Império da luz: a ciência e o sonho
Por Cristina Aparicio
Todo filme cobra uma escolha.
Diante da (assim espero, grande) tela, o público sempre escolhe entre a magia
ou o artifício. Porque o cinema, mais do que qualquer outra arte, exige certo
pacto sagrado, aquele que se faz com a ficção e que é responsável por dotar de
verdade a construção de múltiplos universos. É por isso que, ao ocupar a
poltrona, convivem no espectador dois estados mentais que lutam para prevalecer
um sobre o outro: a vontade analítica de decifrar as complexidades
científico-tecnológicas do cinematógrafo, ou a imperiosa necessidade de se
deixar fascinar pela narrativa fílmica. Aqui, por que esconder, defendemos
fortemente o último. E é que seria absurdo negar os esforços técnicos que
tornam possível a existência da sétima arte, e mesmo assim... o como importa
diante de tamanha maravilha? Porque, além disso, atentemos para o fato de que o
cinema também é fruto de um erro: aquele que causa o fenômeno phi que o
projecionista de Império da luz (Toby Jones) descreve ao jovem Stephen
(Micheal Ward). Dada a sucessão de quadros estáticos, um defeito no nervo
óptico impede ver a escuridão entre eles, produzindo a falsa sensação de
movimento. Esta é a ilusão da vida.
Os primeiros momentos de Império da luz são uma sucessão de planos-detalhe que mostram o que, a
priori, parece um cinema abandonado: uma máquina de pipoca obsoleta, um balcão
de bilheteria, rolos de celuloide empilhados em um canto, um cartaz de “entrada
proibida” que impede o acesso a um piso superior e a inscrição “Find where light
in darkness lies” a coroar o acesso ao cinema principal. A cada uma destas
imagens, reforça-se aquela ideia de nostalgia que parece irromper do próprio
edifício. Uma preocupação que, hoje, alerta para a iminente extinção de uma
arte que já se entende como sobrevivente (sobretudo se olharmos para as quantias
de público que as próprias salas alcançam). Essa nostalgia e essa consciência é
o que leva Sam Mendes a situar a sua história num ponto simbólico do tempo e do
espaço e que é crucial na sua biografia: um cinema dos anos oitenta. Porque o
filme, tal como acontecia com 1917, é uma espécie de homenagem: se
aquele foi dedicado ao seu avô, combatente na Primeira Guerra Mundial, desta
vez é a figura da sua mãe que serve de inspiração para construir a personagem de
Hilary (Olivia Colman). Esta mulher é precisamente a primeira figura a aparecer
neste prólogo que funciona como um inventário cinematográfico. E seu primeiro
ato é acender as luzes do Empire, o majestoso cinema onde trabalha. Tudo o que
parecia inerte, fantasmagórico até, ganha outro aspecto quando ela liga o
botão. De repente, o espaço se transforma em um aconchegante hall pronto
para receber seu público. Ela também acende as luzes da sala e, após caminhar e
organizar outros espaços do prédio, acaba olhando a rua através de uma janela,
com sua imagem refletida no vidro que ocupa o centro do enquadramento.
Porque esta é a história de
Hilary. É a triste, bela e comovente história de uma mulher dominada pelo que
sente, presa, digamos assim, num ponto intermediário entre dois mundos: o real,
aquele atrás da janela, e o imaginário, aquele que é projetado no cinema. Como
se sofresse de um efeito phi inverso, Hilary parece incapaz de perceber
a luz que dá sentido à sucessão de fotogramas que, no fundo, é a vida. “Sem luz
nada acontece”, diz o projecionista. Um princípio básico que também pode ser
aplicado às pessoas: é aquela faísca que parece faltar a Hilary, talvez apaziguada
pelo lítio que ela toma por prescrição médica. Mas Mendes, que escreve e filma
esse personagem com absoluto respeito e empatia, sempre coloca essa mulher do
lado oposto da escuridão: ela recebe luz direta das enormes janelas do pombal,
controla a iluminação das salas, reflete em seu rosto os fogos de artifício que
observa sobre o telhado... Há um esforço constante para resgatar essa mulher
dessa escuridão em que vive, e que se materializa em diferentes níveis do filme:
visualmente, ao colocá-la no espaço luminoso do plano ; e na narrativa, ao
permitir que ela seja "vista" pelos outros personagens. Afinal, não
há melhor maneira de sair da escuridão do que receber o olhar dos outros.
Esse pequenino raio de luz
Mas significar-se diante dos
outros é a tarefa complicada que só vem depois se sentir bem consigo mesmo. “A
vida é um estado de espírito” é a frase que fecha o filme e que esclarece
dúvidas sobre a natureza de Império da luz. Este é um filme catártico,
uma reconciliação com a inconciliável experiência de ter que lidar com a dor
que vem da mente. É um filme que não julga, que palpita desde o emocional, que
percorre os caminhos que a memória traça e que apela ao coração acima da razão.
Sam Mendes faz do cinema há mais de vinte anos “um lugar onde permanecer”.
Assim, em todos e cada um dos seus filmes, o espaço é a representação física
para a qual transfere visualmente a sua forma de compreender o ser humano.
O cineasta tem vindo a desenvolver
um complexo tratado sobre arquitetura emocional que culmina neste cinema
(império) ou Dreamland (nome original do edifício Margate onde o filme
foi rodado). E, se em títulos como Coisas que perdemos pelo caminho ou Beleza
americana uma sala vazia e branca se tornava o ponto de partida simbólico
para alcançar a redenção, ou em 1917 fez um plano sequência sufocante e contínuo
calvário para a morte que é a guerra, aqui o cinema (como lugar físico) encarna
a ideia de refúgio. Em parte, também, como foi e ainda é para o próprio
diretor.
Tapete e pipocas
Há uma essência que cada geração
de espectadores tem associado ao cinema como o lugar de exibição dos filmes.
Provavelmente, as primeiras cabines de uma primitiva feira de cinema
acumulariam cheiros que nada tinham a ver com os das salas acarpetadas, com sua
área de bar e suas grandes máquinas de pipoca a todo vapor. Cheiros que nesta
nova geração de salas multicines foram absorvidos pelos de outras comidas capazes
de “aromatizar” (vale o eufemismo) qualquer metro quadrado disponível. A
experiência de ir ao cinema mudou. Transformou-se, como não poderia ser de
outra forma. Mas até que ponto essas mudanças cosméticas e logísticas afetam a
experiência do que ocorre dentro da sala escura? Afinal, o tapete e a pipoca
são os adereços do que é realmente importante: o que está contido naquele raio
de luz projetado contra a tela.
Império da luz acaba
também inevitavelmente por ser uma homenagem ao cinema. Ao seu poder curativo,
à sua capacidade de diluir a solidão e proporcionar consolo, ao seu incalculável
valor como agente transformador da realidade. Por isso, quando nos últimos
compassos do filme uma cena poderosa vem oferecer uma bela ode à sétima arte, é
difícil não lembrar da proposta semelhante e, ao mesmo tempo, radicalmente
diferente que Damien Chazelle estabelece no fim da recente Babylon. Mas,
onde o diretor de La La Land se lançava numa sobreposição acelerada e
frenética de filmes de todos os tempos, Mendes se satisfaz com uma sala
iluminada pela luz de um projetor, as imagens de um único filme (Willkommen
Mr. Chance, que funciona como um espelho no qual o próprio filme é visto em
toda a duração) e o olhar emocionado de quem descobre pela primeira vez aquela
ilusão mágica. O cineasta coloca sua protagonista diante da grande tela,
iluminando seu rosto com aquela luz especial que é ao mesmo tempo sonho e ciência.
Uma luz portadora vidas, que narra e eterniza histórias. Uma luz sobrevivente
que implora, como o filme de Mendes, que a experiência de ir ao cinema não
acabe sendo apenas uma lembrança de outro tempo.
* Este texto é a tradução livre para “El imperio de
la luz: la ciencia y el sueño”, publicado aqui, em Jot Down.
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