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Stefan Zweig. Foto: Trude Fleischmann |
Em 22 de fevereiro de 1942, poucos
meses após terminar seu famoso
O livro do xadrez, o escritor austríaco
Stefan Zweig tirou a própria vida com sua segunda esposa, Lotte Altmann, na
cidade brasileira de Petrópolis. Ele tinha 61 anos e havia deixado sua terra
natal e o continente europeu por quase uma década, ameaçado pelo incipiente
terror nazista.
O Brasil foi seu último destino
após uma longa viagem que o levou da Inglaterra aos Estados Unidos e até ao
Uruguai. Em 1942, tudo o que Zweig havia rejeitado e combatido ao longo de sua
vida, o nacionalismo obtuso, as análises irreais da realidade e, em suma, a
estupidez elevada ao status de Estado que viu encarnado nos novos bárbaros
totalitários alemães, cuja brutalidade esmagou qualquer surto de livre
pensamento e autonomia individual no continente europeu. Cansado de suas
andanças, Zweig finalmente se estabeleceu em Petrópolis. As notícias que lhe
chegavam dos avanços do exército alemão pela França, a Holanda e até dos
ataques aéreos à Inglaterra o faziam temer o pior: que o diabólico Leviatã
acabasse por dominar o mundo inteiro. Então, naquela terra amiga mas estranha,
o grande cosmopolita começou a sentir um profundo desenraizamento ao saber que
estava afastado daquilo que amava acima de tudo, vendo-se privado daquilo que
alimentava o seu nervo característico, daquela Europa sem fronteiras de
outrora, unida por alguns anseios culturais e algumas convicções que a tornavam
livre e avançada, e que pareciam ter deixado de existir.
Quando jovem, ele havia lido os
Ensaios
sem causar que o livro lhe causasse muita impressão, mas desta vez, próximo ao
fim de sua vida, seria diferente. O Zweig maduro foi imediatamente seduzido
pelas idiossincrasias de Michel de Montaigne (1533-1592), cuja ascendência semi-judaica
o dotou, qual para ele, daquele sexto sentido para questões do intelecto. Ele
viu ali “um
libre penseur e
citoyen du monde, com um espírito
livre e tolerante, não o filho e cidadão de uma raça ou pátria, mas um
verdadeiro cidadão universal, para além dos países e dos tempos”. Como Erasmo
ou Castellio, aquele homem independente, comedido e original tornou-se uma
figura emblemática da melhor cultura europeia: humanista e iluminista antes do
seu tempo, soube ser humano numa época de desumanidade, em que também “os
fanatismos sociais e os nacionais destruíam o mundo de ponta a ponta”. O autor
de
A luta contra o demônio encontrou uma alma gêmea no gascão. Então ele
imediatamente concebeu a ideia de dedicar a ele um de seus magistrais estudos
históricos.
Montaigne também odiava a
irracionalidade e a violência de seu tempo e, horrorizado com a barbárie das
guerras religiosas, diante dos massacres perpetrados por huguenotes e
católicos, optou por retirar-se do mundo aos 38 anos, para usar o resto de sua
vida no que valia a pena: a calma leitura dos sábios autores antigos. Trancado
numa torre-biblioteca do castelo da família com mais de mil volumes por
companhia, conseguiu viver por quase uma década livre das penosas labutas da
época, e compôs seus
Ensaios. O entrincheiramento na “cidadela” interior
era sua forma de buscar a paz em meio à tempestade mundana. Zweig, de certa
forma, gostaria de fazer o mesmo, mas não aguentou: a catástrofe era gigantesca
demais para fingir ignorar.
A sentença de Montaigne sobre a
morte voluntária, um ato extremo de liberdade individual, foi uma premonição e
encorajamento para Zweig: “A vida depende da vontade dos outros, a morte da
nossa vontade”. Embora o autor francês tenha morrido em seu leito devido a uma
doença, Zweig, saudável e consciente, colocou em prática a máxima: após uma
visita ao carnaval carioca, o escritor e sua esposa se suicidaram com barbital.
A mensagem que deixou aos amigos, escrita de próprio punho, terminava com estas
palavras: “Saudações a todos os meus amigos! Que eles ainda vejam o amanhecer
após a longa noite! Eu, muito impaciente, passo à frente deles”.
As páginas que deixou escritas
sobre Montaigne são esplêndidas em sua sensibilidade. Zweig, com sua clareza
estilística e economia características, lembra o francês com pinceladas curtas
e firmes, situando-o no meio de seu ambiente sem esforço e sem sobrecarregar o
leitor. Aos que conhecem Montaigne, ele os encorajará a reler sua obra;
enquanto aqueles que ainda não o conhecem terão um vislumbre inesquecível do
pai da introspecção e intimidade modernas.
Juntamente com “Montaigne”,
O
Legado da Europa inclui uma miscelânea composta por textos mais curtos:
prólogos, críticas, obituários, homenagens, datados de diferentes períodos da
vida de Zweig.¹ O cultuado editor judeu Richard Friedenthal reuniu-os neste
volume póstumo (1960) com um título tão adequado, pois se refere, com efeito,
ao melhor do legado europeu, à cultura da liberdade e do cosmopolitismo, da
tolerância e da humanidade tão bem representado por Zweig e pelos personagens
literários e políticos a quem dedica seus textos; trata-se de uma herança
espiritual que nenhuma ditadura ou terrorismo local ou global jamais poderá
erradicar.
Encontramos várias joias neste
volume: uma resenha estupenda de
As mil e uma noites; os soberbos
retratos de Romain Rolland, Walther Rathenau e Jaurès (aproveitados para
O
mundo de ontem); o ensaio esclarecedor sobre Jakob Wassermann; os prólogos
aos livros japoneses de Lafcadio Hearn e ao romance
Niels Lyhne de
Jacobsen, bem como a um conto de E.T.A. Hoffmann. Também obituários
emocionantes, como os dedicados a Gustav Mahler, Joseph Roth e Rainer Maria Rilke.
Um denominador comum une todos
esses textos, tão variados e divertidos: a luminosidade da alegria de agradecer.
Zweig, otimista por natureza, europeu infatigável num continente sem
passaportes e fronteiras, que fez amizade com os intelectuais mais relevantes,
curioso por tudo o que é humano, manteve sempre a qualidade de recordar a
felicidade que a sua mera existência das pessoas que admirava e os livros de
que gostava lhe proporcionavam: foi por eles que sua vida valeu a pena ser
vivida, e seus magníficos artigos o justificam plenamente.
Notas da tradução
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