encontrou contradição alguma entre sua homossexualidade aberta e as alegrias da paternidade, as quais viveu e foi o feliz pai de Catherine, filha dele e de Elisabeth Von Rysselberghe.
 
Neste ponto temos que voltar a Le Mystérieux Correspondant onde, mesmo em textos inéditos, Proust não ousa se abrir. Fiel à sua sofrida condição de pertencer àqueles “amigos que não têm amigos”, ele acoberta o assunto recorrendo a Gomorra (terra do lesbianismo, segundo ele), a olhares curiosos e a piscadelas sub-reptícias ou um diálogo que beira o assunto, onde até Renan, no há muito falecido, aparece convocado. A dissimulação de Proust, que se estendeu por toda a vida, irritava Gide, o protestante e teologicamente incapaz de mentir. Muitos amigos de Proust também eram homossexuais, embora o sigilo prevalecesse e não fosse incomum descobrir, com espanto, que um deles também participava da “raça maldita”.
 
Na minha opinião impopular, e corroboro isso lendo Proust antes de Proust, seus personagens não são apenas cavalheiros disfarçados de moças. Nosso novato sabia tudo sobre homens, mulheres e homens-mulheres, como ele os chama em Sodoma e Gomorra. Reduzi-lo a uma perspectiva de gênero é prestar um desserviço a um gênio absoluto capaz de criar, com Albertine ou com Charlus, semideuses que transcendem tanto os desejos íntimos de seu criador quanto a genitalidade de seus leitores. Prova disso, parece-me, é essa pena hesitante que escreveu o que foi publicado como Le Mystérieux Correspondant et autres nouvelles inédites.
 
Voltando àquela “guerra cultural”, é preciso dizer que Gide a venceu. Mas com duas ressalvas. Muito do rancor contra Proust era inveja — sabe-se que na Gallimard o próprio André rejeitou o primeiro volume de À procura do tempo perdido — porque o autor de O imoralista, um livro cuja inocência, hoje, cora, percebeu que Proust — como aconteceria com Bolaño na década passada — surgido do nada ou do desprezo, condenaria toda uma geração de narradores, ao segundo ou terceiro escalão. E atualmente Sodoma e Gomorra é lida como um elogio ao caminho negativo da homossexualidade e não, como temia Gide, como uma deturpação do “terceiro sexo” para aliviar os bem-pensantes. Proust, ao contrário de Gide, nunca foi um moralista. Mutantes como o tempo, a ética e a religião lhe eram indiferentes.
 
E ao resolver o problema na pederastia, Gide errou o alvo. Seus verões à caça de jovenzitos no norte da África com Oscar Wilde, em nossos tempos, provavelmente os levariam à prisão por tráfico humano e violação infantil. Gide não era apenas, nos termos dele e nos nossos, um pederasta, mas também um homossexual que manteve um relacionamento longo e estável com Marc Allégret. Seu parceiro aprovou e gostou da decisão de Gide de engravidar Elisabeth. O assunto ia muito além da memória de Sócrates e seus efebos.
 
Toda a papelaria anterior de Proust ao À procura do tempo perdido, segundo Bernard de Fallois, editor dos inéditos Jean Santeuil e Contra Sainte-Beuve há setenta anos, supostamente esboça incessantemente, obsessivamente, o destino alcançado de recuperar o tempo perdido, isto é, estabelecer uma imagem do mundo que não pode ser transferida para outro ser, como pretendia Leibniz, como conseguiu Proust segundo Fraisse, o primeiro, aliás, dos estudiosos proustianos de nosso tempo. 


* Este texto é a tradução livre para “Cuentos inéditos de Proust”, publicado aqui, em Confabulario.

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