Por José Larraza
Em A rosa púrpura do Cairo
(Woody Allen, 1985), Cecilia (Mia Farrow) se refugia diariamente no cinema para
escapar de um marido violento e de uma vida odiosa durante os anos da grande
depressão americana. Escolhe sonhar e consegue graças ao cinema. O mundo real
tem sido um berçário para Cecilias — não necessariamente tão infelizes quanto a
personagem — cuja vida não se explica sem uma sala de cinema. Muitas ainda continuam
aqui; ninguém iguais a elas reconhece a tristeza destes tempos e a força
balsâmica do cinema. Assim foi uma grande parte de sua vida. É que os filmes de
hoje não são o que eram, o cinema de antes era outra coisa, não há artistas
como aqueles... Muitos de nós crescemos com a mesma cantilena repetida por
mães, tias, avós — domina o gênero feminino — e outras Cecilias em potencial
cujo maior entretenimento sempre foi devorar filmes; de adolescentes nas
lotadas sessões dominicais, jovenzinhas nas exibições paroquiais, equilibradas
nos galinheiros, secretarias que voavam do trabalho para o cinema ou curiosas
nos primeiros cineclubes.
Abriram os olhos com as aventuras
de Carlitos, desfrutaram horrores com Tarzan, choraram com a canção de Manuel
em Marujo intrépido, engoliram saliva com os dramas a Bette Davis — leia-se
todos os nomes próprios literalmente, como toda a vida — e contaram cada dia
que faltava para a estreia nas cidadelas de E o vento levou (1939). Por
um centavo, viram Gary Cooper baleado, apreciaram a nitidez de Katharine
Hepburn, o charme distraído de Cary Grant e o terror que inspirava a governanta
de Rebecca (1940). Colecionaram revistas e cartões postais de suas
estrelas favoritas, admiraram a beleza de Rita Hayworth e ansiavam por Gregory
Peck ou Audrey Hepburn e seu passeio de scooter pelas ruas de Roma.
Enlouqueceram com Brando, Montgomery Clift as fizeram suar frio vestido de
padre, se apaixonaram por Jack Lemmon, reconheceram a Espanha que Berlanga
pintou e amaram a Itália graças a Rossellini, Comencini ou Fellini, cada um em
seu registro.
O mundo se encheu de Cecilias
fascinadas por filmes, pessoas comuns marcadas em mil faroestes, musicais,
dramas e comédias, eruditas sem estudos capazes de cantar filmografias de
coadjuvantes, evocando infinitas cenas em detalhes ou detectando de relance se
havia uma faísca ou não entre os protagonistas. Eram fiéis ao cinema:
reverenciavam o herói e se adaptavam à pele do anti-herói; iam aos cinemas
esperando sempre se divertir e mesmo nos filmes mais fracos encontravam algo aproveitável.
O cinema nunca desiludia e suas fiéis sempre o agradeceram por aquelas duas horas
de imersão noutras vidas e outros mundos. Agora, as exigências são outras e é
melhor que o filme satisfaça o espectador: seja pelo preço da entrada, pela
variedade de oportunidades de lazer e pela pesada herança do próprio cinema.
Woody Allen ambientou A rosa
púrpura do Cairo na década de 1930, então é concebível que Cecilia tenha
morrido alguns anos atrás, como muitas outras Cecilias em carne e osso. Numa
arte tão jovem e numa evolução tão rápida e voraz, o valor destas sobreviventes
é monumental. Apenas elas tecem naturalmente um fio que parte de Meryl Streep e
chega a Bette Davis via Deborah Kerr e Katharine Hepburn ou ilustram a
semelhança de George Clooney com Cary Grant, Burt Lancaster e Rock Hudson enquanto
literalmente costuram uma jaqueta e lembram que em seu tempo também existiram
estrelas que caíram no esquecimento, como quase todas as que hoje aparecem nos
cartazes. A vida dessas Cecilias conseguiu abranger as evoluções de Ford,
Wilder, Kubrick, Coppola ou os Coen, para citar alguns casos; nem perceberam
que têm três quartos da história do cinema atrás de si, como se um especialista
em pintura achasse normal viajar no tempo para contemplar as obras de El Greco,
Velázquez e Goya em suas respectivas épocas, em vez de procurando por eles no
Museu do Prado. Não sei se essas Cecilias merecem um monumento das academias de
cinema, mas quem sabe um estudo ou um documentário que ajude a preservar seu
olhar sobre o cinema e aprender com sua experiência.
Será difícil
que uma arte tão prolífica com cem anos de vida se desfaça, mas agora que cada
vez mais canais apostam no cinema clássico, a garantia de ver um grande filme é
maior. Ou revê-lo: é sempre um prazer reencontrar Este mundo é um hospício,
A costela de Adão ou Testemunha de acusação, embora eu não conheça
prazer maior do que descobrir um novo clássico para mim e verificar que, mais
uma vez, sua mãe e suas tias tinham razão e aquele filme cujo nome você não
lembra a Bette Davis e a Joan Crawford (O que terá acontecido a Baby Jane?)
foi e é maravilhoso. Oxalá nunca faltem filmes e não aconteça o que mais
angustiava o coadjuvante preso em A rosa púrpura do Cairo que implorava
à câmera: “Não, não desliguem o projetor! Não! Se a luz se apagar todos nós
vamos desaparecer. Eles não conseguem entender o que é desaparecer e se tornar
nada”.
* Este texto é a tradução livre de “Cecilia”, publicado aqui, em Jot
Down.
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