Por Bruno Botto
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Luis Fernando Verissimo. Uma das esculturas de Ricardo Leite. |
Lembro que fui introduzido em idade bem tenra às crônicas de
Luis Fernando Verissimo por minha vó. Os livros tinham capas coloridas e a
caricatura de um homem pequeno e gordinho; era o suficiente para eu achar que
aquilo poderia ser parecido com os desenhos que eu assistia. Não sei qual foi o
critério utilizado por ela, mas achava que as leituras curtas e humoradas de
Verissimo poderiam ser um bom remédio para inquietude juvenil ou queria, lá no
fundo, me ver um leitor de crônicas e quem sabe em um futuro não muito
distante, um cronista.
Li inúmeras vezes na casa da minha avó os mesmos dois
livros, Comédias para se ler na escola e A mesa voadora. Para
quem não conhece as crônicas que Verissimo já escreveu para os maiores jornais
e revistas de todo o país, aí vai uma breve introdução de suas principais
características: texto curto, humor sempre presente, linguagem coloquial mas ao
mesmo tempo o melhor português empregado, nenhuma palavra parece fora do lugar.
Até então, essas se tornaram as características mais comuns desse gênero
textual, o que me faz pensar que Luis Fernando Verissimo leva a sério a
profissão de cronista.
Admito que enquanto a minha vó lia em voz alta, eu não era
capaz de pegar toda a perspicácia e nem as referências que o texto pedia. Além
de residirem no mundo adulto, faltava-me a bagagem do dia a dia; o meu
cotidiano ainda não era um texto. Só por volta dos dezoito anos comecei
acreditar que a vida em si, em suas derrotas e vitórias, poderia ganhar tons
poéticos em alguma forma de arte, mesmo assim ainda não tinha desenvolvido o
meu espírito de cronista. Verissimo revirou em A mesa voadora o
mundo da comida, a culinária e como ela estabelece uma comunicação entre um
casal, uma família, um grupo de amigos e um ambiente de trabalho. Me fez pensar
logo, o cronista safo entrou em vários restaurantes, observou jantares de
amigos, conversou com garçons e maîtres para poder torcer do pano e extrair o
melhor do que acontece sob a mesa.
Em uma crônica chamada “Come e não engorda”, o cronista mexe
com o estereótipo do comilão que não consegue engordar. “Cumprimentos ao chefe”
é um glossário e uma manual de etiquetas dentro de um restaurante. Divertido e
elegante.
Isso me fez acreditar que cronistas tinham superpoderes que
os outros escritores não tinham. A observação criativa, a minúcia das pequenas
coisas. Ainda mais por ter lido apenas crônicas de Veríssimo, achei que o seu
estilo fosse imbatível. Claro, que depois fui conhecendo Rubem Braga, Nelson
Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Clarice Lispector,
entre outros. E depois de exposto a
tanta crônica, a tantas vidas falando de vida, vem o questionamento: que tipo
de cronista você quer ser?
Nossa bagagem e memória afetiva nos influencia em um certo
ponto. O jeito de enxergar a vida sempre vai ser particular, o recorte talvez
seja o primordial. Se Verissimo apontou para o humor, Nelson Rodrigues, durante
boa parte dos anos cinquenta, usou o futebol como espelho da sociedade. O autor
foi responsável por criar o termo complexo de vira-lata nas vésperas da Copa
de 58, percebendo que o brasileiro não tinha confiança na sua seleção, pelos
fracassos de 50 e 54; a miscigenação de nosso povo também parecia ser um
problema para maioria que sempre procurava exaltar a hegemonia europeia.
Rodrigues cria um termo também político que sobrevive até os dias de hoje e
todas as características de sua escrita e temas abordados em seu trabalho
literário formaram uma unidade chamada de rodrigueana. Sacramentando
outra pedra para o mito dos cronistas, não só crítica mas também feita para o
homem comum, do pobre diabo de um terno-só.
No fim das contas, você pode levar um caderno para o bar,
pode até mesmo entrevistar as pessoas e tentar formar um texto cheio de
coincidências do dia a dia. A vocação do
cronista não vem por acaso e nem é possível dizer como se tornar um. O bom
cronista talvez sempre guarde dentro de seu peito várias inquietações sobre
costumes; a crônica já é existente dentro de sua cabeça, sendo o acúmulo
natural das experiências. O que talvez se transforme no gênero textual mais
franco que já existiu, em vez de relatos tente criar uma confissão. Ainda tento
me criar como um cronista, se não publicado, pelo menos guardo todos esses
textos para minha formação e evolução pessoal e talvez esse tenha sido o
objetivo de minha avó ali no começo, lendo Veríssimo em tardes de domingo.
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