“Enquanto fazia
Paris, Texas
foi quando senti uma espécie de revelação. Percebi que a história é como um rio
e que se alguém ousasse navegar por ele e confiasse no rio, o barco seria
arrastado para algo mágico. Até então, sempre havia lutado contra a corrente.
Eu tinha ficado num pequeno charco à beira do rio, porque me faltava confiança.
Nesse filme em particular, percebi que as histórias estão aí, que existem sem
nós. Na verdade, não há necessidade de criá-las, porque o homem as traz à vida.
Basta deixar-se levar”, responde Wim Wenders a Laurent Tirard em
Grandes
diretores de cinema (Nova Fronteira, 2006).¹ No filme de Wenders e roteiro
de Sam Shepard, rodado há quarenta anos, esse rio se transforma em uma paisagem
desértica, árida e vasta, onde a única coisa que não varia ou muda é o
horizonte, sempre presente. Embora Walt (Dean Stockwell) garanta a Travis (Harry
Dean Stanton) que não há nada ali, o espectador sabe que ele está equivocado.
Sim existe. Há um rosto, um corpo, uma mulher, que é quem ele procura e não deixará
de caminhar até encontrá-la. Até lhe devolver o que lhe pertence e lhe tirou:
um passado transformado em herança.
As palavras quase não são
necessárias neste filme, e talvez por isso o essencial seja difícil de
pronunciar porque acreditamos que, caso contrário, ao expressá-lo, perderá todo
o sentido. O conceito como tal evaporará. E é que quando nos pronunciamos, às
vezes, abrigamos o temor de que a intenção do nosso discurso não seja adequada
e, portanto, nossas palavras, mal interpretadas. Ao falar, ao expressar, às
vezes, forçamos as situações, a tomada de decisões e as ações. Por outro lado,
quando nos calamos, como faz Travis, o andarilho, o peregrino, o observador
solitário, deixamo-nos levar sem perturbar ou modificar o que está
estabelecido. Calar implica silenciar o ruído externo para prestar atenção ao
que realmente sentimos. Como nos sentimos, o que sentimos Em
Paris, Texas,
não precisamos que nos contem a história porque a imagem poderosa e, mais
importante, seus personagens nos arrastam para ela. Como seu pano de fundo,
existia muito antes de nós, espectadores, chegarmos e nos sentarmos para
assistir. Mas uma vez que entramos, uma vez que Travis aparece, o Ulisses
diante de uma Ítaca — sua Paris..., Texas, como seu pai gostava de dizer, com
uma pitada de suspense — desabitada e erma, vazia, igual a ele, já que não
carrega ou não precisa de nada e os seus pertences mal se reduzem a uma
carteira um tanto roída e a algumas fotografias que não perdeu nem quer perder,
só nos podemos deixar guiar.
O velho Ulisses amnésico, com cara
de cachorro abandonado e sem dono, anda despojado da memória de Penélope e
Telêmaco e, ao contrário do mito e de seu herói, esse anti-herói estadunidense
dificilmente encontra obstáculos, ciclopes ou cantos de sereia; com provas que
desafiem a sua fidelidade e compromisso com uma família que formou quase sem se
aperceber e, tão depressa como esta foi criada, a mera ideia, idílica, vista em
perspectiva, desvaneceu-se explodindo em mil pedaços porque nenhum dos seus
membros era para o trabalho de mantê-la. Precisamente porque os dois
responsáveis não eram capazes de assumir o problema que acabava de se
apresentar e a única resolução — ou saída — era aceitar o rumo que as suas
vidas iriam tomar. E embora possa parecer à primeira vista, esta não é a
história de um mito, mas uma história que bem poderia ser interpretada como
real e verdadeira porque imita a vida e a vida a imita.
Quantas vezes não quisemos começar
a perambular, desaparecer, quando as coisas deram errado? Quantas vezes não
quisemos caminhar pelo simples fato de caminhar, de não pensar, de esquecer?
Quantas vezes não acreditamos que poderíamos fugir do passado, evitando assim
possíveis consequências, e foi o problema que nos encontrou, e nos prendeu
fazendo-nos seus, violando nossa memória e nossa alma, apropriando-se delas
como se nada tivesse acontecido? É exatamente o que acontece em Paris, Texas,
usando —para cumprir sua missão— a eterna luta que mantemos conosco e com nosso
orgulho. Convencidos de que derrotamos o grande inimigo, que é esse passado;
convencidos de que, fugindo, o derrubamos e terminamos com ele... de repente,
esse passado se faz carne e se apresenta diante de nós quando menos esperamos
que nos diga, não sem certo sarcasmo: ainda não terminei com você.
E nesse caso, o passado tem
primeiro o rosto de Walt, depois o de Anne (Aurore Clément), o de Hunter
(Hunter Carson) e por fim o de Jane (Nastassja Kinski). Porém, em determinados
momentos, o passado também assume a forma de um objeto que serve de escudo,
espelho, transparência ou cristal, quando um dos personagens apaga a luz para
que outro veja ou intua o rosto de quem se esconde por trás. Talvez seja por
isso que espelhos e miragens são os verdadeiros inimigos de Travis, e seus
desafios, longe de serem os físicos do protagonista de Homer, são puramente
emocionais. Aqueles que, a longo prazo, se revelam da pior espécie. Curá-los
pode levar anos, mas cicatrizá-los, uma vida inteira.
“Eu não soube ver quanta raiva
existia em mim”, diz Travis. Quanta raiva cabe na alma do homem? Quantos
ciúmes, dúvidas e medos podem fazer de um homem carrasco ou prisioneiro de si
mesmo? Por medo de se autodestruir e destruir o que conhecia, inclusive as
pessoas com quem convivia, Travis toma a decisão de se isolar e desaparecer por
quatro anos, ciente do abismo que habita tanto ele quanto os demais. O que
lembra aquele poema que Baudelaire escreveu em
As flores do mal e intitulou
“O homem e o mar”:
Homem livre, hás de sempre
estremecer o mar!
O mar é teu espelho, e assim tu’alma sondas
Nesse desenrolar das infinitas ondas,
Pois também és um golfo amargo e singular.
Apraz-te mergulhar ao fundo de tua
imagem!
Nos braços e no olhar a tens; teu coração
Às vezes se distrai da interna agitação
Ouvindo a sua queixa indômita e selvagem.
Sempre fostes os dois reservados e
tredos:
Homem — ninguém sondou as tuas profundezas;
Mar — ninguém te conhece as íntimas riquezas;
Tão zelosos que sois de guardar tais segredos.
Já séculos se vão, contudo,
inumeráveis
Em que lutais sem dó um combate de fortes;
E como vós amais os massacres e as mortes,
Ó eternos rivais, ó irmãos implacáveis!²
Aí está de novo o reflexo de que
todos fugimos sem sucesso, pois não podemos escapar à imagem que insiste em nos
devolver, e é do conhecimento de todos que os mares e os desertos escondem os
seus segredos como nós o fazemos para nos proteger e proteger aos outros,
separando-nos deles, distanciando-nos, colocando-nos à margem do que possam
encontrar e, ao mesmo tempo, assustando-os. Assim nos tornamos habitantes das
areias, sonâmbulos da escuridão. Assim é Travis, o homem livre que chora em
silêncio, sem gemer; assim são muitos outros que encontramos nele uma fonte
comum de identificação: errantes que vagam pelo vasto mundo sem bagagem porque
não precisamos dela e porque, por outro lado, aceitamos a solidão evitando
assim sentir um pico de solidão. “Estive tão isolado que não consegui recuperar-me
e agora tenho medo. Tenho medo de sumir de novo. Tenho medo do que posso
descobrir. Mas tenho ainda mais medo de não enfrentar esse medo”, diz Hunter.
Talvez por isso viver seja também aceitar a incerteza e a verdade dita do outro
lado do espelho ou do telefone.
Porém, antes de partir sem olhar
para trás, o velho Ulises não volta para ficar, mas para fazer o que é certo,
para ser o intermediário e o conciliador, o elo que unifica e dá sentido ao
tecido oral que Penélope teceu na solidão — longe de amor e o fruto que esse
amor deu —, quando imaginava longas conversas a sós e a todas as horas com a
voz de alguém que lhe incutia coragem suficiente para transformar a mais pequena
coisa numa verdadeira aventura: a sua, a que ambos viveram; a única odisseia
que valeu a pena. Além disso, esta Penélope moderna chamada Jane, que teve
tantos pretendentes quanto a grega, também permaneceu fiel. Fiel a essa voz grave,
suave e familiar que pensava ouvir de todos os outros, sabendo que nenhum
deles, por mais que quisesse, era ele. E só ele é responsável pela reparação
dos danos e sofrimentos causados; pôr fim a uma história que deve terminar para
que outra comece de um novo ponto de partida e ambos possam virar as costas e
derrotar definitivamente o passado congelando a memória em uma fita caseira ou
em uma fotografia.
Cabe a Travis e Jane recuperar a
confiança em si mesmos e em seu destino, mas cabe apenas a Travis deixar ir,
voltar para a estrada e finalmente admitir que alguns homens nasceram para
serem livres; belos cavalheiros da noite sem bússola, fim ou paradeiro.
Belo cavalheiro que partis para a
guerra
o que vais fazer
tão longe daqui?
Não vês que a noite é profunda
e que o mundo
é apenas insônia?
Cantam os primeiros versos da “Chanson
de Barberine” escrita por Alfred de Musset. Que cada um, portanto, seja Travis
ou Jane, Ulisses ou Penélope, bela dama ou belo cavalheiro, tenha a coragem de
partir para sua própria guerra, não importa quão profunda seja a noite, seus
medos ou insônia.
Notas da tradução
1 Apesar da referência brasileira,
a tradução citada neste texto é a do texto em língua espanhola.
2 A tradução do poema aqui
apresentada é de Ivo Barroso disponível em
Charles Baudelaire: Poesia e
Prosa (Nova Aguilar, 1995).
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