Por Wagner
Silva Gomes
Se a tão repetida
referência de intertexto com 2001: uma odisseia no espaço, de Stanley
Kubrick, não tivesse sido usada com tanto impacto, o filme já perderia nessa
cena inicial. O resgate materialista-histórico de que as meninas por muitos
séculos foram mães quando ainda eram meninas e que brincavam de boneca com
seres humanos, até que chegou a Barbie, gigante, empoderada, e as meninas não
quiseram mais as bonecas, isto é, não quiseram mais ser mães na adolescência,
traz mais pertinência para as questões da vida humana e as relações coletivas
do que um chocolate no lugar da placa preta (como o intertexto de A
fantástica fábrica de chocolate, de Tim Burton). E digo mais, um osso
jogado para o alto não é nada perto de uma menina adolescente jogando para o
alto uma boneca que a faria ser mãe antes da vida adulta, já que a boneca é uma
metáfora literal.
A estética do
brincar tem o seu lado de homenagem ao primeiro cinema, dos irmãos Lumière, com
seus objetos gigantes em que o papel do ator era interagir com esses. Talvez
seja esse um dos marcos do brincar. A outra parte da sua estética é a que molda
as ações da Barbie saindo de casa flutuando, comendo sem comer, já que usa o
gesto mímico sem a substância, choca quando a boneca não consegue mais manter o
calcanhar elevado, dobrando a perna.
Daí a o
questionamento da Barbie sobre a sua vida. As não-estereotipias (celulite,
estria, tristeza, torrada queimada no café da manhã) começam a aparecer. Barbie
então é levada à Barbie estranha, que é a referência das Barbies de quem brinca
demais e deixa a boneca estropiada.
Essa Barbie não é
nada menos que uma artista, intelectual, cientista, e sua recomendação é que a
Barbie principal enfrente o mundo real, buscando a pessoa humana que brincou
com ela e que a abandonou depois da vida adulta (aqui é visível o intertexto
com universo Toy Story, prestando uma notável homenagem à essa referência para
o cinema dos bonecos infantis). Essa pessoa por algum motivo buscou novamente a
boneca e isso fez a Barbie se humanizar, por empatia e por querer continuar
perto da sua referência humana.
Barbie parte para
o mundo real e o Ken vai junto. Pra quê? O sujeito, branco, heterossexual, vê
no mundo real o mundo do Ken, dele, já que tudo nesse mundo é feito para os
homens. É ou não é?
Mas esse Ken, que
não tem gabarito para ser mandante, nem profissão para ser um bom trabalhador,
se sente humilhado, e como homem que levará o legado do patriarcado resolve
demonstrar o seu poder no mundo da Barbie, que então passará a ser o mundo do
Ken. Isso acontece ou não nas relações domésticas?
Como são muitos os
Kens, muitos Kens se questionam de quem são (intertexto com o ninguém da
Odisseia de Homero), e esses Kens que se questionam são arregimentados para o
lado da Barbie e das Barbies, ou seja, o lado dos que apoiam a alteridade
feminina por também terem inclinação para demais alteridades (LGBTQIA+, negra,
não binária etc.).
Greta Gerwin,
repare que até agora não falei o nome da diretora, constrói um clássico. Todo
homem deveria ver esse filme. A autora ironiza a banda Metallica como símbolo
de virilidade burra hétero dos que enaltecem a banda sem questionar as questões
masculinas nas letras, já que o logotipo do grupo serve de intertexto para o
nome Ken, escrito no cinto do Ken principal.
A diretora faz
intertexto com Matrix, na cena que os agentes vão atrás do Neo no
trabalho. São os Kens indo atrás da Barbie. E assim como o Neo, que nas
situações incertas várias vezes chega no corredor branco com muitas portas,
Barbie chega num corredor do tipo, e ao abrir uma das tais portas conversa com
a oráculo, a criadora da Barbie.
São vários os
questionamentos da Barbie e o modelo de vida dela é o de “The good place”,
referência estética maior. Recomendo e muito que assistam, o mundo da Barbie
jamais será o mesmo, pois como diz a letra que foi marco para “The good place”
e consequentemente para Barbie, do mestre Bob Marley: “você pensa que está no
céu, mas na verdade você vive no inferno”.
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