Orhan Pamuk: a escrita oral
Por Alberto Hernando
Orhan Pamuk. Foto: Alvaro Canovas |
No último caso, felizmente, ajudado pela pressão da
imprensa ocidental, após ouvir o processo judicial, Pamuk seria absolvido
(assim como Elif Shafak, também processada por motivos semelhantes). A
perseguição política ao escritor turco — onde coincidiam militares laicos,
fundamentalistas islâmicos, um setor da imprensa conservadora e numerosos
escritores nacionalistas — rendeu-lhe o Prêmio da Paz dos Livreiros
Alemães, galardão que sem dúvida contribui abrindo os caminhos para o Nobel, que fez sua
candidatura prevalecer sobre a de outros escritores eminentes então cotados, como Mario Vargas
Llosa, Amós Oz, Adonis, Milan Kundera, Assia Djebar ou Doris Lessing.
No
entanto, e estritamente falando, o reconhecimento dos méritos literários de Orhan Pamuk não é determinado por esse incidente extraliterário. A merecida reputação
de excelente escritor foi um processo gradual: seu primeiro romance, Cevdet Bey
ve oğulları (trad. livre O Senhor Cevdet e seus filhos,1982), foi distinguido em seu país com o prêmio da imprensa
Milliyet e com o Orhan Kemal; A casa do silêncio (1983) foi galardoado
na sua versão francesa editada pela Gallimard, em 1988, com o Prix de la Découverte
Européenne; ao publicar O castelo branco (1985), recebeu inúmeros
elogios da crítica, especialmente de John Updike, e O livro negro (1990)
foi um impressionante sucesso de vendas sem os conhecidos truques de marketing e foi
traduzido para vários idiomas. Além dos títulos mencionados, vários outros se sucedem: A vida nova (1994), Outras cores (1999), Neve
(2002), Istambul (2003), O museu da inocência (2008)...
No meu entendimento, os dois
romances que formam o cerne da obra de Pamuk são O livro negro e Meu
nome é vermelho. Ambos se estruturam por uma arquitetura narrativa concebida
como um arquétipo que permite misturar diferentes gêneros literários — desde
romances policiais a romances históricos – e refinar vários elementos: uma
intriga a ser desvendada e que envolve um assassinato; uma relação amorosa
(fadada ao fracasso ou que desperta desejo exacerbado); uma polifonia que
explica o assunto a partir de diferentes perspectivas; a inserção de
referências históricas ou culturais (textos e autores místicos ou filosóficos,
tradições pictóricas, lendas, clássicos da literatura oriental, marcos
históricos...) e, finalmente, a localização da ação em espaços reconhecíveis
(especialmente Istambul).
Em toda essa rede ressoam os ecos dos antigos
contadores de histórias orais. Esta construção narrativa bem premeditada e
desenvolvida (não é à toa que Pamuk estudou arquitetura técnica, embora
posteriormente tenha se formado em jornalismo), em que a voz se materializa em
palavras, aproxima-se da tradição d’As mil e uma noites, onde um
história leva a outra e todas juntas formam um único corpo narrativo. Isso
favoreceu Pamuk a ser descrito como um híbrido entre Faulkner e Scheherazade;
embora, sabendo essa qualificação, o escritor apontasse que sua escrita deve mais
à beleza nabokoviana e aos jogos simétricos de Jorge Luis Borges.
Da mesma forma, uma característica
que distingue Pamuk é a embalagem culta com a qual nutre seus romances. Se em O
livro negro encontramos inúmeras referências a Ibn Arabi, El-Attar, Ibn
Sean, Mewlâna, Al-Kindi ou Chij Galip; em Meu nome é vermelho há muitas
citações sobre Fuzuli, Behzat, İbn Şâkir, Ferdowsi, Rasidüddini Kazvini ou Haydar
Duglar. Da mesma forma, enquanto em O livro negro é feita referência às ordens dos Hurufis e dos Bektashis, em Meu nome é vermelho o
assassino pertence aos Derviches Kalenderis. Estas referências aos clássicos islâmicos, pertinentes e sem exageros, não são um exercício trivial. Pamuk
destaca a rica tradição cultural islâmica — que o Ocidente geralmente ignora ou
negligencia — para mostrar as diferenças imensuráveis entre as duas
civilizações, bem como seus lugares de encontro e mistura (Coca-Cola versus
Kokoretsi).
O restante de seus romances gira
em torno de temas constantes: a memória (relato da vida de seus personagens
fictícios combinado com a influência do passado no presente; é o caso de A
casa do silêncio, onde uma viúva, de sua mansão às margens do Mar de
Mármara, evoca memórias lancinantes do infeliz destino de sua família); a
inquietação causada pela tensão entre a tradição cultural do Oriente e a do
Ocidente; a ambivalência entre um sentimento de decadência (hüzün ou
amargura por um passado irrecuperável) e um anseio de regeneração; o embate
entre a identidade (a cultura otomana) e a atração, semeada de dúvidas, pela
modernidade (os imaginários do Ocidente); a luta entre secularismo e
religiosidade (mostrada, dramaticamente, em Neve); a dupla ou
reversibilidade de personagens antagônicos (o personagem de Galip
personificando Celal em O livro negro; o astrônomo turco Münedjimmabachï
e o conde veneziano Marsigli, ambos fascinados pelo progresso técnico na arte
militar, mudando de lado cultural na narrativa de O castelo branco...).
E, como último elemento relevante da panóplia temática de Pamuk, a busca incessante (por amor, conhecimento, revelar um arcano ou significado e identidade turca...) que em A vida nova constitui a centralidade da narrativa. A propósito deste romance, gostaria de assinalar um detalhe que oferece uma ligação natural entre a renovação romanesca de Pamuk e a tradição literária turca: A vida nova foi traduzido na França para a Gallimard por Münevver Andaç, companheira do poeta Nâzım Hikmet quando este precisou se exilar da Turquia para Moscou. Andaç morreria em Paris em 1988 poucos dias depois de terminar a tradução. Em que consiste essa modernização do romance promovida por Pamuk? O que o torna diferente de outros escritores turcos contemporâneos seus (Pinar Kür, Emine Sevgi Özdamar, Faruk Ulay, Yaşar Kemal…)? Sem dúvida uma louvável aspiração: que as atuais letras turcas sejam, como a ponte sobre o Bósforo que une a Ásia e a Europa, o elo entre o melhor da tradição islâmica e o melhor da racionalidade progressista do Ocidente.
E, como último elemento relevante da panóplia temática de Pamuk, a busca incessante (por amor, conhecimento, revelar um arcano ou significado e identidade turca...) que em A vida nova constitui a centralidade da narrativa. A propósito deste romance, gostaria de assinalar um detalhe que oferece uma ligação natural entre a renovação romanesca de Pamuk e a tradição literária turca: A vida nova foi traduzido na França para a Gallimard por Münevver Andaç, companheira do poeta Nâzım Hikmet quando este precisou se exilar da Turquia para Moscou. Andaç morreria em Paris em 1988 poucos dias depois de terminar a tradução. Em que consiste essa modernização do romance promovida por Pamuk? O que o torna diferente de outros escritores turcos contemporâneos seus (Pinar Kür, Emine Sevgi Özdamar, Faruk Ulay, Yaşar Kemal…)? Sem dúvida uma louvável aspiração: que as atuais letras turcas sejam, como a ponte sobre o Bósforo que une a Ásia e a Europa, o elo entre o melhor da tradição islâmica e o melhor da racionalidade progressista do Ocidente.
* Esta é a tradução
livre para “Orhan Pamuk: la escritura oral”, texto que foi publicado
inicialmente aqui, em Letras Libres.
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