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Ilustração: João Fazenda. |
Há algo que se perde em qualquer
tipo de padronização, mesmo as aparentemente necessárias e menos belicosas. Tomemos
a escolha de uma fonte tipográfica para uma coleção de livros. O estilo de um
autor por certo transcende a letra impressa no papel, mas ele igualmente se dá
através dela. Cada autor, é certo, merece sua própria fonte — e o fascínio por
manuscritos, quando ainda os havia, deve-se muito à desumanização da firma
autoral pela planificação tipográfica dos séculos posteriores. Mais do que
isso, não seria de todo descabido pensar que tal fonte poderia ser vendida
junto com os direitos autorais de uma obra, que só poderia ser comercializada
se respeitasse esta demanda — naturalmente, seria algo bastante trabalhoso
adaptá-la para outros alfabetos e sistemas de escrita, mas ainda acho que o
autor deveria ser capaz de escolher sua aparência textual nas mais diversas
traduções. A fonte, como seria de esperar, deveria ser propriedade do autor,
que pode mudar de casa editorial sem abrir mão dessa marca. Do mesmo modo, a
sanha da padronização, que costuma preferir livros nivelados na estante, com
lombadas partícipes de uma mesma paleta de cores, tende também a privar os
diversos livros de um mesmo autor de qualquer fisionomia própria, respeitando
apenas eventuais variâncias de circunferência abdominal.
Ora, se livros são como filhos, é
justo esperar que tenham a mesma altura, ainda que gerados em circunstâncias
completamente distintas?
Angústia me parece um livro certamente mais
corpulento e atarracado do que
Vidas secas, de uma proverbial magreza
alongada. Mas aqui estão os dois atrás de mim, em uma mesma fonte (tipologia
Melior), o que me agrada, mas quase perfeitamente niveladinhos (há, no máximo, uma
leve discrepância de meio centímetro, viridente signo da luta de Fabiano,
Baleia e cia. por sua independência lombar) — e, pior, o azul outrora mais
forte da lombada de
Angústia mostra-se cada vez mais esmaecido, tendendo
ao branco de
Vidas secas. Contudo, a mancha de texto deste livro, que
certamente grita mais em seus silêncios do que os momentos mais delirantes
daquele, desnuda-se caprichosamente mais forte diante de meus olhos
expectantes.
Persiste, porém, outra questão.
Ambos foram impressos com o mesmo corpo de letra (10/15,5), o que é
compreensível dentro de uma lógica de identidade editorial para a publicação da
obra completa de um autor. Mas isso ainda acaba por ocultar certas nuances.
Vidas
secas exemplifica com primor a profissão de fé de Graciliano sobre a arte
da escrita, em seu contencioso burilamento em prol do essencial (“a palavra foi
feita para dizer”), por ele famosamente aproximado ao diligente ofício das
lavadeiras de Alagoas, que torcem e retorcem a roupa até que não reste uma
única gota. Embora se trate de uma preceptiva geral da escrita do autor,
Angústia
certamente ostenta certa camada gordurosa, certo excesso vocabular que me
parece demandar uma fonte um pouco menor do que a urgência da linguagem em
Vidas
secas, que se beneficiaria, paradoxalmente, de uma letra materialmente mais
robusta.
Tais tipos de equanimidade se
mostram, no entanto, mais perniciosos quando se busca adotar uma única fonte para
conferir identidade editorial a um grupo profusamente heterogêneo de vozes
encapsuladas em livros de mesma altura. Além de notáveis romancistas dos
séculos XX e XXI, o que de fato Milan Kundera, José Saramago, Salman Rushdie e
Philip Roth têm em comum? Mas estão todos aqui, ao lado de Italo Calvino e
Franz Kafka, em uma mesma prateleira, habitada exclusivamente por exemplares da
Companhia de Bolso, todos em fonte Janson Text, ainda que com leves diferenças
de corpo.
Compulsando esses volumes é possível
notar que justamente aqueles dotados de parágrafos mais extensos, no caso, os
romances de Saramago, são os que ostentam menor corpo de letra, possivelmente
nada mais do que um sutil gesto econômico. Agora, tamanho de letra realmente
faz diferença? Se dermos a palavra a outro destes autores, Milan Kundera, um
dos mais notáveis leitores de Kafka, veremos que ao menos no caso dos romances
deste último, parece que sim.
Diz Kundera que “Kafka insistia
para que seus livros fossem impressos em letras muito grandes”, pedido motivado
não por qualquer narcisismo, mas sim por sua estética, por “sua maneira de
articular a prosa”:
“[...] o texto que se desenrola
num parágrafo infinito é muito pouco legível. O olho não encontra lugares para
parar, para descansar, as linhas ‘se perdem’ facilmente. [...] Olho
O
castelo na edição de bolso alemã: 39 linhas lamentavelmente apertadas numa
pequena página de um ‘parágrafo infinito’: é ilegível — ou, por outra, é
legível apenas como informação; ou como documento; de modo algum como um texto
destinado a uma percepção estética.”¹
A edição da Companhia de Bolso de
O
castelo, de dimensões 18 x 12,4 x 1,6 cm, apresenta 36 linhas em uma página
cheia (contra 31 linhas de uma edição regular da Companhia das Letras das
Narrativas
do espólio, de dimensões 20,8 x 13,8 x 1,2 cm, por exemplo), não sendo
possivelmente tão apertada quanto a alemã, mas certamente deficitária quanto
aos desejos do autor.
A questão, porém, não para por aí,
pois Kundera também denuncia a tendência editorial de esquartejar os parágrafos
infinitos de Kafka, que muitas vezes incluem longas passagens dialogadas:
“No manuscrito de Kafka, o
terceiro capítulo [de
O castelo] está dividido apenas em dois longos
parágrafos. Na edição de [Max] Brod, existem cinco. Na tradução de [Alexandre] Vialatte,
noventa. Na tradução de [Bernard] Lortholary, 95. Foi imposta na França aos
romances de Kafka uma articulação que não é a deles: parágrafos muito mais
numerosos e, portanto, muito mais curtos, que simulam uma organização mais
lógica, mais racional do texto, que o dramatizam, separando nitidamente todas
as respostas dos diálogos.”²
Confesso que não me lembrava com
nitidez dos parágrafos infinitos e da aparente confusão dialógica dos romances
de Kafka, mas julguei tratar-se de um lapso de memória, afinal, Kundera diz que
“Em nenhuma tradução para outras línguas, que eu saiba, mudou-se a articulação
original dos textos de Kafka”, diagnosticando o gesto dilacerador como uma
moléstia francesa, disseminada sem qualquer justificativa evidente mesmo na
prestigiosa edição da Pléiade.
Depois de uma breve inspeção, sinto
fazer-te saber, caríssimo Kundera, que de alguma forma tal moléstia cruzou o
Atlântico e chegou até minha edição de bolso de O castelo, a mesma com 36
linhas por página, cujo terceiro capítulo, na tradução de Modesto Carone, comporta
98 parágrafos.
Após um suspiro, poderíamos
considerar uma prática editorial para a coleção como um todo, mas aí nos
lembramos de Saramago, outro praticante do parágrafo infinito entremeador de
diálogos (influenciado por Kafka, quiçá?). Por que ninguém fatiou seus
parágrafos nem recompôs seus diálogos? Para além da força do Nobel e do fato de
o autor ter tido chance de acompanhar boa parte da publicação de suas obras no
Brasil, a falta de necessidade de traduzir seus romances certamente deve ter
sido determinante – e, mais do que isso, mesmo qualquer adaptação mínima foi
vetada, mantendo-se inclusive a ortografia do português europeu por desejo
expresso do autor. Kafka, é claro, jamais teve a mesma a sorte, não tendo nem
mesmo publicado
O castelo.
Seria necessário analisar outras
traduções de Kafka feitas por Carone, cuja competência é inquestionável, a fim
de verificar se tal rearticulação é de fato parte de um projeto tradutório ou
se é antes uma decisão editorial — além, é claro, de compulsar eventuais outras
traduções do romance em busca de possíveis tendências editoriais mais amplas.
Este, contudo, não é o itinerário deste texto.
Interessa-me apenas salientar
aquilo que Roger Chartier vem dizendo há décadas: a importância do respeito à
materialidade dos textos. Não me oponho, a princípio, a projetos editoriais que
acabem por alterar a anatomia de um texto — desde que isso esteja
preliminarmente justificado e, mais importante, sinalizado em todas as edições.
Poder-se-ia dizer que como Kafka não publicou
O castelo, não seria
possível afirmar que essa era de fato a articulação final por ele almejada.
Penso, contudo, que seria mais proveitoso tratar tais obras inacabadas como
achados arqueológicos, ou ainda como fósseis literários, quilópodes de membros
variáveis que não demandam qualquer uniformização ou normalização — já bastam as
infinitas e inevitáveis permutas tradutórias.
Sem meandrar minúcias, penso ser
hora de interromper estas linhas, e para isso recorro uma vez mais a Kundera, que
assinala o fato de que, junto da veneração absoluta por tudo que Kafka tocou,
seus editores (e tradutores) demonstraram inequívoco desrespeito à sua vontade
estética. Ao fim e ao cabo, talvez se possa dizer que tal cinca editorial
reflete a falta de algo ainda mais elementar — o respeitoso e irrefragável
óbolo dos mortos:
“Ah, é tão fácil desobedecer a um
morto. Se, apesar disso, algumas vezes, nos submetemos à sua vontade, não é por
medo, por obrigação, é porque o amamos e nos recusamos a acreditar que está
morto. [...] No entanto, se é impossível para mim considerar morto o ser que
amo, como irá se manifestar sua presença? Em sua vontade, que conheço e à qual
continuarei fiel.”³
Amém.
Notas
1 As citações de Kundera foram
tiradas do ensaio “Uma frase”, presente em
Os testamentos traídos
(Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luiza Newlands
Silveira, Companhia das Letras, 2017, pp. 125-6).
2 Ibidem, pp. 124-5.
3 Trecho tirado do ensaio “Nisso,
meu caro, você não manda”, igualmente presente em
Os testamentos traídos
(pp. 289-91).
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