Por Pedro Fernandes
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Liev Tolstói. Foto: RIA Novosti |
Há muito que a crítica evidenciou como
Liev Tolstói buscou concentrar na prosa curta as alargadas dimensões do
romanesco.
Padre Sérgio parece ser um exemplo singular nesse sentido. Aqui
a narrativa contempla quase toda a extensão da vida de seu protagonista, Stiepán
Kassátski. As estratégias adotadas pelo escritor russo são variadas, certamente.
No caso dessa novela, prevalece alguns fios, diríamos, invariáveis da alma
humana que ora afirmam certa unidade da personagem e, por conseguinte, da
narrativa, ora trabalham para o estabelecimento das tensões, isto é, questionando
os próprios limites da possível invariabilidade. Todo o conflito se nutre de
certo corte platônico, entre o real e o ideal.
Encravado no interior de uma
radical racionalidade, Kassátski revela-se de imediato a partir de duas
qualidades entre as mais evidentes da sua persona: é um homem obstinado e
acentuadamente interessado na perfeição. Como entre nossos interesses e escolhas
e as inexoráveis linhas do destino encontram-se variáveis sempre escapáveis do
nosso controle, este nobre é, repentinamente, submetido às roldanas do inesperado:
uma vez comprometido com a condessa Karotkóva e ingressado na estirpe social
almejada descobrirá que a mulher fora antes a amante daquele por quem ele tem
com efígie, porque modelo para si e mesmo adoração. Já aqui, registre-se uma
terceira característica dessa personagem: certa facilidade para o reconhecimento
de sua inferioridade, fazendo-se submissa, antes de investir na ultrapassagem
do que poderia se tornar uma condição sempre guiado por um olho no poder.
Desconcertado com o engano — uma
trapaça em que o gesto amoroso subverte a estreita porção de racionalidade com
a qual conduz todos os propósitos da sua vida — o nosso protagonista decide
abdicar de tudo e se converter em monge. Se a decisão é recebida com surpresa pela
grande maioria dos seus mais próximos, a irmã, talvez melhor conhecedora dos amplos
limites de um obstinado, compreende perfeitamente o gesto de Kassátski: ao renunciar
a vida mundana pela espiritual, ele demonstra continuar a ser o nobre e
superior que almeja (mas já se percebe), desde sempre, se tornar. O monastério constitui
para o ingressante uma passagem para o ponto acima da vida comum, porque
liberto de todo o pecado.
Além dessa falsa segurança com a
qual se distingue em relação ao mundo, chama atenção a facilidade de Kassátski em
se submeter ao stáriets, transferindo para o sacerdote a identidade modelar perseguida
na figura do amigo Nikolai Pavlovitch; “Em geral, durante esses períodos [quando
nele apontavam alguma lembrança do mundo exterior] Kassátski vivia não sob sua
vontade, mas sob a vontade do stáriets, e nessa resignação havia uma particular
tranquilidade”. Assim é que para o futuro padre Sérgio, “a salvação era a
obediência, o trabalho e o dia todo ocupado com orações”.
É importante sublinhar que a
perseverança deste homem, uma vez no monastério, não tarda a ser transformada numa
qualidade a serviço da ambição de eternidade. Se bem acompanhamos, outro acento
de uma conduta manifesta ainda quando o interesse é pela vida nobre. Por mais
exemplar que seja seu papel na preparação para o sacerdócio, tal conduta
aparece submetida ora ao desejo de poder, como dissemos, ora a certa qualidade
que paira sobre todas as evidenciadas até agora, a vaidade,
aquele que almeja
ser sempre melhor que.
O restante da vida de padre Sérgio
é convencer-se de sua santidade, compreendendo nesta uma forma superior de vida,
acima dos desígnios humanos e terrenos. Esse ideal de salvação entra em crise
toda vez quando a profissão o reconduz para a existência o convívio comum:
primeiro como sacerdote numa igreja de São Petersburgo, quando se reconhece
incapaz de resistir às tentações do mundo, por uma natureza que seus superiores
qualificam como incapacidade de renúncia aos vícios do plano prosaico; depois,
quando outra vez retirado para a solidão do monastério, é tentado pela misteriosa
e sedutora Mákovkina num plano despropositado que finda no ponto do contrário da
sua hipótese; e, por fim, uma vez conquistada a primeira parte da glória
eterna, a fama terrenal de santo, o operador de milagres, se encontra enrascado
nas artimanhas da bela e neurastênica filha de um importante comerciante,
circunstância que o empurra para o périplo de mujique e para a descoberta da
inexistência de Deus entre os que vivem para o orgulho mundano.
A submissão do homem ao seu
semelhante, independentemente de como esse outro se apresenta, seja como líder,
seja como dogma, seja ainda como santo, embora esteja no funcionamento das relações
desde o aparecimento da coletividade e com ela dos sistemas que a sustenta, entre
eles a religião e a cultura, é denunciada em
Padre Sérgio. Qualquer
alienação é, minimamente, três vezes má: porque submete, porque acaudilha, porque
anula o indivíduo.
E, por falar em indivíduo, Liev
Tolstói observa com essa novela como parte das qualidades secretas que ordena o
particular participa e interfere no âmbito das forças coletivas. A religião
cristã, por exemplo, é desvelada aqui como um projeto calcado na culpa, na
negação e na submissão para a redenção, condição que se ilumina por um ideal de
santidade que reúne algumas das nossas idiossincrasias mais estéreis, quais a
ambição, o orgulho e a vaidade. Essa é uma questão recorrente no restante da
literatura, como se observa antes com Dostoiévski ou depois com Thomas Mann e
entre certa parte da obra dos autores naturalistas e realistas, caso do nosso
Inglês de Sousa.
Em Padre Sérgio essa dinâmica
dos vícios não se estabelece apenas de cima para baixo. Também ocorre pela via
inverso, como se demonstra nas intermináveis peregrinações ao homem-santo em
que as gentes por vezes interessadas no milagre para a aquisição do mais
tacanho, expropriando sem quaisquer pudores os limites finitos porque humanos
de Sérgio. Tolstói repara na existência como um interminável campo de degredo
nem sempre administrado pelas qualidades positivas do homem; assim é que os
vícios de Kassátski são os dos que os cerca em todas as camadas sociais.
Sabe-se que esse livro integra as
produções de Liev Tolstói que questionaram várias diretrizes do dogma cristão, postura
que o fez integrar a lista dos excomungados da Igreja Ortodoxa. Entretanto, Padre
Sérgio não se reduz ao panfletário e examina o campo religioso em amplo
aspecto. Seu protagonista, extremamente humano e incapaz de se reduzir
totalmente em nome de uma ideologia ou de se posicionar armado de uma
contraideologia, não desfaz as resoluções da religião, as coloca em questionamento.
Antes de se assumir um iconoclasta, um inconformista ou um revoltado admite-se sempre
um incapaz de alcançar todo o ideal oferecido pelos desígnios da fé e se
demonstra uma consciência em aprendizagem que descobre no seu semelhante qual a
resposta para apaziguar seus anseios e ambições: a humildade e dedicação ao
semelhante.
É aqui que o relato do belo
príncipe comandante do esquadrão de honra do regimento de couraceiros que um
dia abandona seus rendimentos e o casamento com uma dama-de-honra protegida da
imperatriz para se dedicar à vida monástica se confunde com a hagiografia,
incluindo o instante da revelação — nesse caso o sonho que o coloca em contato
com um episódio da infância marcado por uma menina a quem o sacerdote em crise interpreta
como a única capaz de dizê-lo afinal qual seu caminho.
O destino de Sérgio, de alguma
maneira transformado em mito depois do seu périplo como mujique até o
reencontro com Páchenka, assemelha-se ao de Santo Sérgio, reverenciado pelas
bases do cristianismo ortodoxo e católico, considerado o formador da
mentalidade espiritual russa e espírito basilar na união da Rússia. Ao se
descobrir ser para o outro e não para a vaidade humana na vida comum e abnegada
dessa velha, a personagem de Tolstói se confunde com o santo que funda um novo
tipo de fraternidade centrada na solidão e no trabalho.
Sem o aspecto doutrinário, ou este
substituído pelo fabular, Padre Sérgio é uma novela sobre a conversão do
homem para a vida, talvez a única redenção que nos reste duradoura e plena de
sentido porque feita para e entre nossos semelhantes. Para o celestial, o terreno;
para o santo, o humano. Para a eternidade, o agora; para o milagre, a virtude
da partilha. Desde então, Tolstói continua a pregar no deserto, mas com ainda a
mesma razão indispensável aos homens de todos os tempos.
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Padre Sérgio
Liev Tolstói
Beatriz Morabito (Trad.)
Companhia das Letras
120 p.
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