Por Pedro Fernandes
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Ronaldo Correia de Brito. Foto: Jorge Clésio |
A obra de Ronaldo Correia de Brito
a um só tempo se apresenta integrada a uma tradição literária brasileira e em
busca de expandi-la em novas fronteiras.
Estive lá fora é um romance em constante
esquiva; reitera algumas das preocupações da nossa prosa posterior aos anos de
ditadura militar mas sem se render a apelos do tipo histórico, revisionista, ou
social, panfletário de uma causa. Seu interesse é exclusivamente pelo homem
encalacrado nas circunstâncias do seu tempo, em tentativa desesperada pelo
estabelecimento de um lugar no mundo e encontrando na arte a expressão
essencial do ser ou a terceira margem capaz de conduzi-lo por fora dos limites
das ideologias prisioneiras e infecundas.
A noção de
esquiva apontada
antes não se encontra apenas como um lugar ocupado por este romance; é peça
implicada no funcionamento da sua narrativa. Já no episódio inaugural, encontramos
Cirilo, o protagonista, no beiral da ponte da Madalena prestes a se jogar no
Capibaribe. O entorno do jovem estudante do 4.º ano de medicina não oferece muitas
perspectivas; o fedor da lama que cobre os manguezais e à primeira vista aponta
para a esterilidade da vida se confunde com o horizonte parado e ausente de
expectativa da personagem. Mas, enquanto estuda a melhor alternativa de se
afogar nas águas do rio, envolto numa torrente de memórias, como a da morte do tio
João Domísio, a vista alcança no campo estéril a vida frágil que sobeja. Não é
um nascimento qual o que leva Severino do poema dramático de João Cabral de
Melo Neto
Morte e vida severina a desistir do ponto final para sua
existência, mas é a própria vida severina que pulula e outra vez desvia Cirilo
do seu desejo fatalista.
O tempo ao qual pertence essa
personagem é do desparzir das forças do regime ditatorial e a organização dos
primeiros movimentos de luta revolucionária pela democracia. Esse conteúdo
histórico, embora apareça continuamente infiltrado nos acontecimentos da
narrativa, não constitui o primeiro plano da ficção. A narração prefere
compreender como esse poder aparece disseminado e dissimulado no restante das relações
comuns, na família, entre os estudantes, entre as instituições. As páginas
tristes da nossa história são entrevistas, ou seja, o narrador assume a
legitimidade do tempo narrado: o de quando falar contra o regime resultava em
dedura, desaparecimento, tortura e morte. Os exemplos, aliás, estão por toda
parte. E o principal se nota com Geraldo, em busca do qual o irmão Cirilo é
levado a partir do interior do Ceará para a capital de Pernambuco. Existe o
curso de medicina, mas antes um compromisso que se faz obrigação, primeiro
demonstrada pelos pais, depois autoimposta, de resgatar o outro que partira
para cursar Engenharia e se envolveu profundamente com as circunstâncias
políticas, caindo na grelha do pensamento comunista e na luta pela liberdade do
país.
Geraldo é parte no subterrâneo da
narrativa. Presença fantasmal onipresente como o morto João Domísio, ele é o
mártir da redenção; graças ao seu fim, se possibilitará a liberdade total de
Cirilo. Embora encoberta, Geraldo se revela inteiramente uma única vez na
narrativa, tal como a aparição de Jesus aos discípulos no Horto das Oliveiras.
No mais, tudo o que dele sabemos é à espreita, ora das manchetes recortadas e
colecionadas pelo pai Luis Eugênio que parece se identificar de alguma maneira
com a luta do filho contra o regime, ora pelas suposições levantadas por
aqueles que constituem o seu entorno, entre eles Cirilo, ora mesmo vistas à
distância, como se passa no primeiro contato físico entre o estudante de
medicina e o irmão. Aqui, o romance pratica pelo menos dois dos seus desvios: se
desfazer do estatuto de herói ou de mártir como tem sido recorrente na literatura
brasileira que lida com personagens que se levantam contra os sistemas em nome
desse coletivo chamado nação ou pátria; o segundo é se voltar contra certa
acusação simplista e por isso redutora de covardia ou comunhão com regime
daqueles que, por convicções, preferiram passar às bordas da história e não investirem
no seu mar pútrido, acentuando que os seus dramas não foram menores ou melhores
do que os que pereceram ou sofreram física e psicologicamente com as forças do
mal.
O romance não estabelece partido
entre as duas posições; ao invés disso se preocupa em observar as várias
contradições que nelas se ocultam. Qual é mesmo o sentido de morrer por uma causa
se quem morre é impossibilitado de usufruir da eventual conquista? Pergunta-se
ante a força atávica de Geraldo, afogado até o último fio nos limites da
ideologia que pratica. Como que se agarrar com unhas e egoísmo à vida — certo
princípio essencial da cultura cristã em que estamos enraizados — pode
significar apenas estar consubstanciado com a ideologia dominante? Pergunta-se
ante certa atitude estética assumida por Cirilo enquanto as trevas avançam
sobre a vida de todos. As duas atitudes constituem uma das tensões que
equilibram a narrativa; e se as respostas não são conclusivas não é apenas porque
não cabe ao romance a escolha, mas porque nem sempre se oferecem e nem sempre é
possível estabelecer escolha para tudo. Entre um limite o outro, repara-se o
desmantelamento do humano cegado ou subsumido nos sistemas e modelos criados
para alienar e oprimir.
Esse drama não se encerra nos
papéis assumidos pelas duas personagens. Ronaldo Correia de Brito recorre ao
impasse dos irmãos — reconhecido na tradição literária desde a história de Caim
e Abel — para compreender que os elementos motivadores da escolha desses dois
jovens envolvem-se com suas feições mais íntimas. No âmbito dos Rego Castro,
Geraldo finda por deslocar todos os interesses da família para si, perfazendo o
lugar do escolhido ou do predileto, mas ainda a reabertura de uma ferida do passado
que teima em permanecer: a referida morte de João Domísio.
Por inveja, ciúmes, mas com certa
razão, Cirilo reconhece-se sempre o menor, o que serve de isca para o
restabelecimento da ordem familiar se conseguir preparar o caminho para retorno
do irmão, certo filho pródigo. Nada do que faça constituirá modificar esse
lugar à parte para o qual é empurrado. Assim é que, ao invés do terrível contexto
que vive constituir o primeiro palmo da opressão experimentada é do plano íntimo
que o opressor se instaura. E este é o próprio Geraldo; apenas liberto dele será
possível para Cirilo encontrar alguma saída capaz de dirimir a condição de
pouca significância a qual foi reduzido e que o achata em todas as frentes: na
vida sexual, na vida estudantil, na vida política e na vida social. Assim é que
a identificação com os ribeirinhos de existência carcomida e felizes apenas sob
o apelo do álcool capaz de o demover do suicídio adquire um valor significativo
para essa personagem.
Mas não estará no vício a bengala
de apoio de Cirilo. Paralela à vida de professor de telecurso e de estudante,
forma-se um gosto inalienável pela arte: ora a literatura de escritores que se
colocaram sempre na posição de espreita, desvio, terceira margem, para
insistirmos na expressão rosiana, ora o cinema, ora as artes plásticas, ora a música.
É nesse convívio que a parte subterrânea da narrativa de
Estive lá fora se
expande ainda mais pelos jogos intertextuais visíveis ou implícitos e pelas
reiterações metafóricas e simbólicas.
Uma dessas passagens é o capítulo 20.
Intitulado “O evangelho segundo São Mateus”, em explícita referência ao filme
de Pier Paolo Pasolini como a narrativa mesma evidencia, é esta a ocasião
quando os dois irmãos, um à procura e outro em fuga, se encontram pela
derradeira vez. É um episódio singular. Reitera, como ficou apontado antes, o
próprio Cristo antes de ser entregue para a crucificação. É um encontro que
contraditoriamente ressalta a sua impossibilidade porque são dois homens
encerrados nas próprias convicções; Geraldo, talvez, mais nas alheias que as
dele próprio, uma vez que deita vista grossa para as mesmas atrocidades vigentes
cometidas pelos da sua causa.
A menção ao filme de Pasolini, por
sua vez, não é gratuita — como nada é neste romance. Sabe-se que quando o
cineasta ao escolher filmar a vida de Jesus preferiu este evangelho pela sua
qualidade realista dentre os quatro livros do Novo Testamento. Reproduziu-o em
tela quase como se apresenta no papel. É também em Mateus que se lê uma das
sentenças mais pungentes de um Jesus revolucionário, em clave comunista: “Não
penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada” (Mt, 10:34).
Essas são qualidades que se replicam em Geraldo, posição cujo sentido é
alcançado ainda no irmão, que, na guerra assumida por aquele, vê-se envolto na
crise que agudiza sua condição órfã e apátrida no mundo. O aspecto sacrificial
do herói questionado no romance pelo de consequência das atitudes do
revolucionário encontra certa correspondência no papel desempenhado pelo Jesus
de Mateus. As implicações não se restringem a esses aspectos. O episódio
encontra-se entre os principais da narrativa e seu título favorece outras
leituras, incluindo as de fundo e forma do romance, como certo traço
hagiográfico no desenvolvimento da trajetória de Geraldo, presença que outra
vez se justifica no interior da ficção, pelos estreitamentos com o gosto de um
imaginário popular e seu interesse na vida dos santos.
Durante muito tempo prevaleceu uma
certeza sobre o Evangelho de Mateus: feito por um discípulo de Jesus, o livro
foi lido como o primeiro a ser escrito e fonte para os demais evangelistas.
Mais tarde, surgiram dúvidas até mesmo da autoria; a maioria dos estudiosos
passou a concordar que o texto é de um anônimo judeu que compôs sua versão da vida
de Jesus utilizando-se do Evangelho de Marcos e de várias outras fontes. Ora, a
cópia pressupõe um trabalho de recorte, colagem, sobreposições, produzindo por
acréscimo certas nuances que escapam à precisão da objetividade. Esses recursos
estão na base de Estive lá fora e nele se mostram. À medida que avançamos
na narrativa, a noção de autoria da narração atravessa uma modificação — primeiro
incômoda porque fere o princípio organizacional do narrado e depois perfeitamente
integrada ao propósito do romance — que resulta num texto de natureza
multiplanar. É quando a narração convencional é tomada pelo tom de relato, no
sentido de análise testemunhal, ou começam a aparecer materiais diversos, como
cartas, anotações de sonhos e a evidenciação de passagens e referências
literárias, a composição interminável de um livro de recortes e colagens de
jornais feito por Luis Eugênio na tentativa de compor uma história da errância
do filho pródigo.
Do romance-rio — de um curso
perene (a vida de estudante de Cirilo numa Recife claustrofóbica e efervescente)
interceptado por vários afluentes menores (as muitas histórias que formam a
grande variedade de personagens) — passamos ao romance-arquivo. Agora, quem
gere os seus materiais? É, numa leitura óbvia demais, o aspirante a escritor
Cirilo? É seu pai, a continuidade inclusive em nome próprio daquele escritor
frustrado de Angústia interessado em restabelecer uma compreensão dos
detalhes do desarranjo familiar advindo do período histórico em curso? Ou será Álvaro,
o intelectual do grupo de amigos de Cirilo na casa do estudante (esse pequeno
mundo, um Ateneu, que funciona como espécie de microcosmo social do
decadente Brasil ditatorial)? Ou ainda todos eles, como se este fosse um
romance-coral? Se sim, quem seria o maestro dessas tantas vozes? É possível que
todas essas interrogações não alcancem o leitor comum de Estive lá fora porque
o equipamento narrativo primeiro seduz, como deve ser, pela história que nos
conta: a de homem no entrelugar, no limiar, em desvio — como se nota não só no
enredo mas na estrutura do romance.
Há duas circunstâncias da
narrativa que esclarecem o funcionamento deste romance: uma delas se processa
na recorrência dos retratos, o do quadro familiar dos muitos que se fabricavam
nas famílias mais abastadas. Cirilo encontra-os com certa facilidade e
desenvolve um fascínio por esse tipo de registro. Se muitas das vezes o fio da narrativa
se desenrola a partir da contemplação da fotografia, outras serve para entender
objetivamente as tantas minúcias da formação genealógica. O retrato de família,
por sua vez, é ponto de ascendência do romance: derivado da saga familiar, Estive
lá fora é o material com o qual preenchemos os intervalos entre uma
fotografia e outra num álbum.
Ainda no plano pictural, o detalhe
seguinte é processado especificamente no capítulo 22, “O lenço estampado de uma
camponesa”. Numa das cartas para a mãe Célia Regina, o protagonista recorda uma
litogravura de São Francisco — outra vez a recorrência da vida dos santos — de
herança familiar. Ao reparar o quadro, Cirilo encontra por baixo da imagem principal
uma segunda estampa com o registro da ressurreição de Jesus, imagem que ele
mais adiante descobre desaparecida misteriosamente se os lacres do primeiro
reparo eram os mesmos e estavam intactos. Ora, Estive lá fora é mesmo um
romance feito do aparente por sobre o que se oculta, o referido subterrâneo da
narrativa que é sempre um mesmo e um outro, um reconhecido e um desconhecido,
um falar e um calar.
Publicado em 2012, depois de uma
larga trajetória pelo teatro e pela prosa curta, especificamente o conto, Estive
lá fora é a segunda incursão de Ronaldo Correia de Brito pelo romance.
Aqui, o escritor flerta com a saga familiar, com o Bildungsroman, com o
romance histórico, o metarromance, com o Doppelgänger, o stream of
consciousness etc. e colhe de cada um os elementos com os quais organiza um
romance que não se filia a nenhuma dessas qualidades. Isso faz o livro,
sobretudo pela segurança como se equilibra os possíveis que ordenam uma
narrativa que opta pelo limiar e o mantém do começo ao fim e pela ajustada
linguagem com a qual se articulam estratos e textualidades diversas, sem o
apelo de se fixar aos tipos e procedimentos romanescos conhecidos ou se filiar
ao ponto mais superficial das questões tantas vezes esgotadas porque tratadas pelo
mesmo interesse facilitador e não o essencial problematizador. Tudo isso torna este
livro um dos cada vez mais raros romances marcantes na literatura brasileira
contemporânea.
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Estive lá fora
Ronaldo Correia de Brito
Alfaguara
296 p.
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