Nota sobre Sontag: O que ela queria para mulheres*

Por Merve Emre

Susan Sontag. Foto: Diane Arbus


 
Uma certa preocupação cerca a crítica que pediu para introduzir um volume de escritos anteriores de Susan Sontag sobre mulheres, temendo encontrar neles ideias expressas de um passado distante, e menos iluminado. Mas os ensaios e as entrevistas em On Women,1 uma nova coleção de trabalhos de Sontag, são incapazes de envelhecerem mal. Embora os excertos tenham cerca de 50 anos, o efeito de ler eles hoje é admirar a atemporalidade de sua genialidade. Eles não contêm ideias prontas, nem retóricas emprestadas — nada que se arrisque em solidificar-se em um dogma ou clichê. Eles oferecem a nós o espetáculo de uma intelectualidade feroz que se dedica para a tarefa que têm em mãos: articular a política e a estética de ser uma mulher nos Estado Unidos, na América, e no mundo.
 
O glamour singular de Susan lhe causou alguma injustiça, particularmente onde questões de sexo e gênero estão envolvidas. Desconfiados de sua fama, e convencidos de que seu sucesso a tornou isenta às dificuldades das mulheres comuns, os críticos dela tem caracterizado sua relação com o segundo sexo como inconstante no melhor dos casos, e infiel no pior. Considere a carta da poeta Adrienne Rich para o The New York Review of Books1, contestando o ensaio de 1975 de Sontag sobre Leni Riefenstahl, “Fascismo fascinante” (contido na coleção Sob o signo de Saturno). Ao rejeitar a sugestão de que feministas tinham alguma responsabilidade em tornar os filmes de Riefenstahl em monumentos culturais, Rich observou a “crítica constante das feministas radicais às mulheres bem-sucedidas que se identificam com o estilo masculino, sejam elas artistas, executivas, psiquiatras, Marxistas, políticas ou acadêmicas”. Não foi ocasionalmente, Rich insinuou, que valores “identificados com o masculino” foram incorporados não somente por Riefenstahl, mas por Sontag. Os fenômenos que Sontag desenhou para sua escrita — a metamorfose de pessoas em objetos, o apagamento de sua personalidade pelo estilo, a busca da perfeição através da dominação e submissão — foram pintados com a mesma abordagem ampla do patriarcado, acusando a crítica atraída por eles.
 
É verdade que ela não se aliou completamente ao movimento radical feminino. Em seu diário, ela questionou a sua “política retórica herdada (a do gauchismo)” e sua rejeição do intelecto como “burguesa, falocêntrica, repressiva”. “Como todas as verdades de lição moral, o feminismo é um pouco ingênuo”, ela escreveu em resposta à Rich. Contudo, ao menos que concordemos com um teste moralizador decisivo do que significa ser feminista, deveríamos permanecer céticos com a ideia que, como Rich coloca, os escritos de Sontag sobre mulheres eram mais “um exercício intelectual” do que “a expressão de uma realidade sentida”. Em uma anotação no diário de 1972, Sontag observou que “mulheres” era um dos três temas que ela estudou em toda sua vida (os outros dois foram “China” e “aberrações”). E foi nos anos 70 que o assunto passou a ocupar o centro de sua escrita.
 
A explicação histórica é suficientemente simples. O período de 1968 a 1973 foi o mais visível publicamente para o movimento das mulheres nos Estados Unidos, anos que aparecem agora para nós em uma sequência energética de dissoluções cinematográficas: mulheres queimando sutiãs; mulheres marchando nas ruas e balançando em vigílias à luz de velas; mulheres distribuindo folhetos mimeografados com tópicos para a conscientização, incluindo salário igualitários, violência doméstica, trabalho doméstico, cuidado de crianças, e o direito ao aborto; mulheres folheando cópias de O Segundo Sexo, A Mística Feminina e Política Sexual. Quase todas as mulheres ensaístas notáveis opinaram sobre o movimento, muitas vezes assumindo um tom de ceticismo frio, desdenhoso em relação aos objetivos e princípios do movimento. Atualmente, lê-se ensaios como o curiosamente disperso “Women Re Women” de Elizabeth Hardwick ou o surpreendentemente superficial “The Women’s Movement” de Joan Didion com uma sensação vaga de desconforto — ou, simplesmente, de confusão na falta de empatia de suas autoras e de interesse delas nas condições que afetaram suas vidas tão profundamente quanto as vidas das mulheres a quem elas condescenderam tão livremente.
 
Em contraste, os ensaios e entrevistas de Sontag eram fortes, solidários, extremamente verdadeiros, e abrangentes em sua imaginação do que a mulher é ou poderia ser. Em um mundo diferente, On Women seria a coleção que apareceu entre A vontade radical (1969) e Sob o signo de Saturno (1980)4. O trabalho reunido representa metade de uma década esquecida da escrita da autora, boa parte dos textos desenvolvidos entre a viagem para o Vietnã, em 1968, e o primeiro diagnóstico de câncer, em 1975. Ao ler o livro, reconhece-se que suas partes foram delimitadas pela morte — que toda noção de mulheres de Sontag era dominada e assombrada por uma consciência de mortalidade. “Pensando na minha própria morte outro dia, como comumente faço, fiz uma descoberta”, escreveu em seu diário, em 1974. “Eu percebi que minha maneira de pensar tem sido tanto muito abstrata como muito concreta. Muito abstrata: morte. Muito concreta: eu. Pois lá havia um meio termo, abstrato e concreto ao mesmo tempo: mulheres. Eu sou uma mulher. E desse modo, todo um universo novo de morte surgiu diante dos meus olhos.” O pesadelo da morte estimulou ela a reconsiderar sua relação entre o individual e o coletivo, entre uma mulher solitária e as mulheres como uma categoria histórica. E ela fez isso em um estilo que estava mais contido do que a beleza contundente e extravagante de seus ensaios anteriores, como se falar sobre mulheres como um todo exigisse dela, em parte, apagar seu eu excepcional.
 
Nos ensaios do livro, a morte assume disfarces estranhos. Apenas raramente aparece em formas horríveis de estupro, assassinato e escravidão, como ela imaginava em seu diário (uma entrada tentadora contém notas para um ensaio, nunca escrito, que ela queria intitular de “On Women Dying” ou “How Women Die”). Algumas vezes, como em “The Third World of Women”, sua entrevista extraordinária de 1972 com a revista de esquerda Libre, a morte era a vontade da autoaniquilação de toda uma ordem global, cuja ideologia do crescimento ilimitada andava de mãos dadas com “níveis cada vez maiores de produtividade e consumo; a canibalização ilimitada do meio ambiente”. Mulheres e homens estavam igualmente iludidos por esse desejo de acumulação — mas mulheres eram, para além disso, ainda oprimidas pela instituição da família nuclear, “uma prisão da repressão sexual, um campo de jogo de rigor moral inconsistente, um museu de possessividade, uma fábrica de produzir culpa, e uma escola de egoísmo”. O fato de que a família era também origem de valores aparentemente não alienados (“cordialidade, confiança, diálogo, não competitividade, lealdade, espontaneidade, prazer sexual, diversão”) apenas aumentava seu poder.
 
Ao articular esse diagnóstico duplo, Sontag foi atenciosa em distanciar-se da retórica das feministas socialistas e marxistas da época; há, durante essa entrevista, uma notável aversão ao radicalismo político, e uma convicção profunda de que o trabalho possa ser uma fonte de orgulho, afirmação e distinção. Todavia, ela também entendeu, assim como as feministas, que a integridade da família dependia da exploração do trabalho doméstico e indesejado das mulheres. “Mulheres que adquiriram liberdade para sair para ‘o mundo’, mas ainda têm a responsabilidade de ir ao supermercado, cozinhar, limpar, e, o cuidar das crianças quando elas voltam do trabalho simplesmente duplicou seu trabalho”, ela insistia. A libertação da morte pela vida exigia uma revolução que poderia derrubar os hábitos morais autoritários que mantinham intactos a divisão das tarefas — homens no trabalho, mulheres em casa.
 
Muitas vezes, entretanto, a morte aparece nesses ensaios como a erosão lenta de um senso de si mesma, a contração dolorida das possibilidades da vida. Sontag descreveu isso claramente em “The Double Standard of Aging”: “Envelhecer é, sobretudo, um sofrimento da imaginação — uma doença moral, uma patologia social — que intrinsecamente afeta mulheres mais do que os homens.” Dia após dia, o horizonte de uma pessoa escurecia e recuava. O corpo começava a apresentar sinais de diminuição, expostos como um traidor da visão de um eu firme e sem rugas que foi forjado na juventude. Ainda assim, a própria visão era uma traição para mulheres. “Beleza, o negócio das mulheres nessa sociedade, é o teatro de sua escravidão”, escreveu. “Apenas um único padrão de beleza feminina é autorizado: a jovem garota”. Mulheres não eram permitidas a mudar, não eram autorizadas a abandonar sua inocência e submissão suaves em favor da sabedoria, competência, força e ambição. Os ensaios em On Women deixam claro que, para a autora, a opressão para com as mulheres apresentava um problema estético e narrativo, bem como político e econômico.
 
A beleza apresenta um problema para o feminismo? Talvez a melhor pergunta é: A beleza apresenta um problema para como as mulheres imaginam seu futuro? O que significa ser libertada das imagens convencionais de beleza, de suas histórias prontas? É sempre um pouco constrangedor para uma mulher bonita escrever sobre sua beleza física, pois ela deve servir como sujeito e objeto de seus julgamentos. Porém, é também constrangedor, se não mais, para ela admitir que sua beleza começou a desaparecer: que a beleza agora não define ela por sua presença surpreendente, mas por sua ausência. Sontag tinha trinta e nove anos, quase chegando aos quarenta, quando escreveu “The Double Standard of Aging” — um dos poucos detalhes pessoais que ela revela ao longo de On Women. Ela já estava em seus recentes quarenta anos quando escreveu dois ensaios pequenos sobre beleza: “A Woman’s Beauty: Put Down or Power Source?” e “Beauty: How Will It Change Next?”3. “Para ser clara, beleza é uma forma de poder. E merecidamente”, escreveu ela. No entanto, era um poder que sempre foi concebido em relação ao homem: “não o poder do que fazer, mas o poder de seduzir”. Nesse sentido, era um poder que se negava a si mesmo. Ele não poderia ser “escolhido livremente”, tampouco “renunciado sem censura social”.
 
Em sua busca para colocar as mulheres em uma relação mais fresca e empoderada com a beleza, Sontag foi auxiliada por sua desconfiança de longa data com a beleza como um todo, como um julgamento das pessoas, da arte e da experiência. Foi uma suspeita que ela primeiro manifestou formalmente em “Notas sobre o ‘Camp’”5, no qual insinuou que a aliança estabelecida entre beleza e civilização em massa havia autorizado uma certa previsibilidade de gosto. Em On Women, essa aliança assegurou a opressão das mulheres ao mantê-las presas a padrões de autoapresentação que são ao mesmo tempo muito flexíveis, rápidos em tornar essencial os caprichos do mercado e seus valores estéticos, e muito rígidos, incapazes de reconhecer aqueles que eram velhos, barulhos, feios, não femininos ou com deficiência. Como Sontag argumentou, se a beleza havia sido “simplificada para sustentar a mitologia do ‘feminino’”, então uma definição mais chocante e perdoada da beleza exigia que ela fosse dessexualizada violentamente. A beleza não estaria mais sujeita à aprovação dos homens; ela apropriaria o masculino para fazer o que as mulheres desejam deles.



Camp é o nervo oculto percorrendo os novos ensaios reunidos. Inicialmente concebidos como apolíticos, eles emergem na obra como a sensibilidade privilegiada de uma política de liberação feminista. Se camp significa ir contra a natureza do próprio sexo ao se engajar em sua “paródia robusta, estridente e vulgar” de gênero, como a autora descreveu em sua entrevista com Salmagundi, então existe algo fantasticamente camp em sua imaginação da política de conscientização. Ela encorajou mulheres a se pensarem como atores em um “teatro guerrilheiro”, na qual elas performariam os seguintes atos na maneira mais exagerada e desdenhosa possível:
 
“Elas deveriam assobiar para os homens nas ruas, invadir salões de beleza, protestar em fábricas de brinquedos que produzem brinquedos sexistas, se converterem em números significativos para o lesbianismo militante, operar suas próprias clínicas psiquiátricas e de aborto, fornecer aconselhamento feminista para divórcio, estabelecer centros de desintoxicação de maquiagem, adotar os sobrenomes de suas mães como sobrenomes próprios, vandalizar anúncios de outdoor que insultam as mulheres, interromper eventos públicos cantando em homenagem às esposas dóceis de celebridades e políticos masculinos, recolher promessas para renunciar à pensão alimentícia aos risos, entrar com processos por difamação contra as ‘revistas de mulheres’ de circulação em massa, realizar campanhas de perseguição telefônicas contra psiquiatras masculinos que têm relações sexuais com suas pacientes, organizar concursos de beleza para homens, lançar candidatas feministas para todos os cargos públicos.”
 
“Mulheres serão bem mais politicamente efetivas se forem rudes, estridentes e — pelos padrões sexistas — ‘pouco atraentes’”, propôs. “Elas serão recebidas com ridicularização, algo que elas devem fazer mais do que suportar estoicamente. Deveriam, na verdade, receber isso de braços abertos”. Receber isso ajudou a neutralizar a condenação sexista dos homens. Mas foi também o primeiro passo para erradicar a divisão ideológica com base no sexo — o objetivo final da revolução feminista, para Sontag. “Uma sociedade onde mulheres sejam subjetiva e objetivamente iguais aos homens… será necessariamente uma sociedade andrógina”, escreveu. Ela não valorizava o separatismo, o policiamento agressivo das fronteiras de quem era ou não era mulher. Ela valorizava o direito a formas plurais de existência, o direito a suas várias identidades fragmentadas. Ela imaginava uma integração estética e política que resultaria, em última análise, na obliteração de “homens” e “mulheres” como categorias de identidade. Então, não haveria necessidade de as mulheres estabelecerem uma cultura privada, nem de precisarem procurar espaços próprios. “É apenas que elas deveriam estar destinadas a abolir”, concluiu.
 
São as entrevistas que se destacam como tesouros secretos de On Women, pois elas oferecem mais espaço para uma pluralidade de estilo e pensamento que reflete a crença da premiada ensaísta na pluralidade do eu. “Ser intelectual é estar ligada ao valor inerente da pluralidade e ao direito ao espaço crítico (espaço para oposição crítica dentro da sociedade)”, escreveu em seu diário. Nas entrevistas, encontramos uma voz que ainda é rigorosa, porém mais audaz, livre e gladiadora em suas declarações. Ouvimos novamente a combatividade ansiosa de seus ensaios anteriores. Ouvimos também sua disposição para responder, desafiar, qualificar, especular; sua recusa em aceitar respostas fáceis ou piedades ofendidas. Sentimos a fome que a impulsionou a continuar pensando. E sentimos, através da grande e crescente distância do tempo, a força da exigência dela de nunca paremos de pensar ao seu lado.
 
 
Notas da tradução
 
1 As publicações referenciadas sem tradução no Brasil foram mantidas com seus títulos originais em inglês.
 
2 Disponível no original aqui.
 
3 Ambos publicados pela Companhia das Letras aqui e aqui.
 
4 Publicado originalmente na Vogue e disponível no original aqui.
 
5 Reunido no volume Contra a interpretação (publicado originalmente, no inglês, em 1966) aqui.
 

* Sai agora, em 2023, uma nova coleção de ensaios Susan Sontag intitulada On Women (no português, Sobre Mulheres). Os ensaios reunidos apresentam o pensamento sobre mulheres, envelhecimento, libertação, sexualidade, beleza e uma visão do mundo assombrada pela morte. Esse texto é o primeiro de uma trilogia sobre a recepção e visão crítica que a renomada ensaísta adquire atualmente ao redor do mundo, a serem traduzidos e disponibilizados aqui no blog.


Esse texto é tradução livre para “What Susan Sontag Wanted for Women”, publicado aqui, em The New Yorker (23 maio 2023) e extraído do On Women.
 
 

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