Por Sérgio Linard
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Irene Solà. Foto: Libert Teixido |
O trabalho e o consumo da
literatura contemporânea — tanto em eixos nacionais quanto em internacionais —
costumam apresentar caminhos espinhosos nos quais ideologias, discursos e
pontos de vista precisam estar muito bem expostos sob pena de as obras não
terem algum valor reconhecido para além do debate da hora do dia. Com isso em
vista, certas obras podem amargar o ostracismo por não se encaixarem naquilo
que se espera para o devido engajamento das mídias ou dos debates vigentes.
Esse percurso acaba colocando a literatura no perigoso caminho (algum dia ela
esteve fora dele?) de se fazer ser entendida e articulada com aquilo que dela
esperam. Quando o projeto literário, de textos da contemporaneidade, foge disso,
encontra resistências mercadológicas e de público. Felizmente, porém, certas
obras literárias garantem nosso suspiro nesta clausura e
Canto eu e a
montanha dança é uma dessas obras.
O romance da escritora catalã
Irene Solà está dividido em quatro partes e em dezoito capítulos. Trata-se de
um texto rico em aproximações com discursos da oralidade e com toda as tradições
que estes mesmos discursos têm atreladas a si. Não obstante, como o próprio
título já permite entrevê, há na narrativa a presença de um ideário fantástico
que, não se engane o leitor, é mais um dos caminhos para desvelamento da vida
real e de suas múltiplas formas, para além de uma fantasia de puro e simples
entretenimento. Múltiplos narradores de diversas histórias se encontram neste romance
que consegue alcançar o exímio trabalho de articular pautas da atualidade com
rigor estético apropriado para a seriedade que os temas exigem. Mas isso
somente a partir da página trinta e nove.¹
Explico: são poucos os casos em
que a apresentação de um livro costuma acertar na preparação do terreno para um
leitor, isso porque, intentando o convencimento para a compra, essa parte das
obras é destinada a elogios incontáveis, curiosidades sobre a vida do autor e
frases que realçam o quão “essencial” é aquela leitura. O resultado, por vezes,
foge do anunciado. Neste caso, porém, há de se registrar a seriedade do
trabalho da Editora Mundaréu em encarar a obra em mãos como ela é, com as
possibilidades de truncamento e até mesmo de dificuldade de compreensão, pois
no início da apresentação da obra anunciam: “Logo no princípio, o leitor há de
se surpreender como o primeiro narrador e com a inexorabilidade das primeiras
cenas”. Sem este aviso prévio, é possível que o leitor desista do texto antes
da página que acima citei, justamente por encontrar um narrador bastante
engajado, com cenas complexas de um cotidiano de faltas e de falhas sociais,
com consideráveis ligações com as ancestralidades. O livro tem, até aqui, cenas
que parecem possuir, isoladamente, pouco sentido e personagens que, igualmente,
não parecem ter quaisquer tipos de desenvolvimentos. É quando se inicia a
leitura da página trinta e nove que a história começa a demonstrar ares que de
fato passarão a abordar a perspectiva da vida no universo, independentemente
dos traços antropocêntricos que estamos habituados a encontrar na literatura de
um modo geral.
Nesta obra, o leitor pode esperar se
encontrar com textos que são narrados por mulheres, animais, homens, montanha ou
outras figuras que fogem do espectro comum na construção das narrativas. Não
que possamos relegar a isso algum título de originalidade (basta lembrarmos dos
contos de fadas para encontrarmos ricos exemplos de narradores similares), mas
podemos destacar que, no mar de muitas fórmulas prontas, o livro que se propõe
experimental e consegue fazer isso de forma bem-sucedida é merecedor de
destaque.
“Que veneno enganoso é o amor.
Quando o Domenéc morreu, fiquei sozinha com duas crianças, a casa e o avô Ton.
[...] A lembrança como uma lápide que não passa um dia em que eu não pense
nele, um dia em que não o veja, um dia em que não rememore, um dia em que não
sonhe com ele.”
A morte de Domenéc parece servir
como ponto comum para as múltiplas histórias que serão lidas. De alguma forma,
a narrativa e os narradores distintos terão algum cruzamento com a história
deste personagem construindo algo que nos remete aos pensamentos bakhtinianos
sobre a polifonia², uma vez que todas essas vozes que se cruzam aqui aparecem
em níveis de igual influência e participação no grande diálogo social. As
múltiplas vozes não estão, portanto, como simples confluentes para relatar o
que se passa com Domenéc, contrário a isso, as histórias de uma corça e/ou da
própria montanha são contadas com a relevância individual que elas possuem,
inclusive recorrendo às formas que elas julgam ser melhores. No excerto acima,
por exemplo, vê-se como a personagem viúva de Domenéc registra a latente dor
que a lembrança do falecido a gera. É essa cena, inclusive, que ajuda o leitor
a entender como essa pessoa adentrou no nítido processo melancólico em que se
encontra, mostrando seu verdadeiro apego a um objeto perdido ou, melhor dizendo,
à lembrança deste objeto, ainda que tal lembrança esteja sofrendo as mutações
comuns do processo de rememoração. A história de Domenéc, que com a dela se
cruza, não serve para falar de Domenéc; serve para falar da história dela e da
dor com a qual passa a conviver. Ao fim de um dia cansativo — o que também demarca o final do capítulo — o
leitor encontrará o choro da personagem sendo apresentado em uma sequência de
doze orações aditivas³ que, a despeito de qualquer acusação de se tratar de uma
simples repetição por falta de manejo com a linguagem escrita, constrói muito
bem a ideia de um choro desolado, um choro para o qual não se sabe o motivo
adequado, um choro desesperançoso e naturalmente melancólico, um choro que
recebe, à medida que avança, motivos para existir, com pausas antes das orações
aditivas iniciadas por “e”, justamente para demarcar a respiração humana
durante um choro como este.
A história prossegue, por sua vez,
com outras experimentações formais que incluem um capítulo intitulado “A
poesia”, narrado com mistos entre prosa e poemas. É aqui onde se encontra o
verso que dá título ao romance, e que serve de ótimo exemplar para a
compreensão do porquê de ter sido essa a escolha, ainda que o narrador busque
registrar mais de uma vez que jamais explica seus poemas, deixando sempre
espaço entre um e outro para que haja o devido processamento mental. Ao fim
desta parte, chega-se ao que parece ser a declaração de como a obra em tela se enxerga:
“[...] a poesia é jogo, também. O
poeta precisa ser brincalhão. A poesia é assunto sério, dos mais sérios que há.
Mais sério que a morte, que a vida e que tudo. Um assunto profundo e vital. E,
por isso mesmo, é preciso saber brincar, e saber rir, e entender de ironia.”
Este trecho um pouco oculto, se
despercebido, pode agregar o prejuízo de uma incompreensão de como a narrativa
se propõe enquanto romance. A Poesia que integra a obra é vista com muita
seriedade, como resultado de um árduo trabalho sem o qual não se teria a opção
de se fazer arte com profundidade e exatamente por conta deste trabalho que o
romance se permite, ironicamente, experimentar, brincar com formas e conteúdos
para que a essência da Poesia seja alcançada ou, pelo menos, perseguida como o
labor que é.
Dentro dessa narrativa em que o
antropocentrismo, como mencionei anteriormente, é deixado e lado, figuras como
a própria montanha que ambienta o romance têm a oportunidade de contar suas
histórias. Para isso, ela decide incluir ilustrações junto da narração verbal
que demonstram visualmente seu processo de formação, desde um período em que
ela estava em terra plana até aos literais momentos de trauma que a fizeram ser
como ela é, dançando no ritmo das histórias que nela se passam. Um texto
multimodal, para revelar uma verdadeira polifonia em que a voz do bicho Homem é
apenas mais uma dentro do universo de vozes e não a única possível ou a
dominante. Ainda que as marcas da oralidade sejam presentes, elas ali o estão
porque são próprias da humanidade. A corça quando decide narrar sua história, o
faz com seu ritmo, como quem corre. A montanha também o faz à sua maneira, com
suas ilustrações. A bruxa recorre à ancestralidade para reivindicar seu direito
à narrativa.
As histórias que aqui se cruzam
são resultantes desta materialização e de como a vida é ela mesma: cheia de
cruzamentos entre lugares, seres, pessoas, histórias. O romance é construído,
então, em circunstâncias de dúvidas e de aparências, pois quando alguma certeza
parece alicerçada, em páginas seguintes, a montanha dança e o alicerce se
desfaz. É, portanto, uma narrativa que exige grande atenção por parte do leitor,
porque nesta dança montanhesca o ritmo é muito próprio.
É motivo de elogio a realização
muito bem-sucedida da história, especialmente ao se considerar a presença de
uma quantidade considerável de discursos e de acontecimentos sumindo e
ressurgindo a todo tempo. O destaque e o elogio são merecidos porque a autora
consegue recuperar acontecimentos rotineiros, singularizá-los, e recolocá-los
dentro de um contexto da coletividade — humana ou não — sem anular, sob
hipótese alguma, a individualidade, pois a narrativa mostra exatamente que o
coletivo é feito dessas singularidades de seres que existem e que desejam,
sejam eles humanos ou não. Este é um romance em que a forma é carro-chefe na
construção de uma história rica e abundante de saberes e de culturas. A
tradição sendo construída e apresentada por meio de uma moderna canção.
Uma História feita de Histórias.
______
Canto eu e a montanha dança
Irene Solà
Luis Reys Gil (Trad.)
Mundaréu
224p.
Você pode comprar o livro aqui
Notas
1 A edição a qual me refiro aqui é
a única de que se tem conhecimento, no formato de livro físico, no mercado
editorial brasileiro, trata-se de: SOLÀ, Irene.
Canto eu e a montanha dança.
Trad. Luís Reys Gil. São Paulo: Mundaréu, 2021. Em outras edições, há de se
considerar a possibilidade de o número de páginas ser diferente.
2 Cf. BAKHTIN, Mikhail.
Problemas
da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2015.
3 Ao se consultar a versão do
livro em seu idioma original, o catalão, pode-se perceber esta mesma
construção. Não se trata, portanto, de modificação/adaptação feita no processo
de tradução. A consulta foi feita em: SOLÁ, Irene.
Canto jo i la muntanya
balla. Barcelona: Editorial Anagrama, 2019.
E-book.
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