O melhor romance espanhol dos últimos cinquenta anos

Por Raúl Cazorla

Juan García Hortelano. Foto: Ricardo Gutierrez


 
1 Os rivais
 
Dar prêmios é fácil, o difícil é concordarmos com os escolhidos e, embora não haja motivos para os livros, discos, filmes, competirem entre si, embora não exista uma coisa como “O melhor romance espanhol dos últimos cinquenta anos”, suponho que de vez em quando são necessários cartazes, letreiros de néon, sinos. Quem tem medo do prêmio feroz, me perguntei certa vez, quando a princípio só parece existir vantagens nos certames: ganham os premiados, os meios têm um estupendo evento informativo, a editora consegue a carta de promoção, os leitores escutam novos nomes. Os únicos que perdem, claro, são os não vencedores, que absurdo mais óbvio, já que essa falta de reconhecimento público às vezes se torna causa de ostracismo editorial, crivo dos leitores ou, pior ainda, um progressivo silêncio literário com o passar dos anos.
 
Ao selecionar o título deste artigo, já havia decidido há muito tempo, sem passar por nenhum sistema complexo de seleção, qual era, a meu ver, o melhor romance espanhol dos últimos cinquenta anos (“espanhol” é usado aqui apenas com seu valor gentílico, é claro). Mas, eu trapaceei. Meu objetivo não é a tirania dos nomes — a hierarquia na literatura é absurda —, mas chamar a atenção para esse romance, falar por que ele é excepcional e merece mais leitores, mesmo que já tenham se passado tantos anos desde sua publicação. Afinal, não falta preciso consenso: isso não é uma aula de anatomia, apenas um jogo de palavras.
 
Para aligeirar o andamento das coisas, para que este texto não seja uma revisão do cânone dos últimos quarenta anos, para os quais ainda falta tempo, debrucei-me sobre os grandes títulos dos anos sessenta (apenas a partir de 1966) e setenta, período da grande eclosão da narrativa espanhola, a meu ver, impulsionada pelo boom editorial da narrativa latino-americana, e pelas décadas de grande transformação social e cultural da Península.
 
Comecemos pelos santos. Tiempo de silencio (trad. livre Tempo de silêncio) de Luis Martín-Santos, talvez o romance estilisticamente mais radical publicado na Espanha nos anos 60, fica de fora do debate porque sua primeira edição é de 1961; Camilo José Cela publicou nessas décadas dois de seus romances mais reconhecidos, San Camilo, 1936 (1969) e Ofício de trevas 5 (1973); Miguel Delibes, muito mais prolífico, publicou entre outros o famoso Cinco horas con Mario (trad. livre Cinco horas com Mario, 1966) — Las Ratas (trad. livre As ratas) é de 1962. Qualquer um deles mereceria o título, suponho, mas já dissemos que os consagrados não precisam de mais publicidade gratuita, então por que continuar? Além disso, acho que já insinuei o suficiente que este prêmio obedece aos meus falíveis critérios, e a verdade é que nem Cela, que é um prodigioso mestre da língua espanhola, nem Delibes, um contador de histórias nato com um ouvido prodigioso para o castelhano, estão entre meus clássicos pessoais. Cada um na sua, como dizia Sciascia.
 
Um dos mais bem avaliados daqueles anos para mim é Parte de una historia (trad. livre Parte de uma história, 1967), de Ignacio Aldecoa, o último romance do autor antes de sua morte em 1969. Surpreende-me que não seja mais conhecido: uma história prodigiosa ambientada numa aldeia de pescadores situada numa ilha perto de Isla Mayor (tradução fictícia de Lanzarote), é escrito em prosa cuidadosíssima, afiada como um machado, que nunca cai em clichês retóricos ou simplismos. Mais famoso como contista, Aldecoa demonstrou com Parte de uma história que dominava o gênero do romance (curto) com uma desenvoltura avassaladora. O que talvez tenha sido visto em algum momento como um defeito (é uma espécie de diário de viagem e, portanto, foge ao realismo social vigente) tornou-se uma de suas grandes virtudes: um romance sobre o destino inevitável (o individual e também o coletivo) contado com atmosferas de traços claros e opressivos.
 
O romance premiado mais previsível seria Si te dicen que caí (trad. livre Se te disserem que caí, 1970), de Juan Marsé, talvez o melhor romance dos últimos cinquenta anos se esta fosse a lista de um júri acadêmico e não a de um simples leitor. Depois de ter publicado vários romances magníficos, Marsé decide apostar sua própria pele e dar tudo de si. Aqui, com uma prosa na sua plenitude, concentra-se o microcosmo da sua literatura: a necessidade de invenção e de jogo aliada à recuperação da memória, muitas vezes também ela recriada e fictícia; os personagens desamparados, os livres, aqueles que lutam para saber quem são; e, sobretudo, um narrador prodigioso que fabula entre a memória e a ficção, entre a ilusão da fuga e a realidade mais crua do pós-guerra. Marsé, de qualquer forma, não carece de leitores nem de reconhecimento, esculpido com um longo histórico narrativo, por isso ainda acho que o prêmio é mais necessário para outro.
 
Imagino que também deveria entrar na disputa qualquer dos romances de Juan Benet desta época, Volverás a Región (trad. livre Regressarás à região, 1967) e Una meditación (trad. livre Uma meditação, 1970), embora tenha uma queda por este último, com aquela frase de musicalidade hipnótica com que começa: “De todas as quintas do vale de Torce, no norte da Região, a casa do meu avô, apesar de ser uma das mais modestas, era uma das mais bem localizadas”. Maravilhosa decomposição do fio narrativo, com uma voz que joga em constante digressão e intermináveis ​​orações, Uma meditação é uma pedra do sol da língua espanhola, menos reconhecida do que merece, apesar de na minha opinião perder por nocaute contra a vencedora se outros fatores que um grande romance deve ter são valorizados, como um olfato para vasculhar o lixo e mergulhar no coração do ser humano. Benet, o grand style, como sempre afirmou, perde, para bem e para mal, o posto.
 
Daquilo que li de Francisco Umbral, outra fera parda dos anos setenta, o que mais me impressionou de longe foi Mortal y rosa (trad. livre Mortal e rosa, 1975), um belo artefato a meio caminho entre um diário, um caderno de apontamentos e um ensaio literário. Curioso que seja o livro que melhor sobreviveu ao prolífico Umbral, um estilo maior que um narrador, talvez porque as páginas escritas em decorrência da morte de seu filho pequeno sejam escritas com uma fúria contra a literatura que transcende ao retórico e ao jogo verbal que tanto deslumbrava o escritor. Além disso, um livro por vezes atravessa a nossa biografia, tem o peso de uma amizade ou de um acontecimento, e adquire o valor de uma lupa para olhar os prazeres e os dias; no meu caso aconteceu com Mortal e rosa, então não sou, não posso ser neutro com ele.
 
E Juan Goytisolo? O eternamente deslocado, o mais secreto, apesar de ser imensamente dotado para os meandros da língua, Goytisolo passou anos fazendo uma obra rigorosa, concretizada na liberdade da poesia mais do que na narração. Dos anos setenta é nada menos que a trilogia do mal, que inclui aquela beleza chamada Reivindicação do Conde Julião (1970), da qual só me lembro, no entanto, da espessura dos signos e de uma jornada bastante solipsista em direção a si mesmo. Altamente recomendado para leitores escolhidos. Não é o meu caso, receio.
 
Aliás, em 1975 foi publicada La verdad sobre el caso Savolta (trad. livre A verdade sobre o caso Savolta), de Eduardo Mendoza, que alguém disse ser o grande romance dos últimos quarenta anos. Eu, por outro lado, que li na adolescência O mistério da cripta amaldiçoada (1978) e guardo essa leitura como um momento de felicidade absoluta, fiquei várias vezes a meio caminho com A verdade…. Prometo voltar.
 
E, por fim, tenho certeza de que há muitos outros, todos grandes, que não me vêm à cabeça agora ou que talvez não tenha lido, o que é bem provável, mas, afinal, isso já estava decidido de antemão: destes anos prodigiosos para a literatura espanhola, o maior, o mais ambicioso, aquele que fez brotar todo o talento que seu autor carregava dentro de si, é El gran momento de Mary Tribune (trad. livre O grande momento de Mary Tribune), de Juan García Hortelano. Não me diga que isso era previsível.
 
2 Juan
 
O prêmio Biblioteca Breve pelo romance Novas amizades (1959) permitiu que o nome de um jovem autor madrilenho, funcionário do Governo, começasse a soar nos meios literários e editoriais. Quem era aquele baixinho, tão sério e formal, de quem Carlos Barral dizia que “demos o prêmio a um guarda civil”? Apesar dos dizeres, a literatura é menos um comércio do que uma vingança e Juan García Hortelano apareceu para mostrar que vale a pena quebrar a cara até o fim.
 
Primeiro veio o trabalho consciencioso. Quando a Biblioteca Breve concede o prêmio para o seu primeiro romance publicado, Hortelano já possuía vários outros na gaveta, um deles inclusive finalista do Prêmio Nadal, todos inscritos dentro do que chamamos de “realismo social”, por isso foi difícil prever o que viria treze anos depois. Na verdade, Novas amizades é um bom romance, uma paisagem humana da eterna luta entre a realidade e o desejo, acentuada pelo sufocamento da vida no pós-guerra, mas não é uma obra-prima de forma alguma. História metódica, talentosa herdeira das técnicas do imperativo realismo literário — que Rafael Sánchez Ferlosio sublimara em El Jarama (trad. livre Jarama) em 1956 —, em Novas amizades já se nota a ternura e a empatia do seu tom, longe das personagens utilizadas como símbolos ideológicos por outros autores. Claro que esse seu olhar introspectivo irá caracterizar a sua obra, e o lastro costumbrista de algumas páginas desaparecerá por completo no último terço de Novas amizades, a meu ver o melhor, quando a voz se centra num espaço dramático muito específico — os jovens trancados numa casa de campo matando tempo enquanto em um dos quartos uma menina, convalescendo por causa de um aborto ilegal, pode morrer — e ele narra meticulosamente, sem pressa, com paixão pelos detalhes mais vívidos.
 
Apenas três anos depois, Hortelano surpreenderia com sua soberba Tormenta de verão, que que ganhou o Prêmio Prix Formentor, uma espécie de grande lançamento editorial promovido por diversas editoras europeias. É impressionante a rapidez com que Hortelano deu um salto em sua narrativa: narrado na primeira pessoa (uma decisão fundamental), Tormenta de verão torna-se uma introspecção sobre a vida da pequena burguesia, assim como Novas amizades, só que nesta ocasião tudo é narrado de dentro, sem julgamentos externos, e seu protagonista deambula entre a vida na urbanização privada do litoral onde passa o verão (para onde se muda com a família e amigos) e as escapadelas para a cidade litorânea, que atrai com seus perigos e tentações. Novamente, como em seu primeiro romance, os conflitos individuais, os casos amorosos dos personagens, suas derrotas pessoais, sua desorientação e sua incapacidade de escapar de seus laços sociais, são mais importantes do que o quadro ideológico.
 
E de repente, depois de alcançar fama e leitores, Hortelano entrou num silêncio editorial por quase uma década. Publicou nesse intervalo, é verdade, um excepcional volume de contos, Gente de Madrid, em 1967, no qual já mostra que está experimentando vozes e estilos, que não se contenta com as técnicas expostas em seus romances; ao mesmo tempo, começou a circular o boato de que ele estava trabalhando em um grande romance, em um longo texto para imprimir um novo tour de force à sua narrativa.
 
Passam-se os anos e esse texto não vem à luz. Hortelano não parecia preocupado com seu desaparecimento da cena pública, e certamente esse é o único segredo, o tempo que dedicou a isso, o que explica porque em 1972, nove anos após a Tormenta de verão, Juan García Hortelano publicou uma tragicomédia de quase oitocentas páginas narradas por um protagonista vivaz, mordaz e alcoólatra, e escritas com uma prosa deslumbrante, cheia de ironias e trocadilhos, trabalhadas à exaustão. Em vez dos dramas literários de sua geração, Hortelano conseguira com O grande momento de Mary Tribune transformar o desencanto numa hilariante orgia da linguagem.
 
3 O grande momento (inclui spoilers)
 
A primeira parte de O grande momento de Mary Tribune começa com um in medias res preguiçoso: os amigos do narrador chegaram a sua casa para o aperitivo de sábado; não sabem que em um dos quartos dorme Mary, uma estadunidense que ele conheceu tarde da noite. No final, o narrador-personagem consegue expulsar todos e ficar sozinho com a estrangeira. Começa então, estimulado pela aparição dessa mulher singular, uma jornada de várias semanas na rotina do protagonista, transbordando de álcool com sua gangue de amigos ou sozinho, em noitadas, paqueras, escapadas inesperadas, decepções, aparições no tedioso trabalho no Ministério e os encontros e desentendimentos com Mary e várias outras mulheres, desde sua outra amante (esposa de um dos amigos do seu grupo) até aquelas com quem se cruzam nas noites e dias. Esta primeira parte do romance deve ter, mais ou menos, cerca de quinhentas páginas, mas tão marcadas pelo humor e por um estilo espirituoso e lúdico que nunca entediam, pelo menos àquele que aqui escreve. Ler Mary Tribune é muito como fazer companhia ao protagonista, com a narração exaustiva de seus despertares, cafés da manhã, banhos, conversas hilárias etc., tornando-se uma espécie de diário em que a repetição dos atos cotidianos é combatida com o brilhantismo de seu narrador. Isso se chama a magia da literatura.
 
A segunda parte do romance (que na primeira edição foi publicada em outro volume) se passa após uma elipse temporal de vários meses e também um salto no espaço, porque seu protagonista mudou sua residência para uma casa na serra madrilenha, onde agora ele mora com outra mulher. Nesta parte, cerca de duzentas páginas para narrar apenas dois dias, tem um tom diferente da primeira: se esta traduzia num estilo torrencial e por vezes delirante o amor do seu protagonista pelo álcool, a segunda parte corresponde a um tom muito mais calmo e melancólico, como convém a um narrador determinado a parar de beber e endireitar sua vida. Ao fundo, nessa paisagem rural invernal em que se desenrola a ação, surge a sombra de Mary, que desapareceu da vida do narrador após alguns quantos dolorosos desentendimentos. Que o apaixonar, ou simplesmente desejar, seja o ponto de fuga para o desencanto de seu protagonista é uma das chaves do romance, claro.
 
No final, Hortelano escreveu, não sei se com intenção deliberada ou, como acontece com alguns romances, como resultado de uma história que aos poucos se impôs a ele, um texto sobre personagens que pululam por uma Madri “absurda, brilhante e faminta”, como dizia Valle, apenas com uma fome não de comida, mas de sentido, de uma vida com um fim ou uma rota, perdidos como estão em um mundo sem aspirações. Indivíduos desorientados, pequenas felicidades, desejo pela vida, prazeres cujo limite se esgota em um único dia. O que nem Marsé, nem Benet, nem Umbral haviam feito, Hortelano conseguiu: contar em prosa ácida a viagem a lugar nenhum numa Espanha resignada, não porque não queiramos ter memória (o que também procede), mas porque o presente concedido é sem graça. Doce sal, como dizia Mario González Suárez.
 
Misteriosamente, e embora O grande momento de Mary Tribune tivesse um certo sucesso comercial na época, deixou de circular com o passar dos anos, ainda mais após a morte de Hortelano em 1992, que praticamente havia deixado a ficção (embora seu último livro seja de 1990, um romance erótico publicado sob o pseudônimo de Muñeca y Macho, oito anos depois de Gramática parda). A minha hipótese que explica esta indiferença de críticos e leitores reside, mais do que na extensão do seu romance, no que alguém disse, penso que Nabokov, sobre o ridículo dos “grandes temas”, que continuam a pesar no momento de confeccionar o cânone literário: O grande momento de Mary Tribune é uma farsa sobre um mulherengo borracho, uma abordagem difícil de aceitar por parte de um determinado establishiment e seus acólitos. Uma pena, realmente. Qualquer assunto, em mãos habilidosas, como demonstrou Hortelano, é carne para a grande literatura, pois O grande momento de Mary Tribune é um daqueles livros que, mais do que ler, se vive. O que se pode dizer de poucos.
 
Há um ano procurei um exemplar de Novas amizades para levar comigo ao Panamá. Impossível. Não é mais reeditado. Nem os contos completos ou Gramática parda.
Tampouco O grande momento de Mary Tribune.
 
Foi quando comecei a pensar em escrever este artigo.
 
 
* Este texto é a tradução livre de “La mejor novela española de los últimos cincuenta años”, publicado aqui em Jot Down.

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