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Ilustração: Sophie Lécuyer
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ADEUS
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro,
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo:
meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Presente no livro
Os amantes sem dinheiro, o poema de
Eugénio de Andrade que acabamos de ler, fala sobre um amor que se acabou. Esse
sentimento tem sua representação maior pela afirmativa “as palavras estão
gastas” (v. 38), de forma que existe uma correspondência entre a relação
amorosa do eu-lírico e a possibilidade linguística. Assim, onde não há palavras
e seus diferentes sentidos, não há amor.
Para trabalhar com a obra desse poeta português, gosto
sempre de lembrar do que o Eduardo Prado Coelho fala em
A palavra sobre a
palavra: a sensação que ressoa no leitor de Eugénio de Andrade é de “um
efeito geral de fuga à interpretação, de resistência à captura do sentido”
(1972, p. 160) quando se depara com a situação de formalizar aquilo que foi
lido. Visto isso, a fim de achar um caminho seguro para traçar a leitura de “Adeus”,
a análise que se segue pretende pensar a relação do passado e do presente, de
forma que será considerado tanto o uso imediato dos tempos verbais empregados,
quanto a análise da relação concreta entre os dois amantes.
A introdução do poema acontece com um verbo no pretérito
perfeito: “Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,” (v. 1) e a utilização
desse tempo verbal está presente em diferentes momentos, o que permite formular
uma interpretação do conteúdo a partir de sua forma. A primeira estrofe contém
a repetição do verbo “gastámos”: as palavras, os olhos, as mãos, o relógio e as
pedras foram gastas. No entanto, há uma quebra: “Gastámos tudo menos o
silêncio.” (v. 4). Neste verso seco a conclusão perfeita do verbo não se
sustenta, há um alongamento, o silêncio restou. Esse estender também pode ser
interpretado pelo enjambement nos dois últimos versos da mesma estrofe —
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis. (v. 7-8)
— em que o próprio poema teve sua forma alargada para dar
conta desse sentimento.
Dentre o que foi gasto, é possível interpretar o “meu amor”
no primeiro verso como parte da listagem de elementos que se foram. Em um
primeiro momento, entendemos que se trata de um vocativo, a pessoa a quem ele
se refere e endereça o poema. Porém, é possível entender que, assim como as
palavras ou as mãos, o amor foi gasto, de forma que “o que ficou não chega /
para afastar o frio de quatro paredes.” (v. 2-3). Pelo contrário, o que ficou —
isto é, o silêncio — mantém inalterada essa sensação.
Da segunda estrofe adiante, percebemos uma intercalação
entre o uso do pretérito imperfeito e do presente do indicativo: “Meto as mãos
nas algibeiras e não encontro nada. / Antigamente tínhamos tanto para dar um ao
outro” (v. 9-10), indicando a influência desse passado não totalmente
finalizado com o rompimento do momento presente. Eduardo Prado Coelho, quando
trabalha com a última estrofe do poema “As palavras interditas”, se atenta à
utilização do verbo “dar”: “cada homem tem apenas para dar / um horizonte de
cidades bombardeadas” (v. 23-24) e qual a posição desse verbo dentro de um
poema de amor:
“Contudo, neste universo de destruição, um verbo fica a
flutuar (navio dentro da cidade) como
elemento de resistência: dar.
Tempo absurdo: o que se pode dar é um vazio, a destruição. Mas, assim como todo
o poema de amor, dar é a forma mais simples de amar em tempos de escassez. Dar:
o gesto de. Simples, e o mais belo: porque, em amor, apenas se dá o que não se
tem — para que do outro venha a origem da nossa dádiva. (1972, p. 169)
Quando posta essa afirmativa na leitura de “Adeus”,
percebemos que a forma mais simples de expressar o amor não é mais uma
realidade no momento da escrita:
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava, mais tinha para te dar (v. 9-12)
Anteriormente, o eu-lírico se sentia possuidor de todas as
coisas, podendo compartilhá-las com o “tu” enunciado. Assim como Coelho afirma,
dava aquilo que não possuía e recebia de volta seu contentamento. O verbo no
passado “tínhamos” e o advérbio “antigamente” marcam esse contexto de
rompimento. A voz do poema compara dois espaços temporais durante todo o texto:
de um lado a alegria e vastidão de possibilidades que o amor proporciona, do
outro a solidão e silêncio do término. Essa comparação é possível de ser
verificada de forma mais evidente na terceira e quarta estrofe:
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros. (v. 13-24)
Existe, nestes versos, a perda da perspectiva de uma pessoa
apaixonada e das metáforas construídas pelo amor: o que eram peixes verdes, hoje
são olhos como todos os outros. É como se não fosse possível a construção de
alguma imagem simbólica. Uma vez que as palavras foram gastas, só resta a
realidade silenciosa. São nessas comparações que percebemos o poder que a
linguagem possui em “Adeus”. Quando alguma coisa era dita, como no caso da
comparação dos olhos, tudo era possível: “era no tempo em que meus olhos / eram
realmente peixes verdes” (v. 20-21). Nesse contexto, a palavra construía a
realidade e, quando gasta, tudo se vira do avesso.
Referências
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