Os abismos, de Pilar Quintana

Por Gabriella Kelmer

Pilar Quintana. Foto: Victoria Iglesias


 
Em Os abismos, de Pilar Quintana, os infelizes núcleos familiares, ao contrário dos que ocuparam as páginas de Tolstói, têm muito em comum. Em meados dos anos oitenta, na cidade de Cáli, localizada em um úmido vale no sudoeste da Colômbia, as angústias e dilemas experienciados em primeira pessoa pela menina Claudia reproduzem-se nas vidas que a rodeiam. A repetição de temas, executada ao longo de toda a narrativa, parece ser elaborada com vistas a evidenciar problemas geracionais e de época, vinculados à frieza das relações familiares em um excerto da classe alta colombiana, cujas mulheres se esvaem nos matrimônios, nas gravidezes indesejadas e no eterno tédio doméstico.
 
Claudia, fruto de um casamento arranjado e da herança de mortos impassíveis, a quem conhece apenas por porta-retratos, tem oito anos e muitas histórias sem final feliz. Ela sabe, pelo que ouve da família, que a avó materna afirmava abertamente não ter desejado ter filhos, enquanto a avó paterna, unida em matrimônio aos dezesseis anos com um homem várias décadas mais velho, morrera no parto da segunda gravidez, quando deu luz ao pai de Claudia. No próprio núcleo familiar, a mãe, em outro casamento com diferença etária, concretizado a partir da pressão de terceiros, vive sem grandes turbulências, mas também sem amor. Sua realidade pouco tem a ver com o que desejara para si na juventude, sendo nesse sentido que as diferentes famílias se assemelham: em todas elas, não há mulheres felizes, mas apenas arrastadas pela vontade alheia. É justamente nesse contexto que a mãe de Claudia, cuja palpável falta de ânimo para as obrigações domésticas e maternais é evidente, envolve-se em um relacionamento extraconjugal.
 
A menina vê sua realidade alterada pelo caso de infidelidade entre a mãe e o marido dessa tia. O pai, Jorge, a quem as obrigações profissionais ocupavam seis dos sete dias da semana, torna-se, depois de um episódio de violência, ainda mais silencioso; a mãe, de quem a menina herda o nome, submerge em uma depressão profunda. O divórcio não se concretiza, e, na vida doméstica, aprofundam-se os abismos que cercam os membros da família.
 
O romance acompanha o núcleo familiar pelas repercussões do caso extraconjugal, período no qual a mãe entra em depressão, e pelas fases cíclicas relacionadas à doença: os curtos períodos de melhora, quando, inquieta, a mulher demanda uma mudança na rotina, que toma forma como uma ida a uma quinta nas férias ou como a ocupação temporária com um trabalho de vendedora; e os momentos de descida ao adoecimento, que parecem recuperar espaço assim que as novidades se desgastam, dando lugar a discussões sobre o suicídio feminino e a exaustão frente às obrigações.
 
É do ponto de vista da filha, Claudia, que a obra toma forma. A narração é elaborada de forma a evocar a infância de uma narradora mais experiente, que já viveu e estruturou tudo que conta, mas mantém, de maneira hábil, a autenticidade do olhar infantil. Ao relatar os encontros da mãe com o amante, por exemplo, a narração organiza claramente os indícios da traição, sem, entretanto, apressar a criança em direção à descoberta. Assim, sem nomear a traição, a narração reproduz a compreensão intuitiva da transgressão materna por parte da menina, evitando entrar nas tecnicalidades e implicações maduras do adultério.
 
No que diz respeito à doença materna, a obra também é bem-sucedida em conservar a simultaneidade da incompreensão e da percepção repentina no confronto entre infância e depressão. A mãe, ao justificar a indisposição e clausura, bem como as crises de choro, diz à filha ter crises de rinite. Mesmo preocupada com os ipês que floresciam em Cáli, supostos responsáveis pelos problemas respiratórios da mãe, Claudia logo observa, de modo mais incisivo e precoce do que qualquer outra personagem, a seriedade e persistência do problema.
 
“Por fim se mexeu. Ela se ergueu da cintura para cima. Naquele momento estava na pior fase da rinite. Só se levantava da cama para ir ao banheiro. Recusava o café e as torradas que Lucila levava para ela. Claudia, agora não, me dizia quando eu entrava para dar oi; Claudia, fecha a porta; Claudia, me deixa sozinha." (Quintana, 2022, p. 108)
 
O cotidiano, dividido quase exclusivamente por mãe e filha, faz com que a menina seja a interlocutora mais frequente da mãe. É nesse contexto que Claudia observa como consegue alguma atenção materna, nos momentos de absoluta apatia, ao mencionar a morte trágica de algumas mulheres famosas. A obsessão da mãe pelo fim da princesa Grace de Mônaco, da atriz Natalie Wood e da cantora Karen Carpenter, cujas mortes decorreram, respectivamente, de um acidente de carro, um afogamento e um caso severo de anorexia, advém de sua interpretação irremovível de que cada uma delas desejou morrer.


As histórias — narradas pela mãe, mas ocasionalmente lidas a fundo nas revistas maternas — passam a habitar o imaginário da criança, que discute cotidianamente os casos e o suicídio. Ela descobre, nesse ínterim, que algumas pessoas sofrem com a vontade de encerrar a própria vida.
 
“Vi minha mãe magra, desbotada, com o nariz descascado de tanto assoar, o peito e os olhos fundos. Eu a enxerguei de verdade.
— Mamãe, você quer viver?
Ela me olhou pelo reflexo por um instante. Logo em seguida desviou os olhos.
— Não pergunte bobagens.” (Quintana, 2022, p. 112)
 
A doença materna, apesar de evidente para a menina, só ganha nome e forma quando a morte de Gloria Inés, prima da mãe que alegadamente se atira do décimo oitavo andar, transforma novamente a vida da família. É então que Claudia descobre a depressão e suas consequências.
 
Nesse ponto, a obra perde um pouco sua força. À discussão do suicídio feminino, reiterada em todo o romance, falta um pouco de sutileza. Os paralelos estabelecidos entre Gloria Inés e a mãe de Claudia — cujos maridos são muitos anos mais velhos e os filhos, desgastantes, a quem as plantas são uma ocupação compartilhada e a solidão uma presença frequente — são excessivamente evidentes, restando a impressão de uma abordagem didatizante do tema, como se a conclusão do perigo iminente à vida da mãe da criança não pudesse ser alcançada sem uma alusão expressa.
 
Esse parece ser um problema que adentra a terceira e quarta partes do romance. Após a morte da prima e amiga, a mãe de Claudia sugere, durante as férias escolares, a mudança de ares, com a ida à quinta que pertence a uma família que conhecera na juventude. Também nessa família há um caso misterioso de desaparecimento da matriarca, Rebeca (em possível alusão à polêmica obra homônima de Daphne du Maurier), que não volta para casa em uma noite de neblina. Toda a sequência da história, pela qual mãe e filha se tornam obcecadas, expande a impressão do uso do suicídio — ou, considerando o não apaziguamento da causa das mortes, das tragédias protagonizadas por mulheres — como um recurso esquemático no romance, a desenhar a repercussão do tema no núcleo familiar de Claudia, o que seria apreensível sem tantas explicações.
 
Os momentos altos da obra ocorrem, ao contrário, na intimidade da relação entre mãe e filha. A autora é precisa ao captar o efeito devastador da doença mental. A figura materna, no romance, é cercada por um vazio intransponível, e seus cuidados — de uma frieza observada pela filha mesmo antes do adoecimento — esvaem-se quase inteiramente durante as crises depressivas. O foco no outro lado dessa dor, pelos olhos da menina que assiste à indiferença da mãe e resta cada vez mais sozinha, vulnerável e ressentida, reverbera intensamente: na forma de uma boneca, posta à mesa de jantar como companhia contra a solidão; de um presente, feito com carinho por semanas e ignorado pela mãe; de um risco à vida, incapaz de produzir qualquer reação materna; da humilhação, perante a turma, de um dever de casa malfeito. Perante todos esses acontecimentos, não é surpreendente observar que Claudia, aos oito anos, desejaria ter outra mãe.
 
E, entretanto, o romance é arguto em ensejar reações opostas perante a esta figura. É impossível não susceptibilizar-se por ela pela doença e sofrimento psíquico, bem como pela vida escolhida pela repetida negação de alternativas mais apropriadas. É igualmente difícil não a ressentir pelo descaso e pelo despejamento imprudente de suas dores nos ouvidos da filha, que se tornam, à consciência infantil, fantasias de monstros, penhascos e mortes. Mas a mãe que se recusa a dormir com a criança, numa dessas noites de terror, é a mesma que, dando a doença um respiro, surpreende ao estar presente, comparecendo à primeira eucaristia de Claudia ou resgatando o presente ora ignorado. A partir dessa oscilação, o romance elabora, de forma efetiva, a confusão que acomete aqueles que vivem no entorno da doença mental e não têm alternativa a não ser assistir ao desmoronamento do ser humano e ao abalamento de todas as suas relações.
 
Também em termos linguísticos a obra é bem executada. A linguagem enxuta e descritiva não carece de expressividade. O modo como se organiza a narração é comedido, de modo que as imagens, quando são resgatadas, apresentam implicações dentro do enredo. É esse o caso das menções aos abismos que cercam a família: a escada que separa os dois andares do apartamento como um “precipício, os degraus parecendo o penhasco partido embaixo” (Quintana, 2022, p. 15); os dezoito andares, “precipício mortal” (Quintana, 2022, p. 117), que levam Gloria Inés à morte; o abismo das quintas, que faz Claudia se sentir pequenina “diante do desfiladeiro de verdade” (Quintana, 2022, p. 167). Há também o outro abismo, materno, familiar, que não cessa com o fim da narrativa.
 
Por todos esses pontos, Os abismos é uma obra promissora, se algo explicativa demais, e sua leitura é recomendada. Em anos vindouros, será interessante acompanhar a evolução do estilo de Pilar Quintana, que trata honestamente — com as contradições vinculadas à temática — as obscuridades das relações familiares.

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Os abismos
Pilar Quintana
Elisa Menezes (Trad.)
Intrínseca
272 p.

Comentários

Sérgio Linard disse…
Da autora, li o "A Cachorra". Ali, tive sentimentos parecidos com os seus aqui, especialmente por ver uma grande sequência de tragédias que não pareciam ser desenvolvidas para outra coisa se não chocar e/ou ensinar algo. A narradora, porém, já me chamava atenção positivamente; o trabalho com a linguagem é digno de atenção pelo menos. Sua resenha me despertou vontade de ver a autora em textos mais robustos, muito obrigado por partilhá-la.
Anônimo disse…
"Os abismos" não é o romance de estreia de Pilar Quintana.

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