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Cormac McCarthy. Foto: Gilles Peress |
É curioso até que ponto prosperou a
ideia de um jogo de pôquer do romance estadunidense durante a segunda metade do
século XX protagonizado por Don DeLillo, Thomas Pynchon, Philip Roth e Cormac
McCarthy (só para constar, eu próprio incorporei essa partida na minha
imaginação): são quatro gigantes que dividem uma geração, é verdade, mas a
semelhança entre eles é relativa, principalmente se for o sobrenome, o menos
pós-moderno de todos, o de raízes mais desesperadas.
Cormac McCarthy acaba de falecer,
fato nada inesperado dada a sua idade avançada (oitenta e nove anos) e a cena
que fechava seu último livro,
Stella Maris, em que um personagem implora
a outro que segure sua mão “porque é isso que as pessoas fazem quando estão
esperando o fim de alguma coisa”. McCarthy está morto, então, e seria inútil
dizer que um mundo também morreu com ele: primeiro, porque é sempre assim
quando a morte chega; e segundo, porque pode talvez nem seja verdade e o
destino de sua obra resida em nos lembrar dos monstros atemporais que assombram
os Estados Unidos, a era que este país definiu, e os seres humanos que o
habitaram.
O que caminha para fundir-se em um
passado conclusivo, admitamos, é a validade do cânone que forjou a
sensibilidade narrativa de muitos de nós. Restam dois dos quatro mestres, sem
que pareça fácil que nos vão oferecer mais livros ou aprofundar um presente que
já nos pertence. Assim,
O silêncio de DeLillo e o díptico
O
passageiro/ Stella Maris do autor em questão permanecerão como epílogos de
um momento-chave da literatura ocidental.
Desde sua estreia no romance
The
Orchard Keeper (em tradução portuguesa,
O guarda do pomar) em 1965,
McCarthy entregou doze títulos, em ritmo pouco pontual, sem medo de registrar
certas variações estilísticas e climáticas, mas sem nunca deixar de se parecer
muito consigo. Os críticos costumam compará-lo a William Faulkner por muitas e
boas razões (o Sul, as atmosferas devastadoras, o Grande Estilo…), embora me
atreveria sugerir que as coincidências se devem menos à leitura do mestre do
que exigem inexoravelmente o tratamento dos temas e paisagens em comuns
(físicas, morais...).
Sua primeira obra-prima foi
Suttree,
em 1979, ou talvez
Child of God (em tradução portuguesa,
Filho de
Deus), seis anos antes. Ambas deixaram claras as constantes coordenadas de
sua obra: as vísceras existem para ser esparramadas, as almas para atravessar infernos,
a linguagem para transbordar-se sem pudor, ora primitiva, ora barroca, nunca
tímida. Se considerarmos Herman Melville a verdadeira pedra de toque de
McCarthy, a narração etílica e semiautobiográfica de
Suttree seria seu
particular
Bartleby, o escrivão, e digo isso tanto pelas semelhanças (à
primeira vista é pouco: só a radicalidade das recusas que os seus protagonistas
encarnam), bem como pelas diferenças siderais que apresentam na extensão, no
estilo, no tom ou na virulência.
Nos anos 1990, sua admirável
Trilogia da Fronteira desempenhou o papel de literatura consensual no circuito
literário internacional, consagrando-o perante a crítica e o público ao polir
(talvez, se me apressar, “domesticar”) suas arestas mais ardentes. E na
primeira década do século XXI soube ajustar a sua escrita a parâmetros que,
mesmo dentro do rigor artístico, lhe deram acesso a uma maior popularidade, e
daí surgiu
Onde os velhos não têm vez (para mim, um bom livro menor) e
A
estrada (a meu ver, magistral: uma lição de classicismo estadunidense
injetada nas veias de uma narrativa distópica aparentemente idêntica a tantas
outras bem populares).
Hollywood bateu à porta e a fama
também, dois cenários pelos quais o outrora esquivo McCarthy se moveu com
elegância e excelente disposição. O Prêmio Nobel não veio, claro, mas o que
importa. Como se vê, falamos de uma trajetória coerente, indeclinável... e um
pouco mais divertida do que se costuma dizer.
No entanto, na revisão anterior
falta um título, o de um romance que se destacará acima do restante, tal como
Moby
Dick ofusca qualquer outra conquista de Melville. Refiro-me a
Meridiano
de sangue, publicado em 1985, barbaridade máxima,
western sangrento
de fronteira que nos lega a imagem mais perturbadora da história: um arbusto de
onde pendem os cadáveres de crianças por meio de ganchos que lhes atravessam suas
gargantas. A impressão surge, fica fixa no parágrafo e sai de cena sem que nada
se detenha nela, nem os personagens, nem o narrador. É assim que a violência
explode naquelas páginas, forte e primordial, atordoada e incansável.
Com efeito,
Meridiano de sangue
nos tenta a invocar o eco de
Moby Dick, só que aqui Ishmael não goza
sequer da graça de um nome próprio, o capitão Ahab carece de outra obsessão que
não seja uma psicopatia febril, e o lugar metafórico da grande baleia branca é
ocupado pelo Nada mais absoluto. Estamos diante de uma parábola do Antigo
Testamento, tão cruel quanto o pior dos profetas, que McCarthy também infla de delírio
extirpando duas possibilidades essenciais: a da Ordem e a do Milagre. O
resultado é devastador. Aqui os homens são “larvas de um ser inescrutável”
lançados numa paisagem que constitui a única linguagem de Deus, e o Mal afirma
claramente que nunca morrerá. Se existem livros perfeitos,
Meridiano de
sangue é um deles.
Em suma, a ferocidade de sua obra
poderia nos convidar a classificar Cormac McCarthy na categoria do niilismo. Não
estou certo disso.
No estupendo obituário que lhe dedicou, Eduardo Lago
destacou a sua fé redentora nos “valores do humanismo”. Com a permissão da
admirável sabedoria de Lago, ocorre-me que McCarthy não é caracterizado por
essa fé, mas talvez pelo anseio por essa fé. Por isso, seus dois últimos
romances (
O passageiro e
Stella Maris, que aos poucos vão
crescendo em minha memória com a força dos grandes encerramentos da grande
literatura) giram em torno da necessidade humana de Sentido, embora não consigam
mais encontrá-lo, nem ciência nem literatura, embora a morte sempre encerre
nossa busca, mais cedo ou mais tarde.
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