Por Renildo Rene
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Djaimilia Pereira de Almeida. Foto: José Carlos Carvalho |
Da capital de Angola para a
capital de Portugal são aproximadamente 8.500 km; aproximar dois locais, dois
continentes diferentes, não é tarefa fácil, porque ainda requer confrontar
culturas e desejos, muito além do afastamento físico.
Percorrer esse trajeto é o
objetivo de Cartola e Aquiles, pai e filho, no enredo de
Luanda, Lisboa,
Paraíso. A partir de uma deficiência física no calcanhar que o menino porta
desde seu nascimento, os seus pais (ao lado, a mãe Glória) alçam desde cedo um
objetivo de procurar uma solução determinada. Para a família angolana (há ainda
a filha Justina) vivendo em um país que caminhou para a independência no início
da segunda metade do século XX e sem recursos médicos palpáveis para
tratamentos delicados, Portugal se tornou sonho nesse seio familiar.
Deslocar-se do hemisfério sul para
o hemisfério norte, no mundo das globalizações que aproximam, é um movimento
diligente. Tanto é, que a dupla realiza tal viagem rapidamente, já nas
primeiras páginas, com poucas intempéries. Contudo, surge um terceiro
deslocamento para esses personagens: um “locar-se”, difícil e tempestuoso, que
dará tom ao restante da obra; da distância física, fácil de ser apreendida,
resulta uma distância imaterial, que será custosa e fatigante para essa família.
Abstrair distâncias — eis o que Djaimilia Pereira coloca na superfície de seu
segundo romance, publicado em 2018.
***
Toda a construção da primeira
parte do livro é paradigmática ao significar o território luandense como apenas
um ponto de partida para as ações da história. Depositando todas as suas
esperanças futuras em uma cirurgia para curar o garoto, o anseio desse núcleo
familiar revela-se na medida que as paisagens de Angola vão perdendo espaço
para o desejo utópico de estar em Portugal.
Lisboa passará a ser o lugar dos
não-recuperados, do destino de quem quer mitigar de vez qualquer experiência
passada. Portanto,
Luanda, Lisboa, Paraíso não se vincula muito na
ex-colônia por uma decisão que corresponde ao próprio agir ansioso do pai que
assume a responsabilidade de levar o primogênito em direção à outra cidade — e
quer ir o mais rápido possível. Tal decisão narrativa, de início, traz um
prejuízo de não explorar com equilíbrio todas as relações familiares existentes
naquela terra.
E eis aqui uma hesitação
preliminar da narração: centralizar Cartola como o personagem a ser acompanhado
integralmente. Isso parte de seu duplo nuance na ficção, pois a possibilidade
de ir para outro continente não é apenas uma questão da existência física do
seu filho, mas de suas próprias feridas traumáticas na transição pós-colonial;
contudo, a metáfora das coisas que se abandonam ao ir para a ex-metrópole
colonial não dá conta de esclarecer totalmente as paisagens e os outros seres
relegados, e que, a priori, também são resultados da mesma condição.
“Sentia que regressar a Luanda
seria como morrer de livre vontade. E então sabia por que escolhera ficar em
Lisboa mesmo sem condições e acossado pelo medo”.
Desembarcados, as aspirações
daquilo que foi sendo arquitetado por anos já não se realizam, em um curto
espaço de páginas. Certamente, os anseios vão anulando-se com as passagens de
pai e filho na outra capital. Tanto as várias passagens pelo hospital não dão
conta de resolver o problema de Aquiles, como o adiamento da estadia deles
deteriora ainda mais as suas condições.
Tempo e espaço condicionam essa
nova fase da vida deles, pois os vários anos rebaixam ainda mais a positividade
de verem aquele calcanhar recuperado. Impossibilitados de viverem o Portugal
sonhado, eles se degradam na periferia. Paraíso, o bairro marginal, é o local
destinado para quem passa a viver, novamente, à margem do sistema opressor, com
sonhos inchados e fantasmas colidindo. Tamanho é esse momento de desesperança,
que o despedaçamento social se confunde com o físico, e Cartola já não tem
tanto vigor como antes; a segunda parte deixa claro isso: ele está rebaixado e
alheio aos seus parentes.
Essa posição que o homem parece
configurar a si mesmo, diante de sua situação, para com os outros familiares,
aponta dois impasses que o narrador tem de se acertar com o seu romance.
Obviamente, o primeiro desses impasses é a relação dos dois destituídos. O
protagonismo dado aos pensamentos do pai, desloca o filho para um segundo plano
que não parece ser respondido integralmente.
Não é a centralidade em Cartola
que configura um problema, uma vez que da hesitação primeira passa-se a
analisar ele como a figura ampliada nos eventos romanescos, no entanto, a falta
de olhar acurado para quem está ao lado dele, torna o filho distante na
narração. Ao Aquiles só restam ocasiões esparsas e que dão dimensões mínimas
para seus pontos de vista. Só o que fica definitivamente é a percepção confusa
de que ele se vê como doente e cuidador ao mesmo tempo.
Porém, se a escrita de Djaimilia
esbarrou em como transpor equilibradamente para a ficção a existência do filho,
em relação a do pai, o segundo impasse narrativo talvez seja a grande sutileza
que a vencedora do Prêmio Oceanos constrói: a (des)aparição de Glória e
Justina, a família deixada para trás após a adaptação no limítrofe da
metrópole.
Com uma estética epistolar
adentramos, ainda que estreitamente, na existência materna de dependência e
enfraquecimento físico/mental. A partir das cartas trocadas, Glória simboliza a
narração da distância de um casal apartado. A condição de ora remetente ora
destinatária intercala os vários capítulos, e é por essas correspondências que
ela aparece diretamente e é reparada. Se relacionar por cartas com a Mamá
não era o ideal, mas se tornou confortável para quem o Papá queria ser
agora, depois de sentir sua mulher como uma extensão do seu passado que ainda o
acompanha, e que ele vai esquecendo “sem permissão”.
Justina, por sua vez, tem seu
momento quando finalmente viaja para reencontrar o pai e o irmão, e junto com
sua filha têm um vislumbre realista de como está a família. Já é uma cisão de o
que antes fora uma tentativa de lar uníssono e, “aquilo que desconheciam um do
outro” é o que agora os mantém unidos.
De maneira que uma parte se
estabelece em um novo lugar e a outra parte ainda está enraizada na terra
natal, a disfuncionalidade tematiza um microcosmo de uma família herdeira do
despedaçamento colonial. O afastamento, nesse momento, adquire uma linguagem
que se articula muito bem na história, com enfoques singulares que caracterizam
as vivências femininas.
Superada a distância larga de
Angola-Portugal, o que Cartola busca compreender é o espaço que existe entre
ele mesmo e seus sentimentos. É em Paraíso que percorremos o tal terceiro
deslocamento do título, e que a jornada principal se localiza. O local funciona
como um depósito dos sem-lugar na elite portuguesa, transformando a noção
interior do protagonista de enfim poder se reconstruir como sujeito a partir de
uma nova casa.
Por isso, o epíteto do bairro em
que vivem não é uma ironia do romance e sim, uma acomodação possível que a
trama instaura: quando os sonhos-primeiros se adiam, outros aparecem como
periféricos e se tornam o paraíso possível.
Ao que seja, é pertinente um
questionamento para Cartola, a partir de um tal sambista brasileiro: “O que é feito
de você ó minha mocidade?” e o romance responde que o pai de Aquiles é aquele
que queria vomitar Luanda, mas ainda não conseguia; que “queria livrar-se da
primeira vida, mas ela fazia-lhe frente; passar à próxima, mas era ainda o
mesmo homem.”
Para aproximar o leitor desse
homem que quer viver mais próximo de quem ele realmente pode ser naquela
estrutura social, a narração traça a personalidade do pai pelo tom sugestivo de
sua imaginação e de suas relações com os outros moradores.
Dos seus novos relacionamentos,
está o com o amigo e parceiro Pepe, fonte de ajuda para sua estadia. A
interação entre os dois atualiza a personalidade de um homem que não vive mais
em função do futuro. Entre as possibilidades de se interpretar a amizade dos
dois está a de como nosso protagonista permite aos poucos frutificar seu
cotidiano; deixa de ser somente o pai e marido, para ser um cidadão aberto que
nunca viveu a liberdade em sua integridade. Juntos, ele e Pepe atravessam “o
fosso da linguagem”, ao perdoarem o presente que não viveram.
E aí está a chave de reflexão que
o romance assinala, em suas últimas páginas: motivar o leitor a decifrar
Cartola e suas nuances. Se ele é, de fato, a figura central, procurar nele um
indivíduo que problematize as distâncias, tanto da família como de si mesmo
ajuda a ter as interpretações possíveis do personagem que viveu entre a
colonização e a independência angolana. Djaimilia traça nessa obra um enredo
galgado nessa não obstinação em saber se a viagem foi eficiente para Aquiles.
Entretanto, ela nos convida a atravessar o interior do Papá em quase 200
páginas, e o que conseguimos abstrair de sua existência — pois em sua
totalidade, Cartola sozinho não sabe onde está e nem quem é, e precisa de nós,
leitores, para desenharmos em conjunto com ele.
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Luanda, Lisboa, Paraíso
Djaimilia Pereira de Almeida
Companhia das Letras
198 p.
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