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Dom Quixote visita uma gráfica em Barcelona. Desenho de Luis Paret y Alcázar. |
É possível que uma das condenações
dos clássicos seja que nunca os deixamos descansar, até porque também não nos
deixam descansar: um clássico é, como dizia Italo Calvino, um livro que nunca
se termina de ler, e um livro que sempre nos diz coisas sobre o presente. A segunda
parte de
Dom Quixote, a que faz da obra o primeiro e inesgotável romance
moderno, cumpre essa condição mais claramente do que outros livros. A lista
poderia ser muito mais extensa; mencionarei apenas três exemplos.
No capítulo LIII, após sua
experiência como governador da Ilha Barataria, Sancho Pança conhece Ricote, um
mouro natural de sua aldeia. Um édito de setembro de 1609 havia decretado a
expulsão dos mouros, completando a sinistra tarefa que os Reis Católicos haviam
iniciado ao expulsar os judeus em 1492. Ricote, disfarçado, vai com alguns
peregrinos alemães e quer recuperar o dinheiro que havia escondido na fuga
(aquando se publicam os regimentos de Castela, em 1610, os mouros ficaram
proibidos de sacar divisas). A mulher e a filha partiram para a Berbéria e ele
foi para a Alemanha, onde “cada um vive como quer, porque na maior parte dela
se vive com liberdade de consciência”. Ricote defende a decisão das
autoridades:
“me parece que foi a inspiração
divina a que levou Sua Majestade a tomar briosa resolução, não porque todos fôssemos
culpados, que alguns eram cristãos firmes e verdadeiros, mas eram tão poucos
que não podiam que não podiam ser comparadas aos que não o eram, e não era
certo criar a serpente no seio, tendo os inimigos dentro de casa.”
E mais adiante:
“Finalmente, com justa razão fomos
castigados com a pena do desterro, branda e suave na opinião de alguns, mas na
nossa a mais terrível que podiam nos dar. Onde quer que estejamos, choramos pela
Espanha. Afinal, nascemos aqui, é nossa pátria natural; em lugar nenhum achamos
a acolhida que desejamos em nossa desventura, e na Berbéria e em todas as
partes da África onde esperávamos ser recebidos, acolhidos e agradados, ali é
onde mais nos ofendem e maltratam. Não reconhecemos o bem até tê-lo perdido; e
o desejo que quase todos temos de voltar para a Espanha é tão grande que a
maioria daqueles que sabem a língua, como eu (e são muitos), volta a ela e
deixa lá suas mulheres e seus filhos desamparados: tamanho é o amor que têm por
ela. Agora conheço e sinto o que se costuma dizer: é doce o amor da pátria.”
Há uma exposição teórica que
parece justificar a expulsão. Mas Cervantes também introduz uma perspectiva
individual, e adota o ponto de vista de Ricote para mostrar a dor e o desamparo
de algumas pessoas que perdem seu lugar e seus bens por ação do Estado. A
realidade entra no romance. E, paradoxalmente, essa situação específica vincula
o livro ao passado recente e ao presente.
Um dos elementos que definem a
modernidade de
Dom Quixote, e sua capacidade de sugerir possibilidades e
universos narrativos a outros criadores, é o aspecto metaficcional. Embora os
jogos metanarrativos sejam múltiplos e variados e percorram o romance do começo
ao fim, eles são especialmente importantes na segunda parte.
Dom Quixote
é a história de um leitor e um dos seus temas principais é a própria
literatura, mas também o próprio livro e, nesta segunda parte, os seus
leitores. Dom Quixote e Sancho encontram personagens, como os duques, que já os
conheciam do livro anterior. Mas, além disso, a continuação espúria de
Dom
Quixote, a versão de Avellaneda, que incluía ataques pessoais a Cervantes,
torna-se um elemento da trama do romance. Essa relação estranha, misteriosa,
irônica e lúdica é um dos aspectos mais admiráveis e sugestivos do livro.
Esta segunda parte é, de certo modo, uma reivindicação da soberania do autor
sobre o mundo que imaginou. Ou seja: a afirmação dos direitos autorais está no
germe do primeiro romance moderno.
O uso da continuação dentro do
enredo leva ao terceiro exemplo. Seguindo uma pista do final da Primeira Parte,
Avellaneda situava o autor em Zaragoza. No capítulo LIX da continuação de
Cervantes, dom Quixote fica sabendo da existência desse outro livro e das
falsas aventuras a ele atribuídas:
“Pelo isso mesmo não porei os pés
em Zaragoza — respondeu D. Quixote — e assim mostrarei ao mundo a mentira desse
historiador moderno, e as pessoas poderão ver que não sou o dom Quixote de que
ele fala.”
Dom Quixote vai para Barcelona
evitando a capital aragonesa. No caminho ele conhece um bandido honorável,
Roque Guinart (embora a maioria de seus homens, infelizmente, sejam “gascões,
gente rústica e desordeira”). Barcelona é o cenário de alguns dos episódios
mais memoráveis e decisivos para
Dom Quixote, o encontro do
protagonista com o perigo real (e o reaparecimento de Ricote) e uma visita a
uma gráfica, onde cópias da falsa sequência do livr estão sendo preparadas.
Como já disse Sergio Vila-Sanjuán,
Dom Quixote transformou Barcelona na
cidade das publicações e dos livros, na capital literária da língua espanhola.
Notas da tradução
As passagens de
Dom Quixote
citadas no texto são da tradução de Ernani Ssó (Penguin/ Companhia das Letras, 2012).
* Este texto é a tradução livre para
“Tres maneras de leer el Quijote”, publicado aqui, em Letras Libres.
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