Treze tankas de Ishikawa Takuboku¹, em “Brinquedos Tristes” (1912)
Por Pedro Belo Clara
(Seleção e versões)*
I.
este som no meu peito
quando respiro
— mais solitário que o vento do inverno
II.
a filha tarda em regressar das suas brincadeiras
pego no comboio em miniatura
e faço-o correr
III.
de repente, senti
que teria de caminhar para sempre
nestas ruas à meia-noite
IV.
hoje, de novo, sake²
— conheço cada vez melhor
estas náuseas de beber
V.
como um comboio passando por campos desolados
esta agonia, de quando em vez,
atravessando o coração
VI.
de certo modo
é como visitar o sepulcro do primeiro amor
esta vida nos subúrbios
VII.
creio na chegada duma nova manhã!
— digo estas palavras com seriedade
mas…
VIII.
repreendendo várias vezes a minha debilidade
e, miserável, perguntando-me porque sou assim
fui pedir dinheiro emprestado
IX.
nestes últimos quatro ou cinco anos
nem por uma vez observei o céu
pode um homem mudar assim tanto?
X.
desperto, de repente, à meia-noite
com vontade de chorar, sem saber porquê
— puxo a colcha e tapo a cabeça
XI.
sem estar curado
ainda não estou moribundo
— cada vez mais amargos, os dias dos últimos meses do ano
XII.
encostado a uma almofada que trouxeram para a varanda
com ternura observo, depois de tanto tempo
o céu nocturno
XIII.
um cão branco passou junto ao jardim
voltei-me e perguntei à esposa
se poderíamos ter um³
Ishikawa Hajime nasceu num templo
budista, em 1885 (ou 86), na província de Iwate, no Japão. Foi o filho
primogénito do bonzo responsável por esse lugar de culto.
Com apenas treze anos edita um
livrete literário, impresso pela própria mão. Revelando muito cedo um enorme
gosto e interesse pela poesia, vê publicado, aos quinze anos de idade, os seus
primeiros tanka num jornal local. Na época, utilizava o pseudónimo Suiko,
alterado mais tarde para Hakuhin, até por fim decidir-se por aquele que o
imortalizará: Takuboku — ou “Pica-Pau”. Antes, porém, consegue publicar a sua
poesia numa revista de interesse e influência crescentes na época, a Myojo.
Nesta fase precoce, é possível observar como as linhas do trabalho de Ishikawa
revelam uma total adesão ao movimento naturalista — influência que abandonará
mais tarde.
Satisfeito pelo sucesso inicial e
aceitação do seu trabalho, decide abandonar a escola aos dezassete anos e perseguir
o sonho de construir uma carreira de escritor. Viaja até Tóquio e inicia trocas
de ideias com outros poetas, nomeadamente Tekkan, o pioneiro da revolução do tanka
e fundador da Myojo, e sua esposa Akiko, a poetisa feminista mais
controversa do período pós-clássico.
Em 1905 casa-se com a rapariga por quem se apaixonara aos quatorze anos e publica o seu primeiro livro de poemas, Admiração. O matrimónio, porém, revelar-se-á imensamente infeliz. Começa por encontrar trabalho como professor substituto e a esboçar as suas primeiras novelas, mas o sucesso das mesmas é muito, muito modesto. Inicia igualmente o seu percurso de jornalista, embora a maior parte dos trabalhos conseguidos seja como freelancer e revisor. Paralelamente, desenvolve actividade num outro género onde se notabilizará muito depois: o diarístico, com a particularidade de utilizar caracteres latinos para escrever em japonês (romaji) — de forma a que sua esposa não conseguisse ler aquilo que neles confidenciava, por um lado; por outro, como modo de contornar as complexas especificidades exigidas pela língua japonesa.
Já a viver em Tóquio com a esposa
e a filha, no ano de 1910, edita o seu primeiro livro de tankas, de nome Um
Punhado de Areia. No ano seguinte, com crescentes problemas de saúde, volta
a mudar de residência, desta vez optando por uma zona mais rural e tranquila.
Em março de 1912 a sua mãe falece, vítima de tuberculose. Há bastante tempo acometido por idêntica maleita, o poeta morre no mês seguinte, com apenas vinte e seis anos de idade — e poucos anos passarão, acrescentemos, até que sua esposa pereça da mesma doença.
Experienciando uma existência
bastante atribulada, fonte de diversos conflitos, problemas financeiros e de
saúde, e sem nunca ter verdadeiramente testemunhado uma admiração geral pelo
seu trabalho, que em muito contribuiu para a reformulação do género tanka,
podemos hoje afirmar que Takuboku foi um ensaísta, diarista e poeta de grande
inovação no seio dum Japão que atravessava um período de intensas agitações
sociais e políticas.
Se há quem o veja como um
novelista falhado, devido à pouca atenção que o público dedicou (e dedica) a
esses seus projectos, para a maioria será sempre um dos grandes mestres do tanka
no país, apesar de o próprio ter confessado, em cartas e diários, um certo
desprezo por essa forma literária — que até compunha com relativa frequência,
facilidade e fluidez.
Revelando-se um homem de grandes
ideais, acabou por considerar o seu trabalho escrito uma potente arma de
intervenção social. Diria, a respeito: “O que eu procuro na literatura é o seu
poder crítico”. Uma das causas, decerto, que o levou a abandonar a escola do
Naturalismo em prol do Socialismo, erguida ao patamar de “mote de vida” quando
um grupo de simpatizantes desse modelo político foi condenado à morte pelo
regime imperial. O poeta acreditava piamente no poder da literatura e
considerava que através do seu exercício poderia oferecer ao país a sua melhor
contribuição.
Os poemas que hoje aqui
partilhamos foram todos retirados da obra Kanashiki Gangu (Brinquedos
Tristes), um conjunto de 194 tankas publicado postumamente, em 1912. O nome
escolhido é deveras interessante e significativo, dado que Takuboku considerava
os tankas os seus “brinquedos tristes”. E por uma dupla razão: por só os
escrever quando assim se sentia e por considerá-los absolutamente inúteis para
o bem da sociedade. Foi por essa razão que o seu amigo e poeta Toki Aika,
encarregado de os reunir e publicar após a morte de Takuboku, decidiu-se por
esse curioso título.
Por algumas das circunstâncias que
já referimos, bem como pela proximidade da data do seu falecimento, este Brinquedos
Tristes é um livro de carácter bastante pessimista e decadente, onde ao
invés de se ocupar com questões ideológicas e sociais, o poeta vira o foco da
atenção para a sua própria existência, conferindo à obra um vincado cariz
intimista e, muitas vezes, confessional.
Takuboku, a dada altura da sua
curta existência, era um homem já vergado pelo peso da responsabilidade de ser
um chefe de família com um trabalho que gerava pouco dinheiro. Sofrendo intimamente
a sua vergonha, vivia cada mais encurralado pelas obrigações morais e sociais
que achava dever cumprir. E pouco o auxiliavam as constantes críticas e
julgamentos de sua esposa. Ademais, a sua condição física deteriorava-se de dia
para dia.
Por isto, os poemas nascidos
daqueles dias pouco luminosos exalam uma inegável melancolia obscura, uma
desolação niilista, um negrume palpitante em cada verso lido. Vários destes
foram escritos durante o seu último ano de vida, pelo que se compreenderá a
presença desses tons e colorações. Afinal, fora um período em que se registara
a morte da sua mãe, diversos conflitos com a restante família e amigos e
episódios duma notável pobreza material. Existiu ainda uma tentativa de
assassinato ao Imperador do Japão, o que motivou Takuboku a mergulhar com maior
afinco no seu trabalho literário, por forma a poder contribuir verdadeiramente para
uma reforma social no país. Esforços vãos, dada a sua fraqueza geral.
A mesma doença que havia ceifado a
vida de sua mãe acabaria, assim, por colocar um ponto final aos seus mais
notáveis planos. O amigo e poeta, outro dos maiores reformuladores do tanka
no país, Wakayama Bokusui, já neste espaço anteriormente abordado em termos de
obra e vida, deixou para a posteridade um dos mais belos poemas elegíacos
escritos em sua memória, pegando num símbolo do Japão, a cerejeira, e
despindo-a de sua beleza, pela força da dor sentida por tamanha perda.
Na praia de Oomori, em Hakodate,
lugar cuja beleza encantara o poeta, ergue-se uma estátua em sua memória.
(Seleção e versões)*
este som no meu peito
quando respiro
— mais solitário que o vento do inverno
a filha tarda em regressar das suas brincadeiras
pego no comboio em miniatura
e faço-o correr
de repente, senti
que teria de caminhar para sempre
nestas ruas à meia-noite
hoje, de novo, sake²
— conheço cada vez melhor
estas náuseas de beber
como um comboio passando por campos desolados
esta agonia, de quando em vez,
atravessando o coração
de certo modo
é como visitar o sepulcro do primeiro amor
esta vida nos subúrbios
creio na chegada duma nova manhã!
— digo estas palavras com seriedade
mas…
repreendendo várias vezes a minha debilidade
e, miserável, perguntando-me porque sou assim
fui pedir dinheiro emprestado
nestes últimos quatro ou cinco anos
nem por uma vez observei o céu
pode um homem mudar assim tanto?
desperto, de repente, à meia-noite
com vontade de chorar, sem saber porquê
— puxo a colcha e tapo a cabeça
sem estar curado
ainda não estou moribundo
— cada vez mais amargos, os dias dos últimos meses do ano
encostado a uma almofada que trouxeram para a varanda
com ternura observo, depois de tanto tempo
o céu nocturno
um cão branco passou junto ao jardim
voltei-me e perguntei à esposa
se poderíamos ter um³
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Em 1905 casa-se com a rapariga por quem se apaixonara aos quatorze anos e publica o seu primeiro livro de poemas, Admiração. O matrimónio, porém, revelar-se-á imensamente infeliz. Começa por encontrar trabalho como professor substituto e a esboçar as suas primeiras novelas, mas o sucesso das mesmas é muito, muito modesto. Inicia igualmente o seu percurso de jornalista, embora a maior parte dos trabalhos conseguidos seja como freelancer e revisor. Paralelamente, desenvolve actividade num outro género onde se notabilizará muito depois: o diarístico, com a particularidade de utilizar caracteres latinos para escrever em japonês (romaji) — de forma a que sua esposa não conseguisse ler aquilo que neles confidenciava, por um lado; por outro, como modo de contornar as complexas especificidades exigidas pela língua japonesa.
Em março de 1912 a sua mãe falece, vítima de tuberculose. Há bastante tempo acometido por idêntica maleita, o poeta morre no mês seguinte, com apenas vinte e seis anos de idade — e poucos anos passarão, acrescentemos, até que sua esposa pereça da mesma doença.
Ligações a esta post
>>> Leia doze tankas de Wakayama Bokusui
Notas
* As versões são a partir da
tradução espanhola de Elena Gallego e Masateru Ito em Tristes Juguetes (Hiperión,
2019).
1 Note-se que o poeta foi um dos
maiores reformuladores do género tanka. Além disso, destacou-se pelo
exercício do “estilo moderno”, ou “livre”, renegando os preceitos clássicos.
Somando os dois aspectos, e lembrando que o tanka tradicional deve
obrigatoriamente conter cinco versos, divididos em duas estrofes, num total de
trinta e uma sílabas, veja-se como Takuboku recorre somente a três, ignora a
imposição das sílabas e dilui a obrigatoriedade de recorrer a um discurso
formal (algo que utilizava raramente, por vezes limitado apenas a um só verso,
misturando-o com formas coloquiais). Poderá parecer, a certos olhares, não mais
que uma espécie de haiku longo, mas repare-se como nunca condensa o
verso, remetendo-o à brevidade desse outro género, talvez mais popular. O
poeta, como outros no seu tempo, resgatou o tanka das amarras clássicas,
que haviam perdido o seu sentido na época em que se vivia, conferindo-lhe, com
grande mérito, uma cor e um tom que até então não havia sido possível descobrir
nesta peculiar expressão poética.
2 Bebida alcoólica, de origem
japonesa, feita a partir da fermentação do arroz, após passar por um processo
de remoção dos seus óleos e proteínas naturais. Tradicionalmente, bebe-se à
temperatura de 35.º C, embora não de modo exclusivo, já que consoante a
temperatura em que for consumido o sake adquire diferentes sabores.
3 É com este poema que a obra se
encerra, o que o torna, muito provavelmente, um dos últimos poemas, se não
mesmo o último, que o poeta escreveu em vida. Adquire, por isso, um tom ainda
mais melancólico e comovente, numa existência já de si digna de compaixão. Ademais,
se por um lado, pelos valores da época, sublinhe-se, o poeta rebaixa-se ao
ponto de pedir autorização à esposa para ter um cão em casa, o que por si só
gera maior tristeza pela humilhação a que se assiste (revelando bem a sua
existência aprisionada), por outro sabemos que essa breve esperança, essa fátua
alegria nascida duma ilusão pueril não passou de um punhado de poeira ao vento,
dado que a sua vida não se prolongaria por muitos mais dias. Um tanka bastante
comovente sob diversas ópticas e sentidos.
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