Por Pedro Fernandes
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José Luiz Passos. Foto: Arquivo O Globo. |
A obra de José Luiz Passos se
distingue pelo interesse constante de renovação criativa, algo que pode ser
compreendido através de duas linhas: a do escritor que se experimenta à procura
de uma dicção capaz de moldar seu trabalho excepcional ou a do escritor que faz
da experiência criativa o ponto nodal do seu universo. Uma possibilidade, claro
está, não exclui a outra, embora o mais comum seja encontrar escritores que
melhor se ajustam na primeira ou segunda. No caso em questão, ainda é preciso
observar o destino da literatura do escritor pernambucano; como é recorrente em
toda obra artística, as conclusões possíveis só alcançam tempos adiante ao ponto
final de um projeto.
Entre os títulos publicados por José
Luiz Passos mais conhecidos estão os romances Nosso grão mais fino,
O sonâmbulo amador e O marechal de costas. Mas, na narrativa
curta, expressão talvez mais restrita entre os leitores, parece ainda residir
um espaço por preencher, embora, seu trabalho nesse meio não tenha se iniciado
com a novela Um álbum para Lady Laet. Existem o conto “Marinheiro só”,
que deu origem a’O marechal... e A órbita de King Kong, um
híbrido entre a prosa e a poesia, entre a história e a ficção, entre o verbal e
o visual, que concentra parte essencial da atitude experimental da sua
literatura. Uma parte desse hibridismo é retomada no livro que aparece pela metade de 2022.
A escolha do escritor pela novela
se reveste de algumas questões interessantes, principalmente numa época quando
essa forma ficcional começa a cair em desuso — embora muito dos romances
contemporâneos em curso se constituam com as feições do novelesco. Essa decisão
de Luiz Passos não guarda saudosismos da novela. É, antes, uma das qualidades
em que se articulam coerentemente fundo e forma. Parte do que trata a narrativa
é de uma tentativa de recuperar, não pelo sentido de restabelecer e sim de compreender,
a era de ouro da canção, período quando o folhetinesco alcança suas variadas
feições, seja as da fotonovela, ou, expandindo para fora do literário, as da
radionovela e da telenovela. Esse tempo é o entrevisto não pela narradora e sim
pela figura fantasmal que constitui numa das suas obsessões: Neide/ Lady Laet.
Desaparecida, a mãe de Lucineide, tivera
um passado de apoteose quando é transformada em figura destacada da música. Os
elementos que enformam essa persona criada para o consumo, ainda que Lady Laet
integre as fileiras da contracultura, é que são constituídos a partir dos recursos
da era das musas. A contínua referência ou reverência a Marilyn Monroe, por
exemplo, não é gratuita na tessitura da narrativa. A figura de gosto da
narradora, reitera simbolicamente uma medida das expressões buscadas pela mãe e
estas dialogam ajustadamente com certa atmosfera da época de grande expressão
do novelesco.
Lucineide é desafiada, pelo
interesse sobre o destino da mãe, a escrever a biografia dessa figura que ajudou
a projetar a música brasileira para os recantos mais longínquos do seu país.
Mas, tudo que tem, a princípio, como documento, são as músicas, alguns
registros em vídeo com um integrante do grupo em que Laet atua, algumas
fotografias e um duvidoso ponto de vista, o de Saboia, um homem que se diz o
mentor do nome e da carreira dessa estrela há muito apagada ou ofuscada e
interessado em obter projeção de protagonista no livro de Lucy. O contexto de
desaparecimento da cantora, embora fixado na região do interdito, remonta aos
anos de terrível censura imposta pela ditadura militar.
A biografia de Lady Laet é um
texto adiado; no desfecho da narrativa, a autora emaranha-se no vasto material
guardado por Saboia, e daqui se supõe a nascente do texto possivelmente
resultado do documental e do convívio da autora com os lives interessados
em publicizar o trabalho da cantora, isto é, instaurando-se entre outras linguagens,
o que, a princípio é paulatinamente negado pela biógrafa quando se recusa a modernidades
para o livro possível. Nesse ínterim, a ficção de José Luiz Passos lida um
aspecto essencial à literatura desde sempre: o fantasmal. A biografia de Laet
se confunde com a posição dessa personagem na novela; a biografia é uma
obsessão de Lucy qual o espectro da mãe, presente do primeiro ao último fio da
narrativa, porém inalcançável.
O espectral na narrativa responde
por várias frentes de leitura: é a inapreensibilidade da figura de biografia,
isto é, a reafirmação da impossibilidade de se narrar a vida, por mais que o
mercado editorial, no caso específico dessa narrativa, insista com a ideia da biografia
definitiva; é o vazio conflitual de uma mulher que se perde e se encontra
na busca da identidade do outro, que é, por fim, a busca de sua própria
identidade e, nesse caso, o outro e o si são continuamente deslizantes; é o
trabalho de busca e reparo do sentido uma vez a narradora
permanecer situada em regiões de fronteira e por vezes de conflito, as de lugar,
as de convívio, as de pertença, as de língua, as de tempo etc.
No caso dos desvios, os veios que
inevitavelmente distanciam a narradora do que supomos seu interesse, servem
ainda para ocultar outros segredos da narração: o primeiro deles envolve
Saboia; o segundo, Pablo, o namorado da amiga Hani. Cabe ao leitor o trabalho
de descobri-los. José Luiz Passos, por sua vez, engendra uma qualidade essencial
da novela: um problema em crescendo, multiplicador, cujo desenlace catapulta o
protagonista para uma condição totalmente diferente daquela em que se encontra
no início da narrativa. Esse desfecho em realização obedece ao esperado
fechamento do episódico, compondo a célula narrativa como um todo. Quando
pensamos na biografia possível, por exemplo, é outro núcleo o que se abre e a
partir do qual não cabe conjecturas.
Mas como podemos dizer um todo
se a questão crucial não se resolve? Isto é, se a proposição da biografia de
Lady Laet não se concretiza? Ora, os desvios da narradora não são apenas parte
na inapreensibilidade da totalidade do acontecimento e do sentido; é a
alternativa forjada por ela para se livrar das imposições que lhe rondam — uma
delas, a mão de Saboia que, no sistema literário, significa a mão do editor que
obriga o escritor a produzir não à sua maneira, mas àquela exigida pela força
do mercado. Quer dizer, eis um retorno a um tempo bastante caro à literatura
desde o advento de um sistema de produção fundado nos valores do capital. Essa
questão é outra das réplicas entre a narrativa que se adia e a que se conta. Recorde
que, à maneira da mãe, a filha quer transgredir os sistemas de imposição por entender
que a arte muitas vezes prescinde suas próprias leis. E é sobre essas leis que
Lucineide se interessa quando demonstra interesse em compreender o cancioneiro
de Laet.
Ao vazio da mãe, somam-se outros
vazios; às imposições do fazer literário, outras imposições, simbolicamente
diversas, ora das articulações sociais, ora dos modelos culturais, ora ainda
das necessidades capitais. Se repararmos de perto, o enfrentamento dessa mulher
é outra vez pelo estabelecimento de uma liberdade no interior da qual possa,
ela própria, se realizar. Há vários momentos da narrativa que poderíamos
citar; fiquemos com o repetitivo desejo de estar só na nova morada à periferia
de Los Angeles e com ele a sempre adiada chance de abrir as caixas da sua mudança
e se dedicar à organização de suas coisas. O reconhecimento de uma
autenticidade de si passa pela concretização de um lugar no mundo, algo que
nesta novela, é empurrado para a mesma dimensão das possibilidades.
E por relatar o tema insuperável
da identidade, Um álbum para Lady Laet se beneficia de alguns recursos
interessantes na problematização desse tema — além dos mencionados vazio
e lugar. O leitor mais atento terá observado certa variação no
designativo da protagonista da novela: Lucineide, Lucy. Mas existe ainda, Lu,
Lou, Luci In The Sky. E os vários substantivos próprios que a designam é ainda
uma qualidade de outras personagens: a figura título da novela é também Neide
Laet, distintivo que marca os papéis da cantora no espectro artístico; ou ainda
o caso de Pablo, Paola e/ ou Pila Coiote. Essas variações significam tanto o
conflito de uma unidade do eu quanto do gênero e é parte nos impasses
linguísticos, outra particularidade nessa novela, visto que nela circulam
figuras que são parte entre os imigrantes legais ou não nos Estados Unidos.
Lucy e Saboia são brasileiros, Hani é libanesa e Pablo mexicano.
A pluralidade de fronteiras
linguísticas impõe outro modelo de linguagem. A novela adota, assim, frases
objetivas, silêncios, vocabulário restrito, infiltrações diversas do inglês; das
diversas dicções, as tentativas de comunicação favorecem o aparecimento de uma
variante só compreensível na narrativa; os nomes próprios, para retomar o
exemplo citado, respondem por uma dessas particularidades de linguagem na novela.
Em sentido amplo, essas personagens estão ainda limitadas no mundo. Do núcleo
narrativo, apenas Saboia domina muito bem a língua, uma qualidade que não é gratuita
na narrativa se lembrarmos seu simbólico papel do patriarcal. Lucineide, por
sua vez, vive às voltas para conseguir o pleno domínio do inglês.
Dissemos que a impossibilidade do
pleno convívio com a língua limita o mundo dos sujeitos estrangeiros. Por outro
lado, podem expandir as formas de representação para si. Assim, a escolha de
José Luiz Passos por estabelecer um diálogo entre o conteúdo verbal da novela
com o visual — Um álbum para Lady Laet reúne mais de duas dezenas de
desenhos do escritor — encontra aqui alguma justificação. O desenho, por mais
que reproduza o dito na escrita, não a repete, mas a amplia; seu conteúdo permite
que o leitor vislumbre outras significações nuançadas pelo relato mas talvez limitadamente
expressas e não apenas pelas proporias fronteiras da escrita, mas pelas
fronteiras da língua de sua narradora.
Repete-se com alguma frequência
que determinada obra retrata isso ou aquilo. A novela de José Luiz
Passos se situa na mão contrária disso que não é uma compreensão de um todo
errada da ficção mas limitadora, afinal, o poder de retratar cabe, logicamente,
ao retrato, algo que a literatura não é. Porque à literatura cabe a tarefa de
libertar o mundo de suas próprias limitações, de propor um mundo que se faz outro
e não repetição da exterioridade. Bom, o dilema da biografia por vir,
apresentado antes, seria suficiente para justificar isso. Mas, o escritor fabrica
todo um mundo para a partir dele situar Lucy e os seus; além dos desenhos, são
as músicas, os títulos de álbuns, as apresentações, tudo em conformidade com a
verdade do ficcionado. Esse mundo do escritor, no entanto, só se revela para o
leitor, refazendo a ideia segundo a qual o que deve interessar ao leitor de ficção
é primeiramente o conteúdo da ficção. Numa época quando, tudo o que se narra
precisa de um correspondente material e biográfico, reavivar o que parece óbvio
— a autenticidade e a verdade do fabular — é talvez o maior valor desse livro de
José Luiz Passos, que, continua um dos mais interessantes criadores na
literatura brasileira em curso.
Ligações a esta post
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Um álbum para Lady Laet, José Luiz Passos
Alfaguara, 2022
128p.
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