Três importantes escritores ucranianos de agora (1)
Por Mercedes Monmany
Diz-se que cada guerra encontra o
melhor ou os melhores cronistas literários para contar essa experiência atroz e
bárbara que quebra todos os parâmetros conhecidos da vida normal, civilizada,
em comunidades que até então não eram obrigadas a viver em um inferno dantesco
cotidiano e inimaginável. Se grandes obras como Nada de novo no front,
de Remarque, Por quem os sinos dobram, de Hemingway, ou Vida e
destino, de Vassili Grossman, contaram os horrores da guerra, vividos em
simultâneo, pode-se dizer que, no caso da atual guerra na Ucrânia, um magnífico
e avassalador romance como Orfanato, do poeta, músico e escritor Serhiy
Zhadan, será lembrado como uma obra insubstituível.1
Reconhecido como um dos importantes
poetas ucranianos da atualidade, além de filólogo que se doutorou com uma tese
sobre os futuristas ucranianos dos anos 1920, músico que se define como um “punk
proletário”, além de tradutor de Bukowski e Paul Celan, entre outros, Zhadan
recebeu com razão o Prêmio da Paz dos Livreiros Alemães não faz muito tempo.
Como poeta, iniciou a sua carreira
de sucesso em 1990 e os seus versos revolucionaram de imediato a poesia
ucraniana do momento, tornando-se um autor de culto e ligando-se ao estilo dos
escritores da grande vanguarda ucraniana do início do século XX, a qual dedicou
sua tese. Só de ler seu impressionante livro de 2020 Uma nova ortografia
(trad. livre de A New Orthography) o leitor fica abalado, poema por
poema. A extraordinária qualidade literária de cada uma das peças isoladamente,
a exposição avassaladora e dolorosa, seca, sintética, de um lirismo letalmente
prosaico e metafísico, entre o antissentimental e o austero, produz marcas
contínuas e inusitados curtos-circuitos no leitor. Algo que se repete, se
possível acrescentar, com a obra-prima que é o Orfanato. Um road novel,
com tons e atmosferas quase distópicas —à maneira de A estrada, de
Cormac McCarthy — pelas paisagens e lugares fantasmagóricos que a guerra deixa na
sua passagem. Especialmente na região onde o próprio Zhadan nasceu, em
permanente estado de decadência.
Serhiy Zhadan nasceu em 1974 em
Starobilsk, na região oriental de Luhansk, onde surgiram as Repúblicas
Populares separatistas pró-Rússia, em luta feroz com o governo de Kiev. Seu
lugar na literatura ucraniana, junto com autores como Andrei Kurkov, Yuri Andrukhovych
ou os magníficos poetas Lyuba Yakimchuk, autora de Damascos de Donbass (trad.
livre de Apricots of Donbas), e Marianna Kiyanovska (As vozes de Babi
Yar, trad. livre de The Voices of Babyn Yar) é excepcional. Uma
literatura, precisamente a ucraniana, como a que ensina o protagonista de Orfanato,
e que por força mudou nos últimos anos, desde a anexação da Crimeia em 2014
pela Rússia, que começou a armar os insurgentes. Como o próprio Zhadan disse, agora
escreve um tipo de literatura “diferente do que antes de 2014”.
A participação ativa deste
escritor, ou artista total, na política ucraniana começou quando era estudante
e continuou ao longo das várias crises políticas em seu país. Em 1992, ele foi
um dos organizadores do grupo literário neofuturista de Kharkiv, O Cardo
Vermelho. Ele participou das manifestações da Revolução Laranja de 2004 e, em
2013, integrou conselho de coordenação da Euromaidan em Kharkiv. Tudo isso
levaria à renúncia do presidente Yanukovych, apoiado pela Rússia. Desde 2014 e da
adesão da Crimeia à Rússia, Zhadan fez inúmeras visitas às linhas de frente da
região leste de Donbass, diretamente envolvida no conflito armado com os
separatistas apoiados pela Rússia. Ao longo de 2022, ano da invasão da Ucrânia
pela Rússia, Zhadan tem organizado e apoiado o transporte de medicamentos,
alimentos, produtos de higiene para a população civil e viaturas para hospitais
em auxílio de Kharkiv, onde vive.
O que é verdadeiramente
excepcional em seus textos literários sobre a guerra, sejam poemas ou romances como
o sombrio e ao mesmo tempo belo Orfanato, é que além de ceder ao caráter
urgente, propagandístico, pela dureza das situações e pelo que todos tem vivido
no dia a dia, o que se produz página após página é literatura da mais alta
qualidade e exigência. Suas imagens, metáforas, cenas espectrais, reflexões e
diálogos refletem toda a condição humana, sem engano ou doçura, além de todo
clichê e da busca artificial de impactos emocionais e fingimentos estéticos ou
de sensibilidades.
Em Orfanato se conta a
história, ou a jornada conradiana e apocalíptica, de três dias pelo coração das
trevas, de um jovem professor incrédulo e apolítico chamado Pasha em busca de
seu sobrinho preso numa escola bombardeada no meio da fila da frente. Ao longo
de sua jornada por estradas solitárias, prédios e pontes explodidos, passando
sem parar por postos de controle de uma frente mutável em que ninguém confia em
ninguém, os sotaques são espionados e quando se diz “os vossos” os alarmes
disparam de repente, todas as guerras parecem já ter acontecido. Também uma
terceira e temível nuclear.
Este porão — dirá com triste
ironia a diretora da escola ou orfanato que, junto com o professor de educação
física, são os únicos que não fugiram e ficaram cuidando dos alunos — foi
construído nos tempos soviéticos como um abrigo antiaéreo. Caso a Terceira
Guerra Mundial estourasse. Foi construído especificamente para nós.
O romance conta a história desse
jovem professor ucraniano da região de Luhansk (cuja cidade fictícia é batizada
de “a Estação”), enquanto ele atravessa o terreno disputado entre o território
controlado pelo governo ucraniano e as regiões capturadas pelos separatistas
apoiados pela Rússia. O jovem Pasha mora com o pai, um ex-ferroviário, que mal
sabe mexer no celular velho, mesmo assim está permanentemente conectado à TV:
uma espécie de “chama eterna”, que ele não apaga nem mesmo quando dorme.
De sua parte, Pasha, no último ano
da guerra, recusou-se a ouvir as notícias “geralmente aterrorizantes”. Sua
missão agora será resgatar o sobrinho de treze anos, preso longe deles, num orfanato
do outro lado da frente de guerra. A irmã de Pasha trabalha como maquinista e,
sem poder cuidar do filho, Sasha, o manda para um internato. Embora seja
chamado de orfanato em ucraniano, na verdade funciona como uma escola interna
não apenas para órfãos. Nos tempos soviéticos, os internatos eram lugares onde
as crianças podiam ser deixadas indefinidamente e de graça, embora em condições
muitas vezes desanimadoras e até com risco potencial de morte, enquanto seus
pais estavam ocupados em outros frentes construindo o comunismo.
Este romance de 2017 foi escrito
na primeira fase da guerra, quando os combates se limitavam a Donbass. Cinco
depois, quando da invasão, tudo recrudesceria e os mísseis russos espalhariam para
além dessas fronteiras as cenas de terror: para Kiev, Odesa, Kharkiv, Kherson,
Mykolaiv. Enquanto o exército ucraniano lutava para defender Kiev dos invasores
russos, decidiu explodir as pontes para a capital. Quando Irpin, um rico
subúrbio de Kiev, foi atacado pelos russos, os moradores precisaram fugir a pé,
atravessando o rio sob uma ponte destruída. Agora é apenas uma cidade fantasma.
O cenário que Pasha atravessa até
chegar à escola onde está o sobrinho é apocalíptico, do fim do mundo, pelo
menos do mundo conhecido até então. Não faltam pontes explodidas, multidões que
vagam como zumbis de um lugar para outro (“alguns caminham sozinhos, outros
formam grupos de duas ou mais pessoas, saem laboriosamente de trás da linha do
horizonte, mas devem avançar, aproximando-se teimosamente, guiados pela
bandeira do seu país sobre o posto de controle que lhes serve de referência”),
cidades em ruínas, estradas fantasmagoricamente desertas, prédios residenciais
bombardeados com “os móveis derramados para fora, como as entranhas de alguém
depois de serem cortados”, barreiras de controle e mais barreiras de controle
com soldados que Pasha às vezes “não consegue entender que língua falam, se russo
ou ucraniano”, patrulhas militares com comandantes acompanhados por seu
ajudante de campo “que parecem cantores de ópera, com vestimentas de aparência
estranha e ombreiras com insígnias não identificadas, enquanto enfeites em
forma de cruz pendem do peito e carregam um casaco de pele de castor sobre os
ombros”.
De vez em quando alguém, como um
profeta clamando ante um mundo em fuga, ante a gente guiada pelo pânico dos bombardeios
e da destruição, abandonando suas casas, “deixadas nas mãos de seus inimigos”,
começa a gritar com todos, cerrando os punhos: “Como podemos fugir e deixar a
cidade como traidores?... Como é possível? Quem responderá por isso? Olezha,
meu compadre, sequer consegui enterrá-lo, arrastá-lo para a neve, continua ali,
carbonizado, no posto de gasolina. Quem cuidará dele? Quem resgatará seu corpo?”
A jornada de Pasha logo se
transforma em uma missão difícil, quase suicida. Antes de se colocar em marcha,
a desconfiança em relação às notícias é total. A propaganda vinda da Rússia é
incessantemente uma eficiente arma de guerra usada contra a Ucrânia. Mas sua
irmã implorou para que ele trouxesse o sobrinho de volta e por isso não hesita
em partir no lugar de seu pai idoso.
A caminho do orfanato, passa por
soldados, postos de controle ou encontra cínicos correspondentes de imprensa,
como o americano Peter, que lhe conta que ia pescar com o pai no Pacífico, o
que Pasha o fazia em pequenos rios ucranianos. Por fim, chega a um motel de
dois andares ironicamente chamado Paradise, com as janelas quebradas pelas
explosões. “É como o primeiro círculo do inferno”, diz um personagem. Muitas
pessoas deixaram a cidade. Os que permanecem se escondem em porões úmidos, com quase
nenhuma eletricidade, comida ou água potável.
Desde o início de sua carreira, a
poesia de Zhadan girava em torno de sua terra natal. Ou seja, as paisagens
industriais do leste da Ucrânia. Seu romance de 2011 Voroshilovgrad (o
nome soviético para Lugansk) contava a história de um jovem chamado Herman que
deixou sua cidade natal, Starobilsk (na região de Lugansk), mas teve que
retornar à sua terra natal para proteger o que amava. Esse não-lugar é o que
continuará existindo fantasmagoricamente em Orfanato.
Algumas das melhores e mais
comoventes páginas deste romance remontam tanto à descrição daquele lugar natal
desolado, quanto às lembranças da infância triste e empobrecida de Pasha, de
seus sonhos e ilusões simples, infinitamente desfeitos, almejados com febril e
desesperada emoção. Por exemplo, sair de férias apenas por poucos dias e graças
a um voucher que a mãe conseguiu para o balneário de uma cidade vizinha, num
pinhal, à beira do rio. Algo que parece “irreal” para toda a família, pois há
muito tempo não ganham nada: “A cidade vizinha não é o litoral sul, claro, mas
um buraco como a Estação, mas precisará pagar um extra pelas crianças, além das
despesas de hospedagem e alimentação”.
Por fim, feitas as contas, não
vão. Pasha, que nunca teve uma mochila, mas que enfiara às pressas a primeira
coisa que lhe veio à mente — seus romances policiais favoritos, um suéter
grosso, um velho par de óculos escuros encontrado em uma gaveta — numa sacola
puída de mercado, começa a chorar ao perceber que, como sempre, não acontecerá
nada: “Nenhum esporte, nenhuma excursão ao bosque, nada”. Tem então treze anos,
a mesma idade do sobrinho agora perdido num orfanato, mas a ausência de um
futuro previsível numa zona industrialmente decadente, devastada, abandonada à
própria sorte, vai tornar-se uma constante. Exceto no caso de se tornar um funcionário
público. Em um professor, por exemplo, como o próprio Pasha dirá. Professor de
língua ucraniana, para ser exato. “Isso é o mesmo que ensinar latim”, dirá
sarcasticamente o cínico jornalista estadunidense Peter.
Na época da infância de Pasha,
após o colapso da antiga União Soviética, no início dos anos noventa, seus pais
começaram a faltar trabalho: não ganhavam nada e, no entanto, “continuavam indo
para a estação todas as manhãs, como uns malditos autômatos”. Como um Detroit
do Leste abandonado e dilapidado, mas ainda em plena atividade, a Estação
rapidamente cai em desuso, à medida que o mato invade os trilhos da ferrovia e
o prédio assume “a aparência de um veleiro saqueado por piratas, do qual apenas
as paredes e janelas permanecem de pé”. O país havia mudado drasticamente. No
entanto, os vizinhos do entorno ferroviário não conseguiram mudar, “faltavam os
mecanismos necessários”. Assim, dispostos a cumprir os planos “cem ou cento e cinquenta
por cento... só que ninguém mais se preocupa com seus compromissos”, todos
continuam indo para o trabalho pelo qual deixaram de receber: “Só porque não
fizeram outra coisa da vida, levantam-se de manhã como um escravo nas galés e
dirigem-se para a praia de manobras da Estação”.
Assim que alcança o sobrinho,
Sasha, e o leva de volta para casa, Pasha esbarra uma última vez com Peter, o
correspondente estadunidense em sua anorak de “marca cara, suas botas
enlameadas, uma mochila”, que se oferece para levá-los à Estação. A despedida
entre os dois será seca, abrupta. “Talvez você pense que sou um idiota”, diz o
jornalista, enquanto Pasha fica em silêncio. Ao se afastar, o sobrinho o
repreende: “Por que você agiu assim com ele?” Ao que responde: “Porque realmente
não se importa com ninguém. Tampouco se interessam por nós. Ele partirá e nós ficaremos.
Isso é tudo”.
Notas da tradução
1 Todos os títulos traduzidos sem referência ao original, como aqui, são versões livre dos títulos em língua espanhola. A observação também serve para os vários excertos das obras ao longo do texto.
Serhiy Zhadan. Foto: Hanna Hrabarska |
1 Todos os títulos traduzidos sem referência ao original, como aqui, são versões livre dos títulos em língua espanhola. A observação também serve para os vários excertos das obras ao longo do texto.
* Este texto é a tradução livre de “Tres grandes escritores ucranianos de hoy”, publicado inicialmente em El Cultural.
Comentários