Zila Mamede, toda poesia
Por Pedro Fernandes
Zila Mamede. Arquivo particular. |
O livro publicado então pela Editora
Vega ainda é, no âmbito das edições com a obra completa, o trabalho mais
refinado. No cinquentenário de estreia da poeta, publicou-se uma antologia refazendo
a edição antiga com acréscimo de A herança, ao que parece, a
primeira aparição desde 1984. E, em 2023, outra vez se apresenta essa obra. Agora,
em seis títulos separadamente. Mesmo o longo intervalo entre essas publicações,
os dois gestos subsequentes de colocar essa obra em movimento é sempre uma
oportunidade valiosa de apresentar a poesia de Zila Mamede às novas gerações, exercício
essencial à perdurabilidade de qualquer obra. Por mais valiosa que seja uma
obra, sem esse esforço, as chances de esquecimento e mesmo apagamento são muitas,
mais ainda no tempo corrente no famigerado império do contemporâneo.
Agora, quando publicou Navegos
em 1978, Zila Mamede não demonstrava o interesse de meramente encontrar numa
única edição seus livros. A ideia de poesia reunida, poesia completa ou mesmo
toda poesia — como se designa a coleção agora editada —, sempre recorrente
entre os poetas, está fora desse anseio. É muito visível que Navegos constitui
um livro à parte na literatura de Zila. Desde o uso do designativo que enfeixa sua
poética, a maneira como organiza esse livro, invertendo a ordem temporal das publicações,
aos demais atributos, como as dedicatórias; isto é, nada é gratuito numa poeta cabralina
e que sabia bem a qualidade da organização de uma biblioteca.
O detalhe mais preciso é a
presença de “Corpo a corpo”. Tomado agora como um livro entre os livros de Zila
Mamede, esses treze poemas foram concebidos e funcionam como uma seção de Navegos.
São textos que conformam em amplo sentido uma síntese da sua obra — das formas
aos interesses: o reuso de formas poéticas e o diálogo com as formas
circunvizinhas à poesia, a concisão e a distensão, o objeto e a paisagem, o
urbano e o rural, o mimético e o memorialístico, o trivial e o singular, o
luminoso e o melancólico etc. Cada poema funciona como uma via de acesso aos
livros que sucedem, a etiqueta, para continuarmos no campo semântico da
biblioteconomia, que aponta e situa o leitor numa biblioteca.
Outra singularidade em Navegos
e que reforça a ideia de unidade de um livro independente na obra de Zila
Mamede — ou pelo menos de um livro que instaura uma maneira outra de ler sua poética
— são as singelas ilustrações de Paulo Bernardo F. Vaz, da capa ao colofão,
passando por interferências em cada um dos livros-seções e pelas incisões na abertura
ou fechamento dos poemas. O traço fino, elegante, sóbrio, sintético e preciso
do artista ratifica as mesmas qualidades que formam a dicção poética de Zila. E
a noção de manejo da leitura justifica-se no texto concebido como apresentação pelo
poeta Paulo de Tarso Correia de Melo que expõe à maneira de introdução as
qualidades, recorrências, e motivos constitutivos do itinerário e exercício
da poesia mamediana.
A edição de 2003 publicada pela
Editora da UFRN refaz em parte a que foi organizada por Zila Mamede. Preservam-se
os textos do poeta Paulo de Tarso Correia de Melo, as apresentações concebidas
para as edições originais, isto é, o texto de Câmara Cascudo para O arado e
o de Sanderson Negreiros para Exercício da palavra. Sem os adereços, estão
os cinco livros/ seis seções acrescidas de uma nota de Tarcísio Gurgel, orelhas
escritas por José Mindlin e, como referido, o último livro de Zila, A
herança. Ou seja, tentou se preservar o que conhecíamos com alguns
acréscimos saudáveis, ainda que uma edição à parte do livro de 1984 talvez funcionasse
melhor dentro dos propósitos identificados acima. O projeto gráfico de Afonso
Martins evidencia um tema que perpassa toda obra da poeta e se deixa implicar no
uso de navegos: o mar.
Por tudo o que se apresentou até
agora, fica evidente como a reedição da poesia completa de Zila Mamede, outra
vez a cargo da mesma casa editorial do livro de há vinte anos, é problemática.
O que chamaríamos de projeto poético materializado em Navegos é
integralmente desfigurado, a começar pelo apagamento da expressão mamediana que
só aparece numa nota telegráfica na abertura de cada livro. A seção “Corpo a
corpo” aparece como uma obra independente — talvez pela primeira vez desde 1978
— o que não constitui exatamente um problema se se oferecesse uma explicação
convincente amparada no tratamento do arquivo da autora.
A atitude de publicação individual
dos livros de Zila é louvável, numa época extremamente difícil para a poesia
impressa, em que as editoras, mais interessadas no lucro que qualquer coisa,
condensam obras inteiras num único título, sempre uniformizador, ou então dedicam-se
a antologias com seletas de textos mais importantes a gostos muitas vezes
questionáveis. Para um poeta como João Cabral de Melo Neto que concebia o livro
como um objeto indissociável do conteúdo, o nosso tempo é de barbárie. E nesse
mesmo grupo se reúne Zila Mamede. Agora, se fosse o interesse do projeto
editorial em contradizer as leis do mercado, e por uma coerência editorial, o
certo era trazer os quatro primeiros livros seguidos de Navegos e A
herança.
Desconhecemos, entretanto, o valor
dessa individualidade que se apresenta como novidade editorial para o que se
chamou “Coleção Zila, Toda Poesia”; enquanto fere a organização proposta pela
autora para sua obra, refaz a uniformização das antologias, como se a unidade
da obra fosse apenas um título e um conteúdo. Também o projeto gráfico mesmo
encontrando algum eco na poesia mamediana não a identifica. As sobreposições,
as dispersões, os cerzidos, as costuras livres da artista Angela Almeida são a
exata medida contrária do que é a poética de Zila; talvez funcione muito bem
como a deriva semiótica de um poema específico — como “Retrato de minha Mãe costurando”,
poema acrescentado em “Corpo a corpo” —, mas editorialmente não: os sentidos da
imagem em nada convergem com os do verbal.
No mesmo projeto, outros três
pontos de uniformização são problemáticos e defasam o argumento de restauro
da unidade da obra de Zila Mamede: a repetição de um mesmo texto de orelha para
todos os livros; a repetição da referida nota editorial logo à entrada dos
livros quando o recomendável é para o fim do livro — esse texto embora sem qualquer
outro interesse que a informação, numa circunstância de faltar tantas justificativas
para apontar, a começar pelo mercantil “Zila, Toda Poesia”, é dispensável; e o
mesmo arremedo de cronologia biográfica apresentado no final de cada volume. Desfez-se
os princípios básicos de organização do livro.
E se desperdiçou toda uma
mão-de-obra — os professores de Literatura da própria universidade, os vários pesquisadores
de relevância sobre a literatura potiguar e a literatura de Zila, os vários
escritores e leitores — que certamente teria colaborado com um aparato mais
robusto e significativo capaz de garantir a almejada diversidade com a
publicação individualizada dos livros, fosse com textos de orelha ou de
posfácio.
Tudo isso, entretanto, é
justificável. Mas, os vários problemas de revisão e-ou digitação, não. São
alterações miúdas que por vezes introduzem, embora não pareça, problemas mais
amplos. Em alguns casos fere o primeiro sentido do poema. O zelo com o material
literário, sobretudo de um autor que não pode mais opinar sobre, é a primeira
das lições indispensáveis à crítica; supõe-se que inalienável para editores e
revisores. Isso não é preciosismo, é zelo com a obra artística e com a memória
do seu autor. No caso em pauta, existe um agravante: o trabalho em crítica é de
uma editora universitária e a academia é a responsável por educar esse zelo e a
preservação do nosso patrimônio simbólico; educação também se faz pelo exemplo.
É possível encontrar gralhas de outros
tipos, certamente, mas fica o registro de dois casos apanhados aleatoriamente
em duas ocasiões distintas; são situações em que a alteração, proposital ou
descuidada, mexe com a ordem e o funcionamento do sentido do texto,
desvirtuando do propósito fixado pela autora. Veja o que se passa com o poema “Caieiras”
do agora livro Corpo a corpo:
Caieira milavoengas
tijolos: encantação
de caminhos não batidos,
de telha embicada vã,
dos pedregais dos açudes
(sem água), de solidão:
o tempo resumiu tudo
em vida-palavra-chã.
O termo em destaque é, na primeira
edição de Navegos, pedrecais. Existe a palavra pedregais —
é a que o Word sinaliza como correta, é a que está nos dicionários — mas, a
poeta registra pedrecal numa junção original de pedra e cal
ou pedra-cal. Porque numa poética que se interessa pela criação vocabular,
pedrecal tem efeito e arruma-se muito bem com o campo semântico e
imagético do poema. Se do poema alcançamos a experiência antropológica, não
deixamos de reparar na variedade de formas calcárias dispersas no entorno da
caieira ou mesmo o brio estético das propriedades rurais no uso da pedra cal.
No poema, esse embelezamento é melancólico; o apuro estético dos pedrecais e
sua branca alegria contrasta com a seca tristeza designada pelos açudes
sem água, os açudes de solidão. Todo esse sentido se dispersa com pedregal,
que se torna mero adorno descritivo. A edição de 2003 também modifica. Agora, foi
erro tipográfico no livro de 1978? A resposta a ser dada era o editor cotejar
com o original; não existindo, o original é o que está na primeira publicação
de Navegos.
O segundo exemplo é retirado do poema “Um fusca a 120”, de Exercício da palavra, indiretamente citado no referido texto de orelha repetido em cada livro da coleção, texto escrito pela poeta Marize Castro. Na edição vigente, lemos assim:
Fitas
fotos
cores
bandeiras de partir
de curtir
o tempo
no acelerado espaço
das bocas do carburador
O termo sublinhado é nas duas
edições de Navegos, celerado. A alteração muda totalmente a
conjuntura do poema, porque celerado como adjetivo significa malvado,
facinoroso. E essas são qualidades que visam ressaltar complementarmente
o que antes seria contraste entre a máquina e o espaço. Jorge Fernandes é autor
de um poema de apelo semelhante, mas nele, situados que estamos num contexto pré-urbano,
a expressão é de contradição do elemento moderno em ambiente rural. O uso da
palavra acelerado em referência ao espaço destoa do que propõe o poema,
um fusca a 120, e habilita o conflito entre objeto e espaço; desloca o poema de
Zila para um contexto aquém ao da poeta: o do homem em espanto com a
modernidade. Ou seja, abre-se uma fenda que desarmoniza integralmente o poema (ou
pelo menos desarticula seu funcionamento).
E pensar que esse material se
abriu para o mundo, visto que, com os impressos, a editora disponibilizou gratuitamente
todos os livros no formato digital. Quer dizer, o momento é de celebração
melancólica. Celebração pelo reaparecimento de uma obra que não se reeditava há
duas décadas e melancólica pelo modo como se fez isso. De toda maneira,
talvez a obra de Zila tenha dado um passo a mais na sagração, afinal, todos os
grandes autores possuem edições primorosas de seus livros e outras nem tanto. Da
poeta potiguar falta ainda a edição da poesia completa à devida altura.
Notas
1 Diferente do comum, muito do que publicou em jornais, revistas e suplementos culturais não foi aproveitado por Zila Mamede na feitura dos seus livros. Em 2009, Humberto Hermenegildo de Araújo organizou com Maria José Mamede Galvão e Marise Adriana Mamede Galvão um pequeno volume intitulado Exercícios de poesia: textos esparsos e que reuniu entre prosa e poesia, alguns desses poemas, especificamente os publicados no jornal Tribuna do Norte antes de Rosa de pedra.
2 A proximidade de Zila Mamede com
a obra de João Cabral de Melo é singular. Além das trocas poéticas e de
convívio, a bibliotecária organizou um primoroso trabalho desde sempre
necessário à bibliografia crítica de todo pesquisador da obra do poeta
pernambucano: Civil geometria (Nobel, 1987).
tijolos: encantação
de caminhos não batidos,
de telha embicada vã,
dos pedregais dos açudes
(sem água), de solidão:
o tempo resumiu tudo
em vida-palavra-chã.
O segundo exemplo é retirado do poema “Um fusca a 120”, de Exercício da palavra, indiretamente citado no referido texto de orelha repetido em cada livro da coleção, texto escrito pela poeta Marize Castro. Na edição vigente, lemos assim:
fotos
cores
bandeiras de partir
de curtir
o tempo
no acelerado espaço
das bocas do carburador
1 Diferente do comum, muito do que publicou em jornais, revistas e suplementos culturais não foi aproveitado por Zila Mamede na feitura dos seus livros. Em 2009, Humberto Hermenegildo de Araújo organizou com Maria José Mamede Galvão e Marise Adriana Mamede Galvão um pequeno volume intitulado Exercícios de poesia: textos esparsos e que reuniu entre prosa e poesia, alguns desses poemas, especificamente os publicados no jornal Tribuna do Norte antes de Rosa de pedra.
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