Por Mercedes Monmany
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Andrei Kurkov. Foto: Jaime Villanueva |
Numa das múltiplas barreiras de controle
para cruzar as zonas de guerra, entre a Ucrânia e as repúblicas pró-russas
divididas de Donetsk e Luhansk, o bem-humorado e pacífico Sergey Sergeyich, aposentado
e dedicado apicultor, protagonista de
Abelhas cinzentas (2022), de
Andrei Kurkov, é detido por um homem vestido de camuflagem. Sergeyich decidiu
cruzar a linha de frente em direção à Crimeia tártara para salvar suas abelhas
dos bombardeios que também começaram a cair sobre sua aldeia, Starhorodivka,
abandonada por todos e localizada em terra de ninguém, na chamada “zona
cinzenta”, entre uns e outros. “Devo mostrar-lhe o meu passaporte?”, pergunta
ao soldado. “Não é preciso, se eu o reconheci. É que não tenho com quem
conversar”, responde o entediado tipo camuflado.
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Nascido em Leningrado em 1961,
embora tenha vivido em Kiev desde a infância, Andrei Kurkov há muito é o
escritor da Ucrânia com maior projeção internacional, a par do igualmente
singular Yuri Andrukhovych, originário da mui literária ex-austro-húngara
Galiza. A eles se junta o esplêndido autor, uma geração mais jovem, Serhiy
Zhadan (Starobilsk, Luhansk, 1974), autor de
Orfanato, um dos pilares da
literatura ucraniana pós-soviética.
Nenhum desses três importantes
escritores deixou seu país desde o início da invasão russa. Sua resposta foi
continuar escrevendo obras de diversos gêneros, assim como numerosos artigos,
traduzidos para todas as línguas, nos quais explicam ao mundo a brutalidade da
guerra.
“Você já tentou manter o otimismo
durante uma catástrofe ou uma tragédia, durante sangrentas operações militares?”
— pergunta-se Andrei Kurkov em seu
Diário da invasão, de 2022. “Eu
tentei e continuarei a fazê-lo. Sou uma pessoa de etnia russa que sempre viveu
em Kiev. Percebo em minha visão de mundo, em meus comportamentos e em minha
atitude perante a vida um reflexo do mundo e dos comportamentos dos cossacos
ucranianos do século XVI, numa época em que a Ucrânia ainda não fazia parte do
Império Russo, quando a liberdade era mais valiosa para os ucranianos do que
ouro.”
Kurkov, muitas vezes comparado a
Bulgákov, ou ao próprio Gógol, ambos nascidos na Ucrânia ainda no Império
Russo, é autor de obras incessantemente atravessadas por um humor corrosivo e uma
ironia hilariante, com não pouca carga de poesia melancólica e clarividente
infiltrada nas duras histórias com as quais costuma compor sua ficção.
Publicou seu primeiro romance duas
semanas antes da queda da União Soviética, porém começou a escrever muito cedo,
quando aos sete anos dedicou um poema à morte de dois de seus três hamsters,
descrevendo a emoção do que havia ficado sozinho.
Este imaginário literário que é
constituído por indivíduos solitários e vencidos de todas as batalhas, por
amizades indestrutíveis que sobrevivem às grandes tragédias da história, bem
como pela presença quase permanente de animais que fazem companhia a estes
anti-heróis e que se protegem mutuamente até o fim, continuaria como uma
constante em toda a sua obra. Mesmo, por mais impossível que pareça, em tempos
de guerra.
Um imaginário, muitas vezes
próximo do surreal, inserido em atmosferas opressivas, extremamente reais e
sombrias. Evitando os detalhes mais sórdidos, suas histórias narram, como pano
de fundo permanente, a corrupção, a violência, o crime organizado e a
depravação sem lei que surgiram após a queda da União Soviética.
As fábulas e sátiras da vida
social e política de Kurkov, às vezes assumindo tons de um absurdo ao estilo de
Beckett, estão muitas vezes protagonizados por algum tipo de animal contrastando
com a desumanidade e o caos geral. Algo que acontece com seu romance
Abelhas
cinzentas, mas que também esteve muito presente no romance que o lançou
internacionalmente,
A morte e o pinguim (1996). Nele, Viktor, um
jornalista desempregado, que consegue um emprego como editor de obituários
antecipados, decide adotar Misha, um pinguim deprimido, oferecido pelo
zoológico de Kiev, igual a outros animais, dada a falta de recursos para
alimentá-los.
Devido ao imenso sucesso de
público que alcançaria com esta fábula criada em meio à catástrofe da queda da União
Soviética, Kurkov, também autor de trinta roteiros para filmes e documentários,
decidiria criar uma continuação em 2002,
Os pinguins não sentem frio (trad.
livre de
Los pingüinos no tienen frío). Em 2013 publicaria
O
Jardineiro de Ochakov (trad. livre de
The Gardener from Ochakov), um
romance de gênero satírico e fantástico, que navega entre dois tempos, o
passado comunista e o mundo atual, e cuja trama se passa na pequena cidade
portuária de Ochakov, na província de Nicolaiev, no sul, na orla do Mar Negro.
Nele, Igor, um jovem desempregado
que mora com a mãe em uma casa nos arredores de Kiev, encontra um uniforme de
policial da era comunista e decide vesti-lo para ir a uma nostálgica festa à
fantasia retrô, armada com a desculpa para evocar o antigo regime. De repente,
numa súbita viagem no tempo, como a do filme
Adeus Berlim, Igor se
encontra em 1957. Ou seja: com o rublo soviético, o primeiro Sputnik e a figura
onipresente de Nikita Khrushchev.
Sendo um tradutor de japonês e
falando sete línguas estrangeiras, nunca pôs os pés em outro país durante a
época soviética, Kurkov foi destacado para a KGB quando iniciou o serviço
militar; serviu na polícia e como guarda prisional em Odessa, onde escreveria
suas primeiras obras. Experiências todas que lhe serviriam em grande parte para
suas tramas ou thrillers entre o surreal e o policialesco. Seria também a época
em que começaria a criar suas obras infantis.
Seu primeiro livro de ficção publicado
pouco antes da queda da União Soviética foi editado e distribuído por ele mesmo,
em meio àquele cenário tumultuado e desorganizado, de uma forma verdadeiramente
bizarra. Resolveu fazê-lo por meio da autopublicação, pedindo dinheiro a amigos
e conhecidos, com a intenção de criar uma editora independente. Foi enrolado,
mas não desanimou por isso e ele mesmo organizou sua própria distribuição em
toda a Ucrânia, comerciando exemplares nas lojas das principais ruas
comerciais.
Em 2005, após a publicação de seu
romance
O último amor do presidente (trad. livre de
The President’s
Last Love), no qual Putin é um dos personagens principais, o Estado
censurou toda a sua obra. Um ano depois, no entanto, sua punição foi suspensa e
o governo russo concordou que alguns de seus romances (que atualmente somam
cerca de vinte) e seus livros infantojuvenis voltaram a ser impressos. Mas
acabou sendo uma miragem: seus livros deixaram de ser publicados
permanentemente na Rússia em 2008 Após a Revolução Laranja, que Kurkov apoiou e
sobre a qual publicou um
Jornal de Maidan, seu contrato foi rescindido
por seu editor russo por causa de suas declarações públicas sobre a política
russa.
Em sua maravilhosa fábula ou
crônica entre a ironia e amargura, entre o terno e o extremamente incisivo,
sobre a queda da União Soviética na Ucrânia,
A morte com um pinguim, o
leitor se encontra ante realidades em que o extravagante e o inesperado, o
amoral e o corrupto, quase não surpreende mais ninguém. Criando incessantemente
uma lacuna vertiginosa em que o absurdo se torna normal e o sórdido em cômico, numa
cidade como Kiev os empregos mais inusitados podem surgir do nada e da mesma
forma ninguém pode garantir que viverá para contá-los no dia seguinte.
Viktor Zolotaryov, o protagonista
do romance, é um escritor indolente e inseguro, “a meio caminho entre o
jornalismo e a prosa medíocre”. Sua especialidade são os contos, “tão curtos
que não conseguiria viver deles, mesmo que lhe pagassem”. Ele mora na capital
de uma Ucrânia finalmente independente, na qual os métodos e o inegável poder
da máfia local não têm nada a invejar ao que é praticado pelo grande irmão russo.
“Uma época maluca — como se dirá no romance — para ser criança, um país maluco,
uma vida maluca que eu nem queria mais entender, era sobre sobreviver e ponto.”
Nesse momento, Misha aparece na
vida do jornalista desempregado que é Viktor. Quando o zoológico estava
distribuindo animais famintos para quem pudesse alimentá-los, Viktor passou
pelo lugar e voltou para seu apartamento com um pinguim-rei. O que Viktor ainda
não sabia é que ele era um pinguim deprimido, insone e melancólico, que não
parava de suspirar, acometido por uma cardiopatia congênita: “Misha trouxera a
própria solidão e agora o resultado eram duas solidões complementares”.
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Andrei Kurkov. Foto: Jaime Villanueva |
É aí que iniciará um leitmotiv
que se repete em cada um dos romances de Kurkov: duplas de amizades
inicialmente díspares, que se aquecem e se apoiam em meio à desordem e à
anarquia ameaçadora e violenta do exterior. Cada vez que entra em seu apartamento
desolado, Viktor diz para si mesmo: “pelo menos há alguém esperando por mim
neste mundo.” É uma frase que, mais cedo ou mais tarde, os protagonistas
solitários de seus romances repetem, depois de serem recompensados com o
calor de alguma amizade ou companhia inesperada, por mais louca que seja.
Quando já havia desistido de enfrentar
e lutar na vida, Viktor tem a ideia de ir a um jornal sensacionalista, Stolitchnyé
vesti, “que generosamente publicava de tudo, desde receitas culinárias a
críticas teatrais pós-soviéticas”, com a intenção de ver publicado seu último
conto. O retrato de Kurkov do editor-chefe que o cumprimenta, entre sarcástico
e cinismo cansado, é hilário: “Não leve a mal isso, velho amigo, mas é preciso
algo mais sangrento ou uma história de amor tórrido. Meta na cabeça que o
sensacionalismo é a essência do conto jornalístico.”
No entanto, surpreendentemente,
alguns dias depois, o mesmo editor-chefe o chamará para vê-lo, oferecendo-se
até para ser buscado em sua casa por um Lada azul. Pagando generosamente por
cada peça escrita, considerando suas habilidades “de concisão”, Viktor recebe
uma oferta: escrever obituários antecipados. “Algo sucinto, lacônico,
ultramoderno”, como apontará o editor. A partir de recortes de imprensa, terá que
elaborar uma lista “que inclui deputados, bandidos e até pessoas do mundo da
cultura ainda em vida”.
Passado algum tempo, um pouco
desanimado por não ver nenhuma das suas composições vir à tona, “como acontecia
nos tempos soviéticos, quando tudo ia parar num baú”, Viktor reflete com
pessimismo sobre o fato de que “as personalidades se agarrarem à vida; havia
escrito sobre uma centena de figuras importantes e não apenas nenhum morrera,
mas nenhum sequer caíra doente.”
No entanto, após um ano, Viktor vê
seu primeiro obituário ser publicado. Está assinado, como já tinha sido
decidido no jornal, anonimamente, por “um grupo de amigos”. Ele está tão feliz
com a publicação que dificilmente se surpreende com as estranhas circunstâncias
da morte do deputado-escritor sobre o qual havia escrito: caiu de uma janela do
quinto andar enquanto a limpava. Embora “sequer fosse a janela de sua casa e
fosse noite”.
Essa será apenas a primeira das
mortes violentas que terão como protagonistas pessoas que começam a morrer de
forma suspeita, após Viktor ter escrito seus obituários. Seu chefe já o alertara
com um aviso misterioso, quando um jornalista de Kharkiv com quem Viktor tinha
um encontro marcado naquela cidade foi assassinado: “Ele é o sétimo dos nossos
a cair. Mas não se meta com isso! Quanto menos você souber, mais tempo viverá!”
O mensageiro do chefe logo
aparecerá na casa de Viktor com novos dossiês para fazer os respectivos
obituários, em sua maioria militares de alta patente. Um total de vinte
candidatos, com histórias “que combinavam harmoniosamente a nostalgia do regime
soviético com o tráfico de armas”. Havia de tudo e “quanto mais Viktor lia,
mais sinistro era”: desde transportes de imigrantes clandestinos pela fronteira
entre a Ucrânia e a Polônia em helicópteros do Exército até desaparecimentos de
aviões de transporte alugados.
Tudo começou a se complicar quando
um enigmático personagem chamado Misha, como seu pinguim, apareceu um dia na
casa de Viktor, confiando-lhe um obituário para um amigo de infância, “um
fracassado, abandonado pela esposa, doente e sozinho, com o sonho irrealizável
de uma Lincoln Silver.” Estabelecendo algo semelhante a uma incipiente amizade,
entre profissional e a contratual, como todas as relações nos dias de hoje,
devido à solidão em que todos estão imersos, Viktor conta ao misterioso Misha
sobre suas angústias e preocupações por não ver nenhum de seus obituários
publicado. Assim, “o outro Misha”, o humano, com uma confiança cada vez mais
cimentada, não tardará deixar sua filha, Sonia, aos cuidados de Viktor. Uma
garota que rapidamente se apaixona pelo pinguim enfermiço Misha, que dorme em
pé num canto e para quem Viktor prepara banhos de gelo na banheira de seu andar.
No entanto, Misha desaparecerá um
belo dia e uma estranha família, embarcando nas mais delirantes e perigosas
aventuras, de repente se forma: Viktor, a pequena Sonia e o pinguim Misha. Os
três ficarão escondidos por um tempo pelo amigo, o policial de bairro Sergey
Fischbein-Stepanenko, por causa da iminente caçada ordenada contra o autor
involuntário dos mortíferos obituários, flagrado no confronto de dois clãs mafiosos
que dominam o crime e o narcotráfico em Kiev, no imediato período pós-soviético,
ainda não em guerra, mas sobre o qual os jornais não param de noticiar
tiroteios e atentados diariamente.
A essa trupe de seres tão
inocentes quanto vulneráveis, presos acidentalmente em meio a uma alta tensão
ambiental, logo se juntarão Nina, sobrinha do policial Sergey e cuidadora de
Sonia, além do bizarro pinguinologista Pidpaly, que perdeu seu trabalho depois
de fechar o zoológico e que aconselha Viktor sobre tudo relacionado às
necessidades de um pinguim-rei como Misha. Prestes a terminar dezembro, Viktor refletirá
sobre “as coisas estranhas que aquele ano lhe trouxe”. A principal, enfrentar
as novas responsabilidades, algo desconhecido em seres autossuficientes e
solitários: “A solidão dera lugar a uma certa dependência. A inércia de sua
própria vida o havia levado a uma ilha estranha onde recaíram sobre ele
responsabilidades e dinheiro para atendê-las.”
Por sua vez, o cenário minúsculo,
a terra de ninguém abandonada por todos no romance Abelhas cinzentas é
uma pequena cidade na “zona cinzenta”, entre o governo de Kiev e os
separatistas pró-Rússia, no que agora só vivem, se alimentam como podem e
esperam apaticamente não se sabe bem o quê — como Vladimir e Estragon em Esperando
Godot —, dois velhos inimigos de infância, Sergeych e Pashka. Ao longo dos
anos, a guerra e a solidão fizeram com que eles se confraternizassem e
precisassem um do outro.
O primeiro, embora descrente e não
fanático, é pró-ucraniano, e o segundo simpatiza com os “errepedês”, isto é,
com os da autoproclamada República Popular de Donesk, criada em 2014. Uma
noite, o sonhador Sergeych, que a mulher e a filha abandonaram há muito tempo,
como todos os de seu vilarejo quando foram com seus pertences para lugares mais
seguros, e que tem apenas suas abelhas como família e um álbum de memórias que
folheia à noite, decide mudar as placas das duas ruas onde ele e seu
amigo-inimigo Pashka moram. Sua rua, Lênin, deixa para Pashka, e adota a rua
Shevchenko, o grande poeta e pintor ucraniano do século XIX que profetizou a
liberdade da Ucrânia. Na ausência do restante dos vizinhos, o acordo é adotado
por uma maioria composta por ambos. É preciso dizer que Shevchenko, um ícone
popular de resistência à opressão, desconhecido de todos fora da Ucrânia e de
sua diáspora, é a personalidade, por incrível que pareça, que tem mais estátuas
e efígies do mundo, depois de Jesus Cristo.
Para não estressar suas abelhas
com os incessantes bombardeios da região, Sergeych, quando chega a primavera,
decide levá-las para um local mais quente e tranquilo, “onde o ar vai se
enchendo gradativamente com a doçura das ervas em flor”. Assim, elas podem
coletar seu pólen em paz, após um inverno rigoroso em casa, enquanto ele
desfruta dos belos prados cheios de flores e das magníficas montanhas da
Crimeia. Uma missão ou road movie que leva Sergueych a conhecer
combatentes e um bom número de civis dos dois lados da linha de batalha:
“Os dois exércitos, o do errepedê
e o do ucraniano, já estavam atrás dele, assim como o rugido dos bombardeios de
longe e de perto. Abandonava uma guerra da qual não havia participado, da qual
simplesmente acabou residindo por acaso... Se não fosse por elas [as abelhas],
Sergeych não teria ido a lugar nenhum; teria se apiedado de Pashka e não o
teria deixado sozinho.”
Num epilogo emocionante, muito
ilustrativo do que tem sido a via crucis da nação ucraniana desde que “em 2013,
a tentativa falhada de Vladimir Putin de arrancar a Ucrânia da Europa e
incorporá-la à sua ‘família de povos fraternos’ (isto é, à sua versão
ressuscitada da União Soviética) terminou em revolução... esse levante popular
que seria chamado de ‘Euromaidan’”, Kurkov narra o que o levou a escrever seu
romance Abelhas cinzentas:
“Desde o inverno de 2015, menos de
um ano após a anexação da Crimeia pela Rússia e o início do conflito, fiz três
viagens por Donbass, a região oriental de Donetsk, Lugansk e a zona cinzenta. Testemunhei
como o medo da guerra e da possível morte da população gradualmente se
transformou em apatia. Vi como a guerra se tornava a norma, vi as pessoas
tentarem ignorá-la, aprender a conviver com ela como um vizinho bêbado e
turbulento. Tudo isso me marcou profundamente, tão profundamente que decidi
escrever um romance. O livro não se concentraria em operações militares ou
soldados heroicos, mas em pessoas comuns que a guerra não conseguiu expulsar de
suas casas.”
Gente sozinha, defensora tenaz e
fiel de sua casa e de seu pedacinho de terra, como Sergeych e Pashka.
As referências à Europa, a vontade
de conseguir uma união com um espaço comum e duradouro de liberdade e
democracia, a atual mobilização e resistência dos ucranianos a serem invadidos
por uma tirania, por um autocrata como Putin “que quer deixar a marca grandiosa
dos que reconstruíram um Estado Imperial, pelo qual está disposto a destruir o
país vizinho, um país livre”, segundo Kurkov diz em seu Diário da invasão,
vêm de longe.
Em 1956, quando os tanques
soviéticos invadiram Budapeste, o diretor da agência de notícias húngara enviou
uma mensagem desesperada ao mundo, que terminava assim: “Nós morremos pela
Hungria e pela Europa”. Três décadas depois, Milan Kundera abriria seu famoso
ensaio Um Ocidente sequestrado com essa mesma cena. Quer na revolução
húngara de 1956, durante a chamada Primavera de Praga de 1968, quer durante a
revolta polonesa de 1970, vulneráveis “pequenas nações”, encurraladas entre a
Alemanha e a Rússia, proclamaram o seu desejo de Europa, sua vontade de fundar
e salvar “uma Europa arquieuropeia”.
Hoje, a heroica resistência dos
ucranianos inscreve-se nesta história europeia feita de ameaças e sobressaltos,
de entusiasmos e desilusões, em que a história comum fala sobretudo de
sobrevivência. Como insistia Kundera naquele texto, as insurreições europeias,
intimamente ligadas à cultura, “sempre foram preparadas, postas em movimento,
protagonizadas pelo romance, pela poesia, pelo teatro, pelo cinema, pela
historiografia, pelas revistas literárias, por espetáculos cômicos populares”.
Algumas insurreições e um desejo
de liberdade que vinham de longe na história e que Kurkov recuperará outra vez
em seu excelente romance, neste caso ambientado no início do século XX, na
época da Revolução Russa, Samson e Nadejda (2023). Nele, Kurkov dá vida
em seu enredo à primeira e efêmera República da Ucrânia independente, unindo,
como em todas as suas obras, o absurdo com o ordinário, o cômico com o sórdido,
ou ficções realistas e de aspecto histórico com toques fantásticos, à maneira
do grande autor de O Mestre e Margarita, Mikhail Bulgákov.
A emocionante história de Samson e
Nadejda ocorre nos tempos turbulentos após a Revolução de 1917, antes de cair
sob a tirania bolchevique. O Exército Vermelho enfrenta, de um lado, os russos
brancos do general Denikin e, do outro, os partidários de Symon Petliura,
figura distinta do movimento nacional ucraniano e presidente da República
independente.
O protagonista da história é o
jovem estudante Samson Koletchko, que acaba de perder o pai e também uma
orelha, cortada por um sabre cossaco, assim que o romance começa. Alistado no
Exército e acidentalmente tornado o chefe da polícia soviética, Samson se depara
com seu primeiro e misterioso caso, enquanto guerra civil, pilhagens,
assassinatos, caos e saques continuam em Kiev. Uma cidade, Kiev, pela qual
Kurkov, apesar de ter nascido em São Petersburgo, sente uma verdadeira paixão e
se tornou seu cenário literário favorito, em vários de seus romances, como A
morte e o pinguim e o mais recente.
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Notas da tradução:
1 A tradução referida é a portuguesa,
de Célia Correia Loureiro, editada pela Porto Editora (2022). Os excertos deste
ou de outros livros citados ao longo do texto são a partir do espanhol.
* Este texto é a tradução livre de
“Tres grandes escritores ucranianos de hoy”, publicado inicialmente em El
Cultural.
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