Por Eduardo Lago
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Martin Amis. Foto: Colin Bell |
Intelectual público de grande relevo,
em seus romances e ensaios realizou uma impiedosa radiografia, mesclada de sátira
e ironia, tanto de sua Inglaterra natal quanto dos Estados Unidos, país para
onde se mudou em 2011, fixando residência no bairro nova-iorquino do Brooklyn. Polêmica,
às vezes incômoda, inevitavelmente lúcida, sua obra foi o ponto de encontro de
forças contraditórias que se neutralizavam ou fertilizavam. Sua escrita, cheia
de realizações memoráveis e alguma falha de ocasião, foi acima de tudo um
triunfo da inteligência. Sarcástico, satírico, com uma carga de humanidade que
às vezes permitia pequenas doses de ternura, Amis não evitou nenhum assunto,
por mais polêmico que fosse.
Uma de suas melhores armas era o
humor, infalivelmente sombrio. Ele gostava de dizer que a ficção não tinha
escolha a não ser um gênero cômico, porque a vida que se encarregava de
refletir também era algo do tipo. Endossava o lema do escritor australiano
Clive James, para quem bom senso e senso de humor eram a mesma coisa. Os feixes
de força que constantemente se cruzam na sua obra, contradizendo-se, são
particularmente visíveis naquele que seria o seu último livro,
Inside Story
(2020). Caracterizado por seu autor de um romance autobiográfico, era na
verdade uma mistura heterogênea de gêneros, da memória pessoal ao ensaio
literário, ordenada pelos ditames da imaginação, ou seja, pelas leis da ficção.
Demorou mais de 20 anos para moldá-lo, e chegou a desdenhar várias versões,
porque no final o essencial sempre lhe escapava: encontrar a forma mais eficaz
de apresentar a verdade. Ele conseguiu isso realizando vários exorcismos, sendo
o mais importante a morte de três figuras paternas, Kingsley Amis, Philip
Larkin e Saul Bellow, e uma fraterna, talvez a mais importante, Christopher
Hitchens.
Pais e fantasmas
Martin Amis viveu até o último
momento cercado por fantasmas que observavam de perto o que ele fazia. A
primeira figura paterna que ele foi forçado a exorcizar foi seu verdadeiro pai,
Sir Kingsley Amis, um escritor de estatura formidável. Não é fácil despontar
como romancista à sombra de alguém com as credenciais de seu pai, autor de um
dos romances mais celebrados de seu tempo na Inglaterra,
Lucky Jim
(1954), entre outras obras marcantes, mas Martin conseguiu com lúdica agilidade,
desviando o olhar enquanto forjava um estilo no qual os traços de DNA de seu
progenitor pareciam indetectáveis. Em parte, era uma questão de sobrevivência. Segundo
confessou, seu pai não estava interessado no que ele escrevia. As complexas
relações entre pai e filho encantaram os tabloides durante muito tempo.
Em
Inside Story, Amis suplanta
a paternidade real por uma fictícia, a de Philip Larkin, que além de ser um dos
poetas mais notáveis de sua época, era o melhor amigo de Sir Kingsley. Marca
da casa. Ele tinha mais contas a acertar, mas neste caso a transmissão do
código genético foi perfeita: do ponto de vista literário, Amis decidiu ter
como progenitor o grande romancista estadunidense Saul Bellow, a quem também
aprendeu a desobedecer com o tempo.
Esclarecidas as questões
genealógicas, restava algo a apontar, talvez o mais importante. Não se pode
falar de Amis sem referir a marca profunda, tanto afetiva como intelectual, que
deixou nele a amizade com Christopher Hitchens, o brilhante e incómodo
polemista com quem mantinha um diálogo constante, e cuja morte, em 2011, nunca
conseguiu superar. Outra dívida, mais complexa, mas não menos fascinante, foi a
que contraiu com outro grande mago da ficção com quem nunca deixou de jogar às
escondidas, Vladimir Nabokov, a quem prestou inúmeras homenagens, nomeadamente
em
Visiting Mrs. Nabokov and Other Excursions (1993).
Amis deixa um legado que inclui um
punhado de romances de extraordinário mérito e alguma não-ficção excepcional,
incluindo memórias e ensaios de crítica literária. Uma boa maneira de se
aproximar dele é mergulhar em
Experiência (2000), a magnífica
autobiografia intelectual que escreveu no auge de sua maturidade artística e
literária.
Enquanto na sua obra ficcional, ao
longo das décadas, Amis ia sendo testemunha da mudança da sociedade em que teve
de viver, mimetizando com o seu estilo caricatural, costumbrista e satírico,
quase sempre brilhante e eficaz, os traumas de uma Inglaterra conturbada. Seus
ensaios refletiam a mesma realidade de uma perspectiva não menos penetrante. A
geração a que pertenceu inclui Ian McEwan, Salman Rushdie e Julian Barnes.
O mal
Martin Amis nasceu em Oxford em
1949. Bom conhecedor desde o princípio do mundo das ruas, estudou no Exeter
College em Oxford e começou sua carreira como editor do suplemento literário do
The Times, passando por
The Observer e
The New Statement.
Foi durante seu tempo como editor que se tornou amigo de Hitchens. Seu primeiro
romance,
The Rachel Papers, publicado ainda aos 24 anos, recebeu o
prêmio Somerset Maugham e já trazia as marcas que desenvolveria em sua obra
futura. Os críticos notaram que um escritor excepcional havia aparecido.
O romance conta a história de um
jovem rebelde preocupado com o sexo e a saúde cujo maior objetivo é ser
admitido na Universidade de Oxford. Depois de
Dead Babies (1974),
Success
(1978) e
Os outros (1981), se tornou reconhecido com a chamada Trilogia
de Londres. O primeiro título,
Grana (1984), é uma sátira selvagem em
tom cômico sobre o consumismo dos anos oitenta;
Campos de Londres
(1989), é um romance de ambição total em que examina uma sociedade à beira do
colapso. O terceiro título da trilogia,
A informação (1995), ganhou
notoriedade por motivos extraliterários, relacionados a avanços e mudanças de
agência. Amis recebeu um adiantamento de quase oitocentos mil dólares na época.
Amis deixou sua agente Pat Kavannagh, esposa de seu amigo Julian Barnes, para ficar
com Andrew Wylie, o notório Chacal.
Estilista de grande virtuosismo
técnico, inimigo de clichês, em
A seta do tempo (1991) joga com a
possibilidade de desfazer os horrores da história, questionando os que utilizaram
tal recurso (usado antes por Kurt Vonnegut, Philip K. Dick e Alejo Carpentier)
de fazer o tempo retroceder, narrando a vida de um criminoso de guerra nazista
desde sua morte até seu nascimento.
Trem noturno (1997) recebeu
leituras negativas de alguns críticos que consideravam seu estilo
americanizado, mas por mais que sempre houvesse alguém para criticar, havia
algo no que Amis fazia que o tornava atraente como contador de histórias, às
vezes de certa forma culpável. Um de seus romances mais polêmicos, entretanto
imbatível como portador da marca estilística do escritor, foi
Yellow Dog
(2003). A realidade do mal personificada em figuras como Hitler ou Stálin
emerge em diferentes momentos de sua obra, tanto ficcional quanto ensaística.
Em
A viúva grávida (2010), aborda
com seu característico humor e sagacidade a revolução sexual dos anos 1970.
Interessado no impacto do comercial na cultura pop, em
Lionel Asbo
(2012), ele nos oferece o retrato de um pequeno delinquente que ganha na
loteria e se torna um herói da mídia sensacionalista. O personagem mais bem
retratado, como sempre, é a sociedade inglesa e seus flagelos.
Amis foi um personagem cativante e
vital, um intelectual público que soube radiografar em sua ficção e em seus
ensaios o final do século XX e as duas primeiras décadas do século XXI. Aparecia
com frequência na mídia pública e na televisão, e suas opiniões eram
frequentemente controversas. Seu mundo era inequivocamente masculino, e nele
entrava mostrando suas mazelas e defeitos de forma impiedosa.
Seu trabalho de não-ficção abrange
uma ampla gama de temas. Em
The Moronic Inferno: And Other Visits to America
(1986), ele examina antecipadamente o país em que acabaria por fixar residência
e morrer. A controvérsia o cercava, como a Hitchens, quase até o fim, mas, em
última instância, era a sua personalidade que conquistava os leitores. Para
alguns, era melhor ensaísta do que narrador, mas na realidade o substrato era
sempre o mesmo. Em
The War Against the Cliché (2001) e em sua mais
recente coleção de ensaios,
The Rub of Time (2017), ele escreve sobre —
além de Bellow e Hitchens —, sobre Vladimir Nabokov, John Travolta e Donald
Trump.
* Do obituário publicado no jornal El País.
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