Por André Cupone Gatti
Considerações iniciais
I
O sublime, pensado conceitualmente
desde o começo do primeiro milênio pelo filósofo Longino, provável autor de “Do
Sublime”, talvez jamais servira tão bem a uma época de renovação cultural
quanto ao período do romantismo. Repensado por muitos filósofos dos séculos
XVIII e XIX, dentre os quais destacam-se Edmund Burke, Immanuel Kant e
Friedrich Schiller, a ideia de sublime se mostrou peça importante nas investigações
acerca da natureza das emoções humanas e dos mecanismos da arte.
Longino diz que “o sublime é a
violência que desequilibra”, um choque que nos tira de nós mesmos e nos leva ao
êxtase; ele ainda enumera cinco origens do sublime, sendo duas naturais, inatas,
e três construídas, relacionadas à arte. Séculos depois, para os filósofos dos
séculos XVIII e XIX, ainda serviriam os pensamentos de Longino como base para
conceituar o sublime, agora sob a luz da Estética. Edmund Burke defende que os
infortúnios reais, ao proporcionarem dor e prazer, perigo e fascínio, levam ao
sublime, e que somente a realidade, e não a arte, pela ausência de
factualidade, é fonte desse sentimento. Immanuel Kant, por sua vez, acredita
que o sublime se dá no âmbito das ideias mediante um desacordo entre as
faculdades da razão e da imaginação: frente a uma grandeza incomensurável, a
razão pode criar, supor, articular ideias além da experiência, não obstante o
que se apreende materialmente não contemple o ilimitado, tornando finita a
experiência, impossibilitada de acompanhar a transcendência do pensamento.
Desta forma, prazer e desprazer encontram-se tencionados lado a lado no
sentimento do sublime. Friedrich Schiller, tomando Kant como seu mestre,
acentua a dependência do homem enquanto ser natural e sua independência
enquanto ser racional como as duas forças que, entrechocadas, promovem o
sublime. Apesar da concordância com o pensamento de Kant, Schiller, que era
também poeta e dramaturgo, o supera, ao eleger a arte, especificamente a arte
trágica, como uma fonte do sublime. Rejeitada até então por seu caráter
imitativo, aquém da realidade, a arte, agora, justamente por não ser o real,
excluiria os perigos e a opressão factuais e celebraria a experiência estética
como motivação segura e positiva do sublime.
O sublime, tantas vezes
reformulado, conservou todas as vezes a sua natureza dúbia ao contrapor dor e
prazer, perigo e fascínio, e encontrou no artista romântico o seu grande
ensejo. Esse artista, que procurava valorizar a subjetividade, o lirismo, a
emoção extasiada e arrebatadora, estima a estética do sublime por ela ser a via
pela qual se alcançaria a abstração, a sensibilidade e o êxtase.
II
O pintor alemão Caspar David
Friedrich é, nas artes plásticas, o nome mais paradigmático quando se fala da
representação do sublime. Responsável por alçar a inferiorizada pintura
paisagística à posição e importância das pinturas históricas e religiosas,
Friedrich foi admirado sobretudo posteriormente ao período romântico, quando já
não havia tão claramente uma hierarquia entre os gêneros da pintura e
abandonava-se a fácil rotulação de “místico” à persona artística do pintor.
Suas pinturas, ambicionando traduzir uma transcendência a partir da natureza,
ameaçavam o lugar até então ocupado pelas pinturas alegórico-religiosas e
coincidiam com a arte romântica na medida em que nasciam da apreensão subjetiva
do mundo a fim de alcançar o espectador com o ímpeto do sublime. A partir do
século XX, a obra de Friedrich foi revista sob a luz de seu projeto
estético-filosófico, ganhando relevância e tornando-se ícone do espírito
romântico em muitos aspectos; sua influência sobre posteriores artistas também
foi reconsiderada, recebendo, por parte de críticos como Robert Rosenblum, o
mérito de ter fundado um dos dois percursos da pintura moderna.
O cinema, arte que tem algum
parentesco com a pintura, também muitas vezes mostrou a influência da estética
de Friedrich, vez e outra, consciente ou não. De Ludwig de Luchino
Visconti a Mãe e Filho de Alexander Sokurov, passando por obras seminais
de Werner Herzog, diretor sempre interessado em filmar a tensão entre o homem e
a natureza (Coração de Cristal, Aguirre, a Cólera dos Deuses etc.),
o cinema, além de ter produzido essas citadas obras com explícita influência do
legado de Friedrich, ressignificou muitas vezes noções tão caras ao romantismo
e presentes na obra do pintor alemão. É este o ponto que interessa ao presente texto,
verificar como o sublime, imageticamente, se transfigura em obras de tempos e
costumes tão díspares como em o Caminhante sobre o mar de névoa (1818)
de Friedrich e Lições da Escuridão (1992) do cineasta alemão Werner
Herzog.
Análise
I
O sublime, tanto em Friedrich
quanto em Herzog, almeja, por meio do arranjo imagético, indicar uma
realidade/verdade além da imagem. Sobre o sublime em seu Lições da Escuridão,
Herzog diz: “É apenas nesse estado de sublimidade que algo mais profundo se
torna possível, um tipo de verdade que é inimiga do meramente factual. Eu a
chamo de verdade extática.” (HERZOG, 2012) Friedrich também demonstra sua
crença em uma verdade “profunda” ao recomendar “Cerre teu olho corporal, para
que só assim vejas com o olho espiritual a tua imagem. Traze então à luz aquilo
que viste no escuro, para que retroaja em outrem, do exterior para o interior.”
A função do sublime é bastante similar para o pintor e o cineasta, entretanto
são bem diferentes os procedimentos que cada um empreende para alcançá-la.
Friedrich constrói o sublime
contrapondo a finitude do homem à grandeza inapreensível da natureza; traduz em
imagens o que disse Burke ou Kant, mas como Schiller, crê que não somente a
natureza, mas também a arte possibilita esse sentimento. A arte imita o real,
mas não por isso carece de realidade, como disse Burke, antes replica, talvez
de forma mais concentrada, o que, também na realidade, está além da aparência,
instigando o pensamento e afetando o estado de espírito do espectador.
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C. D. Friedrich. Caminhante sobre o mar de névoa, 1818. |
Em Caminhante sobre o mar de
névoa (1818) um homem observa, a partir de uma grande altitude, uma cadeia
de montanhas que se estende indefinidamente por entre uma espessa névoa. Esse
espectador, bem delimitado enquanto forma, estabelecido pela cor preta, ligado à
também escura e bem delimitada rocha, é o contraponto à paisagem de
profundidade incerta, que toma todo o restante da tela, emoldurando o homem com
seu magnetismo e grandiosidade. O homem, ao alcançar o pináculo da montanha,
chega ao miradouro exemplar do sublime, onde a natureza revela sua enormidade e
não se deixa fixar inteiramente no olhar daquele que a observa. A difusa
paisagem, sua incerteza e sua suave melancolia precisam o sublime de Friedrich,
silencioso porque sem violência pictórica e impassível ao sugerir, quase
sempre, formas imóveis a compor a natureza e seu infinito.
Em Monge à beira-mar
(1808-1810) há um arrebatamento ainda maior ao apequenar sobremaneira a figura
do homem contraposta ao oceano e ao céu que toma mais de dois terços da tela.
Friedrich traduz a filosofia do sublime sem abrir mão de incitá-lo também nos espectadores
de sua obra. Assim vemos não só o caminhante ou o monge, mas também intuímos
seu sentimento e supomos a sua desolação, porque o arranjo imagético, ou
justapõe com precisão o homem e a natureza, ou se apropria de uma visão
demasiado aberta a capturar a paisagem e prever sua incalculável continuidade
para fora da tela; ou, como é de costume, realizam-se os dois processos.
Registrando em plano geral os
campos de petróleo incendiados e destruídos no Kuwait após a Guerra do Golfo,
Herzog imerge o espectador em cenários catastróficos a partir do litoral
intacto e iluminado. A condução do diretor trabalha para criar uma viagem a um
lugar inóspito, sem explicação nem referência, e não à toa Herzog muitas vezes chamou
o seu filme de “ficção-científica”. No entanto, mesmo antes do filme começar,
podemos prever alguma sublimidade insinuada pela epígrafe “O colapso do
universo estelar ocorrerá — como a criação — em um esplendor grandioso.” São
palavras de Herzog, mas atribuídas falsamente a Pascal. Sobre a falsificada
citação, Herzog diz: “Utilizando tal citação como prefácio, suspendo o
espectador, antes mesmo que este tenha visto o primeiro frame, a um nível
elevado, de onde ele poderá entrar no filme.” A referência a Pascal confere
universalidade e importância histórica à epígrafe, fazendo dela, como diz o
diretor, a primeira ferramenta a elevar o espectador.
Da epígrafe em diante vários
recursos são empregados com a finalidade de manter o “esplendor grandioso”, a
elevação do espectador, a sublimidade das imagens. O mais recorrente e o mais
importante deles é o uso de tomadas aéreas a partir de um helicóptero, substituto
do pináculo rochoso de outrora. Como em Friedrich, são as paisagens muito
amplas o trunfo central na construção do sublime. Mas em Lições da Escuridão
as imagens trazem uma realidade apocalíptica e violenta que se distancia em
muito da melancolia e da imobilidade das formas de Friedrich.
É justamente a
violência das cores (o vermelho do fogo e o negro da fumaça) e dos movimentos
(o incessante incêndio entremeado de explosões) que caracterizam esse sublime
proposto pelo diretor. A paisagem em colapso é filmada, ora de maneira móvel e
sequenciada, desde o helicóptero, a marcar a conquista completa da paisagem
pelo petróleo e pelo fogo, ora de maneira mais estática e breve, a partir do
chão, a reforçar uma espécie de paralítica aflição das ruínas e da terra
infértil. Ainda o uso de músicas suntuosas, em sua maioria compostas por
mestres do romantismo como Wagner, Schubert, Verdi e Mahler, e a narração (do
próprio Herzog), vez e outra grandiloquente, não didática, citando trechos do
livro do apocalipse e refletindo sobre a vida no planeta Terra, completam a
atmosfera de sombria sublimidade.
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C. D. Friedrich, As ruínas de Eldena, 1825 |
II
A finitude do homem, o tema da
morte, está presente em muitas das obras de Friedrich, não somente de forma
implícita ao retratar a natureza limitadora, mas principalmente nas pinturas
que retratam ruínas, naufrágios, lembranças da civilização que sucumbem em meio
à paisagem natural. Abadia no Carvalhal (1809 - 1810), por exemplo, está
repleto de signos da morte: não só a ruína centralizada da abadia, mas o
inverno e a neve precipitada, as árvores sem folhas, os túmulos espalhados e o
céu escuro a encerrar o horizonte. As ruínas de Eldena (1825) é uma obra
menos soturna, entretanto ainda mais centrada na figura da ruína, mostrando a
posse, pela vegetação, dos antigos restos de uma construção, e sugerindo que a
obra humana, subjugada ao poder da natureza, acaba por tornar-se matéria-prima
desta. De uma só vez essas ruínas são resistência — pois ainda não estão
amorfas — e rendição.
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C. D. Friedrich. Naufrágio sob a luz do luar, 1835. |
Também misturada à natureza, mas ainda reconhecível, está
a embarcação de Naufrágio sob a luz do luar (1835), ícone do esforço
humano conformado à irredutível passagem do tempo, à própria extinção. Essa
aura de conformidade e silêncio mais uma vez reitera o sublime imagético de
Friedrich e, nesses exemplos, utiliza-se da ruína como símbolo do homem
sublimado, dividido entre a segurança enquanto ser racional e a insegurança
enquanto ser natural. Assim as ruínas de Friedrich conservam sempre alguma
identidade, um fragmento necessário para se supor o todo, mas, ao mesmo tempo,
trazem em si o fatídico fim, a morte. No duplo sentimento, coincidem a ruína e
o homem.
O signo da violência marca as
ruínas filmadas por Herzog. Agora não mais a natureza, mas o próprio homem,
pela guerra, é o algoz da civilização. Lições da Escuridão constrói o seu
sublime distanciando-se da melancolia e do silêncio insistidos outrora por
Friedrich, acreditando então no magnetismo da paisagem em colapso: a natureza
transfigurada (lagos de óleo, nuvens tóxicas) é tão vasta e tão vastamente
irreconhecível a ponto de excluir ao homem qualquer racionalização de sua
grandeza. Ao ser acusado de estetizar o terrível, Herzog, em ocasião da premiére
do seu filme em Berlim, responde nervoso que Dante e Goya fizeram o mesmo e
jamais em vão. Quiseram também construir o sublime, um tipo de “verdade
extática”, mais significativa que o meramente factual.
O filme vai, aos poucos, revelando
a gênese de sua particular sublimidade: o homem, frente ao seu próprio poder
destrutivo, sente-se desalentado, como se seus impulsos e sua violência
abandonassem a sua realidade física e atentassem para a sua segurança; a força
de grandeza incomensurável, limitadora, que antes provinha da natureza, agora
provém do homem, ou antes, de uma nova natureza, modificada a tal ponto pelo
homem que é ícone de seu furor, apesar de estranha aos seus olhos. A verdade
alcançada por esse catastrófico sublime é incisiva ao espectador: lembra-o de
que a apocalíptica paisagem é tão somente uma réplica do desvario da vontade
humana, tão inapreensível e indomável quanto o infinito, e tão presente em cada
um de nós como em cada fato que julgamos terrível.
Considerações finais
O sublime, do romantismo aos dias
de hoje, conserva-se como importante elemento composicional nas mais diversas
expressões artísticas (cinema, literatura, artes plásticas etc.), não obstante,
desde o século XIX, tenha sido forjado pelo desenfreado curso da História; e se
hoje é possível desentranhar da violência a sublimidade é porque o homem — e
consequentemente suas manifestações artísticas — esfacelou-se diante de eventos
tão traumáticos quanto as duas guerras mundiais, tornando-se, para si próprio,
uma paisagem devastada, ininteligível e infinitamente contraditória. Assim o
romantismo, de certa forma, ultrapassa a sua época e reencarna seus preceitos
estéticos na arte do século XX, adaptando conceitos como o belo, o grotesco e o
sublime.
Herzog é herdeiro de Friedrich na
medida em que acredita no magnetismo da imagem meticulosamente planejada, e
dissidente do mesmo na medida em que opta, como meio de alcançar o sublime,
pela violência e pela inquietação no lugar da melancolia e do silêncio. Lições
da Escuridão é romântico ao retomar não só o conceito de sublime, mas
principalmente a grandiloquência da ópera wagneriana, em seu apelo visual e
sonoro na construção de um trágico espetáculo. Por outro lado, o filme é avesso
ao romantismo em sua franqueza documental.
A visão do romantismo como
encerrado histórico e culturalmente num espaço de tempo é frágil e arriscada.
Seu tempo pode ter findado, seus mestres podem ter morrido, mas suas ideias,
assim como as ideias de outras épocas, permanecem no contínuo da História e, a
exemplo do que disse Lavoisier a respeito da matéria, estão antes transformadas
que perdidas.
Bibliografia
ARAUJO, Ana Karênina Trindade. O
sublime e a arte segundo Schiller.
Revista do Edicc, Campinas, v. 2, n.
2, p.136-146, jul. 2014. Disponível
aqui. Acesso em: 20 jun. 2018.
ARAUJO, Ana Karênina Trindade de. Os
caminhos do sublime: Longino, Burke, Kant e Schiller.
Saberes: Filosofia e
Educação, Natal, v. esp, n. 4, p.37-45, jan. 2015. Disponível
aqui. Acesso em: 20
jun. 2018.
HERZOG, Werner. Sobre o Absoluto,
o Sublime e a Verdade Extática.
Revista Carbono, Rio de Janeiro, v. 1,
n. 1, p.3-5, dez. 2012. Disponível
aqui.
Acesso em: 20 jun. 2018.
SEEBERG, Ulrich.
Dimensões
filosóficas na obra de Caspar David Friedrich. Disponível
aqui. Acesso em: 20 jun. 2018.
FilmografiaLEKTIONEN in Finsternis. Direção:
Werner Herzog. [s.i.], 1992. Son., color. Legendado.
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