A segunda morte, de Roberto Taddei
Por Gabriella Kelmer
Roberto Taddei. Foto: Arquivo do autor. |
Uma menção ao conto “Wakefield”, de Hawthorne, introduz as páginas do romance mais recente de Roberto Taddei, A segunda morte. Na narrativa curta do norte-americano, Wakefield, homem de meia idade e poucas características que o recomendem acima dos demais, planeja uma viagem de uma semana, sem propósito nem destino. Ao invés de sair de Londres, ele aluga um apartamento na rua paralela à sua e decide, por vaidade e curiosidade, além de uma certa inclinação ao humor sardônico, observar como a casa e a esposa se reorganizam sem a sua presença. Durante os vinte anos seguintes, seguindo um capricho que o faz adiar de forma consistente o retorno, vive sozinho, como sombra de si mesmo, e acompanha de longe a vida familiar. Um certo dia, no vigésimo ano, num supetão tão despropositado quanto a motivação para o abandono primeiro, ele retorna à sua casa e reassume a identidade ora posta de lado.
A aproximação do enredo do conto com o do romance é evidente. Na terceira publicação do escritor e tradutor brasileiro, o protagonista, Gustavo, perto de completar oitenta anos, aproxima-se da morte a largos passos. A narrativa se inicia justamente com o abandono da vida pregressa, em uma viagem de carro a uma região litorânea da qual ele não pretende retornar nem por força das obrigações, nem por intervenção de familiares, com os quais, aliás, não mantém contato há mais de vinte anos. Diferentemente de Wakefield, entretanto, a quem são tão comuns quanto inexplicáveis os arroubos, há motivação na construção romanesca, e a fuga se constitui como recusa — da vida constituída ao longo dos anos, da perda de referências decorrente da passagem do tempo, da própria morte.
Saído de uma metrópole brasileira, o destino do protagonista — uma praia em região turística — é escolhido pela lembrança vaga de uma viagem na juventude com a irmã. Gustavo passa a residir num quartinho apertado de uma pousada à beira-mar. A personagem, “cada vez mais fora do mundo” (Taddei, 2023, p. 11), tem, no início da narrativa, poucas emoções a destinar a seus iguais, enxergando indivíduos em outras fases da vida com estranheza. Sofre, não por remorso ou culpa por seus encobertos, embora aludidos, crimes pregressos, e sim pelas incapacidades do corpo, pelas impossibilidades de futuro.
Nos primeiros momentos do romance, antes e durante a chegada à praia, a prosa direta, em terceira pessoa, apresenta algumas imagens representativas desse turbilhonado momento físico e emocional vividos pela personagem: a mancha de sangue oxidado no tapete do apartamento que deixou para trás, sem perspectiva de volta, ocasionada por uma queda devido à idade; os olhos negros de um sonho, atraindo-o para um “caminho sem volta” (Taddei, 2023, p. 16), ideia que o assusta; os urubus que pairam sobre seu corpo durante um mergulho. Elas atestam, cada uma a seu modo, a iminência da morte, mas também sugestionam uma morte em vida, que é decorrente do abandono da própria identidade, mas também de escolhas anteriores, que viram esse homem — então vulnerável e enfraquecido pelo processo de envelhecimento — absolutamente só.
A aproximação do enredo do conto com o do romance é evidente. Na terceira publicação do escritor e tradutor brasileiro, o protagonista, Gustavo, perto de completar oitenta anos, aproxima-se da morte a largos passos. A narrativa se inicia justamente com o abandono da vida pregressa, em uma viagem de carro a uma região litorânea da qual ele não pretende retornar nem por força das obrigações, nem por intervenção de familiares, com os quais, aliás, não mantém contato há mais de vinte anos. Diferentemente de Wakefield, entretanto, a quem são tão comuns quanto inexplicáveis os arroubos, há motivação na construção romanesca, e a fuga se constitui como recusa — da vida constituída ao longo dos anos, da perda de referências decorrente da passagem do tempo, da própria morte.
Saído de uma metrópole brasileira, o destino do protagonista — uma praia em região turística — é escolhido pela lembrança vaga de uma viagem na juventude com a irmã. Gustavo passa a residir num quartinho apertado de uma pousada à beira-mar. A personagem, “cada vez mais fora do mundo” (Taddei, 2023, p. 11), tem, no início da narrativa, poucas emoções a destinar a seus iguais, enxergando indivíduos em outras fases da vida com estranheza. Sofre, não por remorso ou culpa por seus encobertos, embora aludidos, crimes pregressos, e sim pelas incapacidades do corpo, pelas impossibilidades de futuro.
Nos primeiros momentos do romance, antes e durante a chegada à praia, a prosa direta, em terceira pessoa, apresenta algumas imagens representativas desse turbilhonado momento físico e emocional vividos pela personagem: a mancha de sangue oxidado no tapete do apartamento que deixou para trás, sem perspectiva de volta, ocasionada por uma queda devido à idade; os olhos negros de um sonho, atraindo-o para um “caminho sem volta” (Taddei, 2023, p. 16), ideia que o assusta; os urubus que pairam sobre seu corpo durante um mergulho. Elas atestam, cada uma a seu modo, a iminência da morte, mas também sugestionam uma morte em vida, que é decorrente do abandono da própria identidade, mas também de escolhas anteriores, que viram esse homem — então vulnerável e enfraquecido pelo processo de envelhecimento — absolutamente só.
Os dias após sua chegada são tomados por dores intensas que denunciam a precariedade de sua saúde. Ainda assim, Gustavo se arrisca em caminhadas noturnas pelas trilhas que levam ao vilarejo de pescadores e às praias adjacentes. A exploração dos arredores, motivada por curiosidade e por uma certa resignação perante a morte, com a imposição descuidada de riscos ao corpo condenado, demonstra o caráter expeditório dessa última viagem: indo além dos próprios limites por nenhuma outra razão além do desejo repentino, ele busca experiências com as quais ocupar os dias derradeiros.
“E se uma onça saltar sobre o seu pescoço enquanto anda pela mata, ou uma cobra o envenenar, será um fim muito melhor do que qualquer outro que poderá conseguir sozinho. Se escorregar no barro úmido e bater a cabeça numa pedra, tanto melhor. Se esgotar o resto de energia que tem e com isso precipitar o próprio fim, que mal há nisso? Se suas coxas ainda conseguem sustentar seus pés, se seus pulmões ainda permitam que se locomova pelo espaço com alguma marem de negociação, não será a noite nem a razão que o impedirão de prosseguir.” (Taddei, 2023, p. 42)
“E se uma onça saltar sobre o seu pescoço enquanto anda pela mata, ou uma cobra o envenenar, será um fim muito melhor do que qualquer outro que poderá conseguir sozinho. Se escorregar no barro úmido e bater a cabeça numa pedra, tanto melhor. Se esgotar o resto de energia que tem e com isso precipitar o próprio fim, que mal há nisso? Se suas coxas ainda conseguem sustentar seus pés, se seus pulmões ainda permitam que se locomova pelo espaço com alguma marem de negociação, não será a noite nem a razão que o impedirão de prosseguir.” (Taddei, 2023, p. 42)
Em suas escapadas da pousada, acaba tornando-se, por força de uma série de coincidências, um voyeur acidental, mas interessado. Em duas instâncias se depara com a vida sexual dos moradores da praia, assistindo-os na intimidade. Sua perspectiva, daquele que olha à distância as relações sexuais de outros mais jovens, simboliza, no plano literário, a perda da potência de um corpo já incapaz de obter esse prazer.
O romance, ao conduzir a esses encontros com o sexo e a impotência, poderia facilmente indicar um desencontro irreconciliável com o corpo, ou uma busca pela recuperação da vitalidade sexual e do interesse amoroso. Não é isso que acontece. A narrativa, de modo arguto, afasta propositadamente a conquista de uma última relação amorosa a reconstituir o vigor perdido ou asseverar a masculinidade da personagem central. As vivências de maior impacto e repercussão, no contexto da narrativa, ocorrem a partir da aceitação sem fingimentos do corpo envelhecido, vulnerável em suas inevitáveis impossibilidades.
“Está ali, e em nenhum outro lugar em nenhum outro tempo, cercado de coisas pequenas e muito grandes, embalado pela água morna, sem passado ou futuro. Sente que pode ter atravessado o espaço por minutos, ou mesmo horas. Dias ou anos. Já não pode dizer, ao sair do mar. Por um instante não se sente velho. Caminha pelado pela areia, o pau mole e enrugado. O saco contraído. A pele flácida da barriga, os braços longos e finos, desajeitados ao lado do tronco. Ele ameaça movimentos como os de uma dança na areia. Sua bunda deve estar tão caída quanto o resto do corpo. Mas este é o corpo possível. É um corpo que já não se deixa confundir pelo vigor de um músculo.” (Taddei, 2023, p. 45)
É no contexto da permanência consolidada no novo ambiente que ocorre a aproximação entre o protagonista e Bianca, proprietária da pousada, com quem ele divide a geração e pouco mais. Desde o primeiro encontro, a senhora — de cabelos muito longos para a idade e de uma surpreendente abertura ao outro, segundo as observações de Gustavo — desperta no visitante fascínio. A amizade entre os dois é transformadora.
Bianca vive com o marido, Heitor, em estado vegetativo. Uma enfermeira auxilia nos cuidados com o idoso, cuja fisiologia é inteiramente dependente das máquinas. Ao se inserir no cotidiano da família, Gustavo, já mais bem disposto do que aquele que inicia o romance, passa a ajudar em diversas tarefas domésticas, estabelecendo para si alguns projetos, como o cultivo de uma horta e de um jardim, mas também acatando pedidos de ajuda das mulheres da casa para manobrarem o corpo letárgico de Heitor.
Nesse ponto da narrativa, estabelecem-se, de forma significativa, planos de curto e médio prazo que ocupam a rotina do protagonista, que já não vê o fim tão próximo. Sua doença é menos exigente devido à maior mobilidade do corpo, e a morte mais palpável entre os três idosos que ocupam a casa, “um pequeno pronto-socorro de almas em decomposição” (Taddei, 2023, p. 80), não é a de Gustavo.
É angustiante ao protagonista o adiamento da morte de Heitor. Apesar de a influência de Bianca convencê-lo, em certo momento, de que ainda há vida interior no marido, ele o vê como um “brinquedo para facilitar a negociação com o mundo real” (Taddei, 2023, p. 85). Cogita até, em certo momento, desligar-lhe as máquinas. Não o faz, cabendo, mais tarde, a uma tempestade devastadora derrubar a energia e dificultar a chegada à praia, circunstâncias que resultam na morte tardia de Heitor.
As reflexões tidas perto daquele corpo, vivo por burocracias que o protagonista rejeita, parece sugerir, no âmbito narrativo, o confronto da personagem central com um destino pior do que a morte. Surge da experiência um agenciamento de quem, se não deseja antecipar o próprio fim, rejeita sacrifícios, próprios ou alheios, para adiá-lo.
“O corpo de Heitor se desmancha e exige da enfermeira e de Bianca trabalho incessante. Por que não abandonam logo isso? Que diferença fará a Heitor morrer um dia antes? Morrer agora mesmo, nessa tarde? São perguntas que ele não tem coragem de fazer a Bianca.” (Taddei, 2023, p. 91)
O encerramento do romance coaduna-se com a trajetória do protagonista. Nela, agem, também com a influência de Bianca, os discursos dos moradores do vilarejo, com os quais Gustavo, apesar de um declarado ceticismo quanto aos mitos locais, desenvolve certa empatia. Uma profecia de retorno do protagonista é sugerida pela matriarca dos caiçaras, sendo a praia, nessa leitura, um destino final.
Ao longo de toda a narrativa, não há explicações demasiadas. O fardo de Gustavo — ser um velho à beira da morte — constitui-se engenhosamente por uma prosa que prefere orações curtas, emulando, na dicção romanesca, uma perspectiva pouco dada aos volteios, objetiva e omissiva como é aquele a quem o tempo de dizer é limitado, aquele a quem revelar tudo não é interessante. O narrador constitui, de forma habilidosa, uma história de admirável força descritiva, tão mais tocante quanto mais presentificada: as dores de revirar as entranhas são minuciosamente evidenciadas, perscrutando a boca do estômago, a ardência do esôfago, o atrito dolorido da pele com as roupas; e o contato do corpo com o mundo, da sensação de liberdade ao flutuar entre os plânctons, da exaustão prazerosa deixada pelas caminhadas nas trilhas, da visão do pôr do sol por detrás de um bolo que resume o inexplicável, transmitem sensorialmente os momentos de repouso e de encontro, que tornam mais aceitável, se não mais fácil, a aproximação da morte.
As qualidades do romance se estendem mais longe. Não há resolução para uma série de questionamentos surgidos no que diz respeito ao protagonista, cuja origem e propósito permanecem nebulosos. A recusa em elaborar tudo torna a trajetória romanesca mais centralizadora, pois também no âmbito da construção narrativa o passado é deixado para trás.
Gustavo, que deseja “ser atravessado pelo mundo” (Taddei, 2023, p. 100), conquista uma vida que não imaginava poder ser vivida. De certo modo, como Wakefield, volta para casa. Por isso, é capaz de morrer.
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A segunda morte
Roberto Taddei
Companhia das Letras
136 p.
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