O cinema experimental e suas articulações
Por Adriana Bellamy
Ao longo de qualquer história do cinema, o surgimento e desenvolvimento dessa
estranha criatura chamada Cinema Experimental (com letras maiúsculas) sempre
foi problemático. Embora possamos traçar suas origens cronológicas com o aparecimento
das vanguardas cinematográficas durante 1920, foi na segunda metade do século
XX o momento de sua segunda eclosão grandiosa com eixos criativos como Nova York,
San Francisco ou Londres.
Esses movimentos de jovens
artistas durante os anos 1960 e 1970, entre os quais encontramos figuras como
Stan Brakhage, Jonas Mekas, Ernie Gehr, Shirley Clarke, Kenneth Anger, Marie
Menken, Michael Snow, Andy Warhol, Robert Beer e muitos mais, foram
caracterizados por rebaixar a ideia tradicional do cinematográfico e
transformar tanto os modos de prática fílmica como as suas estruturas de
distribuição e exibição através da criação de novos espaços, revistas,
mecanismos institucionais alternativos e outros discursos críticos.
Libertar o cinema de certas
tradições e convenções, tanto narrativas como formais, ultrapassar a dicotomia
fundo/ forma ou ir para além do conteúdo tornaram-se bandeiras de uma luta para
tentar consolidar propostas cinematográficas radicais, para dar ao cinema
experimental a sua afirmação e autonomia, um gesto drástico contra a corrente
de um cinema entendido como narrativa clássica, o grande cinema de espetáculo
hollywoodiano, ou mesmo de um cinema de “arte” internacional ou de “autor”.
Gostaria, então, de mergulhar
neste tipo de cinema através de algumas linhas dedicadas ao cineasta canadense
Michael Snow (Toronto 1928-2023), um dos criadores mais destacados neste campo
fértil, cuja perda recente no início deste ano deixou um vazio profundo neste
horizonte. Músico, artista visual e cineasta, Snow é o representante perfeito
do artista em um campo ampliado, pois trabalhou em diversas mídias, além do
cinema (fotografia, pintura, música, instalação, escultura) com a ideia de
utilizar qualquer material para manipular o tempo, a luz, o espaço e o som.
Também faz parte do chamado cinema estrutural ou material liderado pelo artista
austríaco Peter Kubelka.
Esse tipo de cinema, batizado com
esse nome por P. Adams Sitney nos anos 70 em seu já conhecido livro sobre esse
tipo de cinema, Visionary Film, caracteriza-se por esgotar um único
elemento ou estrutura em sua totalidade, seja um movimento de câmera, um
recurso sonoro, um efeito como tremeluzir ou outro mecanismo de forma que
funcione sempre com a percepção do espectador. A obra estrutural emblemática de
Snow é o conhecido Wavelength (1967), realizada como vários dos grandes
projetos de outros cineastas experimentais durante um fim de semana (pense, por
exemplo, em alguns filmes de Anger ou Deren) e regido por um único movimento de
câmera: um zoom contínuo por 45 minutos.
Entre as características sobressalientes
está a intenção de Snow de subverter as categorias e convenções usuais para os
movimentos de câmera. O zoom — que na verdade é um falso movimento de câmera,
pois funciona mais como um travelling ótico, uma espécie de trompe
l'oeil na percepção cinematográfica como movimento vertiginoso da lente —
será utilizado pelo cineasta lenta e incessantemente como uma forma de abranger
o espaço dentro de uma sala-estúdio. Sob este propósito, o deslocamento terá
como objetivo chegar a uma fotografia pendurada na parede extrema deste local.
Trata-se então de uma distância como duração à maneira bergsoniana,
transformada a cada pequena aproximação, além das mudanças de luz, filtros e lentes
de cor para chegar àquela fotografia marítima em sua direção final. Uma imagem
após a outra que contém em si toda a força daquele plano sintético original dos
irmãos Lumière no início do cinema. Torna-se um espaço onde tudo se articula e
se ativa dentro de um campo visual estático e dinâmico.
Com o cinema de Snow, o
planejamento quasimétrico-sistemático nunca se reduz ao puramente visual, pois
é sempre trabalhado de forma paralela e até contrapontística na dimensão
sonora. Neste caso, se concentra no artifício de uma construção serializada de
um som (ou melhor, ondas sonoras) que aumenta progressivamente de frequência
até atingir níveis perturbadores para o ouvido humano. Entre a mínima e a
máxima expressão, entre uma presença quase imperceptível e um ruído impulsivo
sem emoção, trabalha-se da mesma forma que com o espaço visual numa radical
expansão-contração acústica que oscila entre dois polos de escuta. Trata-se de
um procedimento que ele retomará em outros momentos de sua filmografia,
especialmente em outras de suas obras magistrais como La Région Centrale
(1971).
É por isso que o cinema de Snow
vai contra a direção almejada, às condições cinematográficas, e não dá trégua a
nenhum tipo de expectativa que o espectador possua: narração sustentada, lógica
causal, personagens, roteiro, clímax, resolução e um longo etecétera. E aqui
temos uma das possíveis chaves para esse enigma-artesão-visionário do cinema:
ao encontrar os filmes-experimentos de Snow nos pegamos contemplando o próprio
processo de percepção, desde o questionamento dos mecanismos que direcionam
nossa atenção ou inferências sobre o tempo, até chegando a questões primordiais
sobre como conhecemos o mundo e o significamos.
Serge Daney certa vez definiu o
cinema como “o país que faltava em sua geografia”; talvez Snow, nesse prazer
pelo cinético, pela força dos sulcos e relevos, modulações e movimentos, o
tenha redescoberto ao entrar em contato com outros elementos. Um
circuito-paisagem visual e sonoro de formas, percursos e acidentes, de uma
leveza impossível que nos faz pensar numa espécie de equação rítmica,
acústico-visual, controlada e aleatória ao mesmo tempo.
* Este texto é a tradução
livre para “El Cine Experimental y sus articulaciones”, publicado aqui, em Confabulario.
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