Por Sérgio Linard
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Denis Johnson. Foto: Marion Ettlinger |
A cultura pop estadunidense tem um
hábito de recorrer a questionamentos e a usos de artigos, de dizeres e de hábitos
do cristianismo como forma de chamar atenção e de alcançar uma maior plataforma
de sucesso. Engolir um terço, questionar a vida/existência de Jesus, demonstrar
desprezo pelas instituições eclesiásticas são alguns dos vários casos que
poderia citar aqui. Todos realizados com um único propósito: chamar atenção dos
fanáticos que, esbravejando autoridade sobre aquele tema, promovem os autores
daquela dita blasfêmia.
Ao escolher o título de seu livro,
Denis Johnson, escritor naturalizado estadunidense, recorre ao expediente acima
citado: “chocar para promover”. Na antologia de contos
Filho de Jesus, o
leitor não encontrará conto algum com este título.
A expressão que intitula a coletânea, também
não aparece explicitamente em nenhum dos onze contos que integram o livro. O
único momento em que se pode encontrar essa expressão está na epígrafe,
retirada da canção de Lou Reed, “Heroin”, em que se lê: “When I’m rushing on my
run/ and I feel just like Jesus’ Son...”. O título da música e os versos
escolhidos funcionam muito bem como estratégia para pavimentar o caminho das
histórias lidas a seguir, porque carros, drogas, sexo, corridas, morte e poder
(próprio de um filho de um deus) são os elementos centrais de todos os contos a
serem lidos.
Parece-me importante
contextualizar, então, que Denis Johnson primeiro publicou o livro ora
comentado em 1992. O autor nasceu na Alemanha em 1949, mas teve a maior parte
de sua produção publicada e expandida nos Estados Unidos, onde faleceu em 2017.
Filho de Jesus foi o primeiro livro de contos publicado pelo autor e foi
o que lhe garantiu exímio reconhecimento entre a crítica especializada que,
apressadamente – infelizmente um hábito estadunidense assimilado em terras
brasileiras –, chamou o livro de clássico, lendário e, não obstante, de
obra-prima. Mas o livro não é tudo isso.
Os contos estão inseridos dentro
de um movimento urbano e
underground dos Estados Unidos que fazem com
que a obra tenha proximidade temática — e apenas temática — com autores da
conhecida Geração Beat, como Kerouac, Ginsberg e Burroughs. O conto intitulado “Desastre
de carro no meio da carona” é o primeiro do livro e também o mais bem
realizado, isso justamente porque se aproxima um pouco mais da estética dos
autores acima citados, especialmente de Burroughs, por trazer uma
experimentação melhor construída, com uma pertinente confusão temporal.
Nesse caso, a história tem seu
início apresentando acontecimentos já passados e retorna mostrando o motivador
para tais acontecimentos. Sendo o narrador um usuário de entorpecentes que
parece estar sob efeito deles ao contar a história que se lê, a construção
mostra-se verossímil e deixa como dúvida final se a história é um acontecimento
real ou mais um efeito do alucinógeno utilizado em demasia. A ausência de
respostas e as interrupções temporais, ora de presente, ora de passado, são que
fazem com que este conto seja o melhor construído do livro, especialmente
porque os demais apresentam uma tônica que se torna repetitiva e, em certa
medida, didatizante.
Na tentativa de manter a
experimentação das histórias, os textos seguintes acabam se fazendo como uma
repetição daquilo que já foi lido tanto do ponto de vista temático quanto do estrutural.
Há personagens que se repetem, movimentos que se reforçam e um narrador com
praticamente a mesma dicção, fatores que, isoladamente, não constroem ponto
negativo de forma necessária, mas quando somados em
Filho de Jesus geram
como resultado a pura e a simples monotonia.
Há de se realçar, ainda, que o
fato de os textos serem curtos ajuda com a redução dessa monotonia, posto que a
própria celeridade do gênero faz com que o único tom seja apresentado de forma
mais breve. Também é favorável para as histórias a organização não linear dos
textos, pois, enquanto um personagem morreu, por exemplo, no segundo conto,
apenas no quarto ou quinto ele voltará a aparecer. Essa preocupação com a
disposição dos textos mostra justamente a tentativa do autor de experimentar
com o material literário em mãos. Contudo, todo processo de experimentação tem
como possibilidades o erro e o acerto.
Como falei no início deste texto,
em todos os contos o leitor encontrará pelo menos um destes elementos: carros,
drogas, sexo, corridas, morte e poder. Na grande maioria, todos eles. Destes,
destacarei os mais proeminentes: a morte e as drogas. As drogas são utilizadas
por todos, inclusive pelo narrador — invariavelmente em primeira pessoa —, a
morte, por sua vez, é constante e parece ter sido o desfecho que o autor
encontrou para quase todas as histórias com exceção de uma, o conto intitulado
“O outro homem”.
Nesse texto, o livro se torna um
pouco mais sentimental, voltado, com certas reservas, para um conteúdo um pouco
mais subjetivo e se apresenta como uma espécie de continuidade do segundo conto
do livro, “Dois homens”, em que a história de um segundo homem seria narrada,
mas foi interrompida por divagações do narrador. A temática do encontro,
desencontro e novo encontro clássica dos romances românticos é o que move a
história sem deixar de seguir expedientes já muito esperados para este tipo de
trama. A coragem exacerbada dos corações apaixonados é explorada e serve como
desfecho:
“‘[...] Eu podia te levar pra
casa. Você podia dormir no sofá. Aí depois eu podia ir te encontrar.’
‘Com seu marido no quarto?’
‘Ele vai estar dormindo. Eu podia
falar que você é meu primo.’
Nos grudamos um no outro com
delicadeza e violência. [...]”¹
O final incerto sobre a consumação
ou não daquele amor reconquistado é o esperado para a narrativa e o autor assim
o faz. O conto, porém, pensando no conjunto antológico em que foi publicado,
enquadra-se melhor como uma fonte de fuga do universo movido por agressões e por
drogas (que também se faz presente aqui, mas com menos ênfase) dos demais
textos do que como uma boa história individualmente, pois recorre muito a
pieguices românticas. É ponto-alto do livro por pensar a continuidade de um
outro conto, focando em um outro homem, mas decepciona com diálogos apenas declaratórios.
Também chama atenção a estratégia de
que personagens que morreram em algum momento do livro reapareçam em outra
história, mas sempre ocorrendo primeiro a morte, para depois se ter noção
melhor de quem ele era, algo que remete, com as devidas ressalvas, aos relatos
bíblicos da história de Jesus. A título de exemplo, tem-se o caso de “Jack
Hotel”, personagem que morreu no conto “Sob Fiança” e que reaparece no conto
“Dundun”. Vê-se que esta escolha busca gerar uma unidade interna no livro,
justificando, de algum modo, a presença desses textos e não de outros em Filho
de Jesus. Não obstante, ao se trazer personagens constantes para histórias
diferentes, tem-se uma maior possibilidade de o leitor adquirir proximidade com
o texto em tela. Essa segunda possibilidade, no entanto, teria sido bem-sucedida
se houvesse de fato um desenvolvimento desses personagens, fazendo com que
fugissem um pouco do repetitivo arquétipo do usuário de entorpecentes. Não há
como sentir que o personagem merece especial atenção, porque todos que ali são
exatamente iguais a ele, envoltos em profunda confusão, limitados pela
brevidade que o gênero escolhido exige. O único destaque entre um personagem e
outro ocorre somente quando um deles morre; então o conto termina:
“As pessoas que estavam com ele,
todos amigos nossos, monitoravam sua respiração posicionando um espelhinho sob
suas narinas de quando em quando, verificando se o vidro embaçava. Mas depois
de um tempo esqueceram de ver como ele estava e Hotel teve uma falência respiratória
sem que ninguém percebesse. Não aguentou. Ele morreu.”
No conto seguinte, mais uma vez um
dos amigos, após abuso no uso de drogas, briga com alguém, é esfaqueado, e, em
um carro, com o narrador correndo para o hospital por uma grande estrada,
McInnes morre. E um desfecho semelhante se repetirá nos outros nove contos do
livro. Aquilo que parecia ser estratégia para gerar unicidade funcionou, mas a
custo de gerar, também, uma exagerada monotonia como a de autores que, em algum
momento da vida, parecem ter achado uma “fórmula secreta” para fazer literatura
e nunca mais deixam de recorrer a ela. O livro tem contos com mesmo narrador
(seria o Filho de Jesus?), mesmos personagens (com pequenas alterações),
mesmas cenas, mesmas estradas, mesmos carros e mesmo desfecho comum da morte. A
conclusão que parece-me pertinente é a de que há material suficiente para, por
exemplo, o desenvolvimento de uma novela ou até mesmo de um romance que
conseguiriam, por seus turnos, explorar a contento a ideia de que o livro
revelasse uma percepção sobre a derrocada do sonho americano vivida no
fim dos anos 1990, quando o país entrava em conflitos externos e o tráfico de
drogas dominava (e ainda domina) regiões marginalizadas, com as mesmas mortes
constantes e a mesma efemeridade relegada a vida de muitos que sofrem nestes
locais.
Individualmente, os contos
conseguem explorar essa ideia, com falhas de repetição ou outras mais
ponderáveis. Também individualmente, as histórias apresentam algumas boas
cenas, como acontece no texto “Trabalho” em que as ideias de exploração
capitalista são questionadas por meio de sua apresentação, permitindo que a
contradição seja vista pelo simples ato de contemplar: “Normalmente sentíamos
culpa e medo, porque havia algo de errado com a gente e não sabíamos o que era;
mas nesse dia sentimos que éramos homens que tinham trabalhado.” Contudo, os
textos foram publicados em um livro e, mesmo com os bons momentos individuais,
a coletânea é mais forjada por monotonia cansativa do que por histórias
robustas e bem aproveitadas. É mais um caso de excelente material subutilizado.
Um livro que não parece ser o melhor primeiro contato com o autor, mas com
contos que podem despertar alguma curiosidade sobre a arte de Denis Johnson,
sendo eles, nesta ordem: “Desastre de carro no meio da carona”; “Beverly Home”;
e “Trabalho”.
______
Filho de Jesus
Denis Johnson
Ana Guadalupe (Trad.)
Todavia
112p.
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Notas
1 Todas as citações da obra foram
retiradas de Johnson, Denis.
Filho de
Jesus. Trad. de Ana Guadalupe. São Paulo: Todavia, 2023.
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