Seis poemas de Guillaume Apollinaire
Por Pedro Belo Clara
Guillaume Apollinaire. Foto: RMN |
Mamã o que é que me pode acontecer
Ser este empregado para quem só o nada existe
Pares silenciosos arrastados na profunda água triste
Anjos de fresco desembarcados em Marselha ontem ao amanhecer
Ouço ao longe um canto morrer e remorrer
Humilde como sou que não sou nada que valha
E os nosso amores
Era preciso que me recordasse esta cena
Que a alegria vem sempre depois da pena
Tudo passa na minha demora
Enquanto
Sob a ponte dos nossos braços se vão
Dos eternos olhares a lassa ondulação
Tudo passa na minha demora
O amor se vai
Como a vida é lenta
E a Esperança violenta
Tudo passa na minha demora
Nem o tempo passado
Volta nem os amores
Sob a ponte Mirabeau o Sena corre
Tudo passa na minha demora
Os cadáveres dos meus dias
Assinalam o meu caminho e eu choro-os
Uns apodrecendo nas igrejas italianas
Ou entre os limoeiros
Que dão ao mesmo tempo e em qualquer estação
A flor e o fruto
Outros dias choraram antes de morrerem nas tabernas
Fustigados por ardentes ramos
Sob o olhar duma mulata que inventava a poesia
E as rosas da electricidade abrem-se ainda
Nos jardins da minha memória
Levanto-me já vestido
Tenho um sabonete na mão
Que me enviou alguém que amo e me ama
Vou-me lavar
Saio do buraco que nos serve de cama
Estou bem disposto
E feliz por me poder lavar o que já não acontecia há três dias
De seguida azul como o céu confundo-me com o horizonte até que
a noite caia e é um prazer muito doce
Nada dizer Tudo o que faço é um ser invisível que o faz
Porque uma vez abotoado todo de azul
Confundido com o céu torno-me invisível
Eis-me aqui diante de todos um homem cheio de bom senso
Conhecendo da vida e da morte tudo o que um ser vivo pode conhecer
Tendo experimentado as dores e as alegrias do amor
Tendo sabido algumas vezes impor as suas ideias
Conhecendo várias línguas
Tendo viajado bastante
Visto a guerra na Artilharia e na Infantaria
Tendo sido ferido na cabeça trepanado sob o clorofórmio
Perdido os seus melhores amigos nessa pavorosa luta
Sei do antigo e do novo tanto quanto um só homem pode saber
E sem me inquietar hoje com a guerra
Entre nós e para nós meus amigos
Julgo esta longa querela entre a tradição e a invenção
A Ordem e a Aventura
Boca que é a própria ordem
Sede indulgentes quando nos comparais
Aos que foram a perfeição da ordem
Nós que por todo o lado procuramos a aventura
Nós não somos vossos inimigos
Queremos dar-vos vastos e estranhos domínios
Onde o mistério em flor se oferece a quem o quiser colher
Há lá fogos de cores nunca antes vistas
Mil fantasmas imponderáveis
Aos quais é necessário dar realidade
Há ainda o tempo que se pode fazer parar ou retroceder
Piedade para nós que combatemos sempre nas fronteiras
Do ilimitado e do futuro
Piedade para os nossos erros piedade para os nossos pecados
E a minha juventude morreu com a Primavera
Oh sol chegou o tempo da razão ardente
E eu espero
Para seguir sempre a forma nobre e doce
Que ela toma para que seja o meu único amor
Ela chega e atrai-me como o íman ao ferro
Ela tem o aspecto sedutor
De uma adorável ruiva
E é vê-los a brilhar
Ou como essas chamas que nas rosas-chá
Quase murchas não param de dançar
Homens de toda a parte sobretudo gente daqui
Porque há tantas coisas que eu não ouso dizer-vos
Tantas coisas que vós não me deixaríeis dizer
Tende piedade de mim
Três brancos lírios polvilhados de oiro que o vento fustiga
Regados apenas quando de súbito no céu negro se faz luz
Majestosos e belos como o ceptro dos reis
Veste-se de sangue É o lírio do pavor
Três grandes lírios Três grandes lírios na minha sepultura sem cruz
Três brancos lírios polvilhados de oiro que o vento fustiga
Onde o roem os vermes Irrompe da minha boca o terceiro
Solitários florescem os três sobre a minha sepultura
Solitários solitários e malditos como eu
Três grandes lírios Três grandes lírios na minha sepultura sem cruz
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Não se afirme, porém, que Apollinaire viveu uma existência monótona, nem que não dispôs de tempo suficiente para revelar talento e originalidade. De facto, a sua voz influenciou indelevelmente o início do século XX, estando na vanguarda de diversos movimentos que ajudariam a moldar os destinos das artes nas décadas seguintes. Curiosamente, seguindo sem querer o exemplo dos grandes mestres, Apollinaire deixou obra capaz de influenciar movimentos, uma visão com força suficiente para abrir horizontes e expandir caminhos de expressão, mas ele próprio nunca seguiu uma escola nem desejou pertencer a uma.
Mesmo tendo recebido, como já estabelecemos, uma herança simbolista, e de certos contornos do Modernismo serem perceptíveis no seu trabalho, Apollinaire era, como muitos dos seus companheiros de artes o definiam, um dos espíritos mais livres que alguma vez viveu. E isso comprova-se ao analisar a raiz da sua criação: imune a teorias, recusando filosofias, nasce dum impulso de momento, duma força vital que, assim, cria-se e molda-se ao instante e a tudo o que nele vive, seja mundo exterior ou interior, abraçando a vida na sua totalidade, na sua absoluta liberdade de manifestação. Por isso a sua poesia se despiu de pontuação, recebendo diversas vezes um ritmo imprimido pela escrita corrida do verso. É uma arte, conforme o próprio explicava, que nasce da imaginação e da intuição, tal como é o seu dever, estando o mais próximo possível da vida e do Homem, dividido num equilíbrio sempre frágil entre, como escreveu num célebre poema, “a tradição e a invenção / a Ordem e a Aventura» - mas sem espaço para capitulações, apontando ao máximo possível, «sempre nas fronteiras / Do ilimitado e do futuro”.
* Versões de Jorge Sousa Braga em O Século das Nuvens (Assírio & Alvim, 2007).
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