Por Joaquim Serra
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Púchkin. Pintura: Vasily Tropinin |
A filha do capitão é um
ótimo exemplo do encontro profícuo entre literatura e história. Boris
Schnaiderman, em
Os escombros e o mito, escreveu que não se trata da
sujeição de uma à outra, mas de reconhecer a importância do limite entre elas.
O ponto alto desse encontro, segundo o crítico, é Dostoiévski em
Escritos da
casa morta, romance em que o autor se baseia em sua experiência carcerária
na Sibéria. Continuando essa tradição do romance de cárcere, no período
soviético, Soljenítsin revelou “a ponta do iceberg” — segundo o crítico — da
vida no Gulag, enquanto Chalámov foi além, ao repensar os limites dos gêneros
literários para descrever eventos históricos. A seguir, vamos tratar de
aspectos mais formais das duas obras de Púchkin, já que ambas as traduções
estão muito bem ancoradas por paratextos contextuais.
A revolta de Pugatchóv havia sido
objeto de estudo de Púchkin. Na tentativa de se tornar o novo tsar, Emilian
Pugachóv reúne um bando que fica conhecido por seus métodos desumanos de
aniquilar os inimigos.
A filha do capitão
é um romance formação
ab ovo, no qual a própria forma de narrar — em
primeira pessoa — acompanha a época e o estado de espírito de Piotr, o herói da
história. Filho de nobres, o rapaz que queria a vida boêmia de São Petersburgo,
é enviado pelo pai para a fortaleza Belogórskaia, perto de Orenburg, onde deve
servir como oficial de um regimento. Suas primeiras aventuras tem um sabor do
romance picaresco (origem do romance de formação), embora Piotr não seja de
forma alguma um pícaro.
A caminho da fortaleza, o jovem
inexperiente é enganado por um soldado, o que causa revolta em Savélitch, seu
criado, tesoureiro e fiel escudeiro. A outro homem, Piotr dá um casaco, e
novamente a ira comedida de Savélitch recai sobre o amo. Ainda que exista certa
consciência em Piotr, não há reflexão profunda acerca dos eventos. Até chegar à
fortaleza, o que temos é um romance de aventura, daqueles em que o herói recebe
o chamado e busca nele motivos para avançar. Quando chega ao lugar onde vai
servir como oficial, Piotr é tomado pelo tédio: “uma velha estava parada à
porta da isbá com um cocho e chamava os porcos, que lhe respondiam com
grunhidos amistosos. E eu estava condenado a passar a minha mocidade naquelas
paragens! A tristeza se apoderou de mim” (p. 48). O jovem, que queria ir para
São Petersburgo, para as noites dos salões e jogos, se depara com a monotonia.
Mas Piotr está destinado a não mergulhar no tédio de um Evguiêni Oniéguin ou na
espera de um Giovanni Drogo (de
O deserto dos tártaros).
Depois de conhecer a filha do
capitão, um outro gênero começa a ficar mais evidente na narrativa: o do
romance sentimental, que culmina no motivo que atravessa a literatura de Púchkin:
o duelo (no conto “O tiro”, publicado nos
Clássicos do conto russo, há
um ensinamento moral sobre a honra nos duelos, quase um Tolstói
avant la
lettre). Assim como Evguiêni — de quem falamos depois —, Piotr também se
envolve numa querela com um sujeito a serviço do mesmo regimento, mas este tem
grande importância para a história. O motivo da briga foi uma ofensa que parou
na garganta de Piotr depois de ler para o rival — primeiro no amor, depois na
espada — alguns versos que levavam o nome da moça em disputa, Maria, a filha do
capitão. Depois de sofrer um ferimento pela espada do astuto rival, o herói,
ainda convalescente, se declara àquela com quem deseja se casar. Mas a
tentativa de pôr em prática o matrimônio é interrompida pelo pai de Piotr que
não quer abençoar o casamento, motivo suficiente para dissuadir Maria do
casamento. Em carta, o severo pai escreve: “tu provaste seres indigno de usar a
espada, que te foi confiada para a defesa da pátria, e não para duelos com
outros vagabundos iguais a ti” (p. 67).
Pouco depois, notícias sobre o
rebelde Pugatchóv começam a chegar, fazendo com que se sobressaia cada vez mais
o aspecto histórico do romance. Quanto à forma, talvez valha comentar
brevemente. A marca de Púchkin está sempre presente; suas frases curtas, a
preferência pela ação do herói para desenvolver e avançar o enredo; e, o
principal, as múltiplas possibilidades de gêneros presentes no romance. Mas
quando o plano histórico se sobressai, temos uma modificação no foco narrativo,
como é o caso do episódio em que os oficiais planejam a retomada da fortaleza
sob o domínio dos rebeldes. No capítulo “O cerco da cidade” acompanhamos o
xadrez militar, as táticas mais viáveis conforme a necessidade, a busca por
informações mais detalhadas do inimigo que avança — nada muito diferente do que
Sun Tzu já registrou como tarefas necessárias aos militares. Enquanto planjam,
Piotr reproduz o que ouve, como se aqui o herói ficasse em segundo plano e as
tensões históricas se tornassem protagonistas. Mas talvez haja um pouco mais do
que isso.
Púchkin parece adotar uma forma
camaleônica para dar o tom a depender do episódio narrado. No caso da conversa
entre militares, o tom do romance acompanha a gravidade dos assuntos que
precisam se definir o quanto antes. Há nesse momento a busca por um realismo
histórico, que é fruto, obviamente, de suas pesquisas historiográficas acerca
do levante. E aqui vamos arriscar uma hipótese: embora o romance congregue na
própria estrutura uma mistura de gêneros, típica dos primórdios do romance
(Bakhtin), ainda assim conserva uma clara separação de estilos — se usarmos a
espinha dorsal de Auerbach em Mimesis. Nas — infelizmente — poucas
páginas que o crítico trata da literatura russa, ele argumenta que a estética
classicista, “que exclui fundamentalmente do tratamento sério a categoria
literária do baixo” (p. 560), não pôde vicejar em solo russo. Dito de outro
modo: ainda que a pretensão histórica puxe a corda para um realismo, Savélitch,
o criado, é representado de forma cômica, enquanto ao herói Piotr cabe a
sobriedade das decisões, o heroísmo que o impulsiona para decisões difíceis e o
amor da heroína — ou seja, um herói prototípico. Ou seja, a separação de
estilos cara ao classicismo está de algum modo presente na obra de Púchkin.
Vejamos o episódio a seguir; depois de Piotr convencer Pugatchóv a libertá-lo,
o jovem parte com o criado para Orenburg, quando é interpelado por um dos
insurgentes:
— Vossa Nobreza! O nosso pai
dá-lhe de presente este cavalo e uma peliça tirada de seus próprios ombros
(trazia amarrado à sela um casaco de carneiro). E ainda – acrescentou hesitante
o sargento — lhe manda de presente... meio rublo... mas eu o perdi pelo
caminho: perdoe generosamente.
Savélitch olhou para ele de viés e
resmungou:
— Perdeste-o pelo caminho! E o que
é que está tinindo sobre o teu peito? Sem-vergonha!
— O que está tinindo sobre o meu peito?
— replicou o sargento, sem se perturbar. — Que Deus te perdoe, velhinho! Está
tinindo o metal dos jaezes e não o meio rublo.
— Está bem — disse eu,
interrompendo a discussão — manda agradecer em meu nome àquele que te mandou
aqui. E, quanto ao meio rublo perdido, procura encontrá-lo na volta e guarda-o
para a vodca. (p. 107-8)
O excerto revela alguns traços do
romance: Savélitch, o zombeteiro-cômico, chora diante dos erros imaturos de
Piotr, erros que prejudicam o próprio criado, mas desconfia de todos os outros;
enquanto Piotr é o herói equilibrado, que sabe da mentira do rublo perdido,
mas, se entrasse numa briga com o homem, acabaria rebaixado, em pé de igualdade
com alguém de outra classe sanguínea (um Cubas!... ou melhor: um Nobre!).
Entre Piotr e Saviélitch, a diferença do estilo alto e baixo é nítida, mas há
outra personagem interessante para ser analisada.
A representação de Pugatchóv
aumenta ainda mais essa tensão; primeiramente, o líder dos insurgentes é
representado de maneira vil, como se só coubesse maldade nas suas ações. As
execuções sumárias, fuzilamentos, enforcamentos reforçam a imagem perversa do
cossaco, mas, à medida que o romance avança e descobrimos o motivo pelo qual
Pugatchóv não matou Piotr quando fez dele seu prisioneiro, a representação do
autoproclamado tsar começa a desestabilizar a balança do bem e do mal.
Pugatchóv não apenas liberta Piotr como define — para o bem — o futuro de Maria
quando isso se faz necessário. As conversas entre Pugatchóv e Piotr são o ponto
alto do romance, e por vezes fazem pensar que o palco da luta entre Deus e o
diabo já estava criando raízes antes de Dostoiévski profetizar.
Se Piotr se entrega ao
continuum
da formação, aceitando o chamado para a aventura e para o amor, Evguiêni
Oniéguin é o herói da cisão. E se naquele tínhamos um narrador que desenhava
seus passos em solo firme, aqui temos um da areia movediça (como diz o
narrador, Oniéguin “dá o título, o tom e o prumo”). Publicado em livro em 1833,
o romance em versos foi quase todo escrito durante o exílio, primeiro por ordem
do tsar — o comportamento de Púchkin fugia (e muito) ao decoro da época —,
depois forçado, devido a uma epidemia de cólera. Evguiêni Oniéguin é também um
herói em formação:
No francês, tinha desenvoltura,
Falava e escrevia à vontade.
Na mazurca, era uma sumidade,
Primor e grão-mestre nas mesuras.
Pronto! A sociedade decidiu:
Ele é inteligente e gentil.
Sabemos que Oniéguin é um bom
orador, conhecedor das artes e frequentador dos salões da nobreza, os mesmos em
que o próprio Púchkin lia seus versos satíricos. Não é alguém de profundo
conhecimento (“Oniéguin era culto, mas presunçoso, / Por puro acaso,
talentoso.”), mas foi educado para ser. E o jovem soube aproveitar apenas o que
já tocava seu espírito, prefere o poeta satírico Juvenal (de quem é a frase que
ecoa muito bem nos nossos tempos: “difícil é não escrever uma sátira”) a
Homero, a quem maldizia. E, claro, na boca de Oniéguin, talvez as referências
mais mundanas estivessem em pé de igualdade com a tradição:
Mas todo chiste, piada e gracejo,
Desde Rômulo até o mês passado,
Ele sabia de cor e salteado.
O “culto, mas presunçoso”
Oniéguin, que “incendiava o sorriso das damas/ No curto fogo de seus
epigramas”, nasce às margens do Nievá, palco de outra obra importante de
Púchkin,
O cavaleiro de bronze (a comparação dessas três obras renderia
páginas e páginas). A vida sonhada por Piotr em São Petersburgo é motivo de
tédio para Oniéguin, já muito acostumado aos salões da nobreza. A cidade
fáustica construída pela mão de obra praticamente infinita dos servos, como
reforça Marshall Berman, abrigou tantas outras contradições, como obrigar a
nobreza a se mudar para a nova cidade. Abaixo uma descrição que parece
relacionar o nobre com a cidade:
E o meu Oniéguin? Ainda dança?
Com sono, vai do baile para a
cama.
Mas Petersburgo, que não descansa,
Já despertou: o tambor conclama.
Vendedor e mascate estão prontos,
O coche de praça vai para o ponto,
Corre a leiteira com a jarra,
saltita,
Sob seus pés, a neve crepita. (p.
60)
O tempo verbal dos versos parece
equivaler o cotidiano da cidade e os hábitos de Oniéguin. Além disso, também
imprimem certa ideia de permanência, como se o narrador descrevesse a imagem de
um quadro que o leitor sempre pudesse encontrar por lá — o extremo oposto seria
um narrador de Flaubert, cuja noção de transitoriedade já está embutida no tempo
verbal (flanar é olhar por um retrovisor sem espelho; o que perdeu passou). Do
mesmo modo estático Oniéguin encara os possíveis chamados para a formação. O
tédio é seu principal traço: “o rumor mundano dava tédio [...]/ As amizades
davam enfado./ Até das traições ficou enjoado” (p. 61). O tédio em Púchkin tem
uma série de desdobramentos. Piotr, como já se viu, é afetado pelas paragens
mornas com que se depara; para Oniéguin, é motivo de inação; para Fausto, em “Uma
cena de Fausto” (
que já traduzimos neste blog), é destruição.
Voltemos ao romance em versos. Se
até a vida nos salões deixava o herói entediado, tampouco a carta de amor de
Tatiana pôde mexer com as paixões de Oniéguin. Nela, a moça se declara ao jovem
filósofo, mas é ignorada, o que já separa esse herói de um tipo mais
tradicional, como é o caso do personagem Piotr. Ao não aceitar o chamado da
heroína, Oniéguin acaba rompendo com uma característica importante do romance
de formação, a socialização do herói. A indiferença de Oniéguin, primeiramente,
só causa rupturas e cria vias tortuosas para o personagem, mais tarde, quando o
herói decidir enfim entrar em ação, sua irrequietude trabalha a favor da
dissolução: separa Liênski de Olga e mata o rapaz — um poeta — em duelo; tenta
roubar Tatiana do marido... Muito diferente do que acontece em
A filha do
capitão, em
Evguiêni Oniéguin, a “interioridade adquire relevância
enquanto princípio de contradição” (Moretti, p. 140). Ao compararmos os dois
heróis, fica evidente a versatilidade de Púchkin; enquanto uma obra pende para
o realismo das tensões históricas, a outra certamente é mais um elo de uma
corrente de autores como Luciano, Laurence Sterne, Machado de Assis.
Sobre a nova tradução de Evguiêni
Oniéguin é preciso comentar: Rubens Figueiredo transpôs a modernidade de
Púchkin, sendo rapidamente identificada a fluidez e o tom “bailarino” das
estrofes, que muitas vezes varia de um verso para o outro.
Outro aspecto interessante dessa
obra de Púchkin são as notas de autor. Na tradução de Rubens Figueiredo, as
notas aparecem depois do romance. É um recurso que vai ser muito utilizado nos romances
enciclopédicos dos autores categorizados como pós-modernistas, a tríade Thomas
Pynchon, Don DeLillo e David Foster Wallace. Mas, nestes, o que era antes semente se
transforma em árvore, com suas ramificações de assuntos infinitos, os quais
somos bombardeados todos os dias. Não deixa de ser um recurso interessante,
que, de vez em quando, dá sinais de reinvenção. O recente O livro dos
mortos: Uma autobiografia hipnagógica, de Lourenço Mutarelli, utiliza
também do mesmo recurso, mas cria entre elas uma espécie de jogo dialógico,
muito em conformidade com a própria dinâmica do romance.
______
A filha do capitão
Aleksandr Púchkin
Boris Schnaiderman (Trad.)
Editora 34
208p.
Evguiêni Oniéguin: romance em versos
Aleksandr Púchkin
Rubens Figueiredo (Trad.)
Penguin/ Companhia das Letras
Bibliografia
Auerbach, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Trad. George Bernard Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021.
Cavaliere, Arlete (Org.). Clássicos do conto russo. Trad. Boris Schnaiderman, Paulo Bezerra, Tatiana Belinky et al. 3 ed. São Paulo: Editora 34, 2015.
Moretti, Franco. O romance de formação. Trad. Natasha Belfort Palmeira. São Paulo: Todavia, 2020.
Schnaiderman, Boris. Os escombros e o mito. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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