Por Fernanda Solórzano
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Le Mystère Picasso. Henri-Georges Clouzot (1956) |
Com alguma suspeita, mas derrotados pelas evidências, vários
historiadores e acadêmicos aceitaram que os filmes do gênero histórico têm um
alcance e impacto muito maiores do que os livros. (Estes últimos, mais rigorosos
e livres da exigência de agradar ao público, algo que se impõe ao cinema de
grandes orçamentos.) Um dos impulsionadores da ideia de que, em vez de
ignorá-los, os especialistas deveriam dialogar com os filmes sobre
acontecimentos passados — e, se necessário, apontar suas imprecisões — foi o
historiador Robert A. Rosenstone, que em 1989 criou uma seção de filmes na American
Historical Review, que editou por cinco anos. Num texto intitulado “The
historical film as real History” (Film Historia, v.5 n.1, 1995) Rosenstone
reflete sobre sua experiência como editor daquela seção e chega a uma conclusão
contundente: o único cinema histórico que vale a pena levar em conta é aquele
que dá ao espectador elementos que lhe permitem construir pontes entre um
evento ou personagem do passado e do presente. Isso não significa colocar
diálogos anacrônicos na boca dos personagens, nos quais eles falam do lugar
que, no futuro, ocuparão na história. (Personagens falando como viajantes do
tempo é, na minha opinião, o pior vício do cinema histórico contemporâneo.) O
que Rosenstone está falando é observar se um filme sobre o passado é apenas um
cartão postal estático, na pior das hipóteses, decorativo ou que omite o que
pode ser divisor ou se, ao contrário, é capaz de fomentar um debate sobre
legados, repercussões e heranças.
Neste mês de abril marca o quinquagésimo aniversário da morte de Pablo
Picasso. Quando os editores desta revista me disseram que dedicariam uma edição
à revisão da vida e obra de um dos artistas mais inovadores e influentes de
todos os tempos, fiz a mim mesmo a pergunta norteadora proposta por Rosenstone:
vale a pena incluir filmes nesta revisão? A resposta é complicada. Se
considerarmos que o cinema biográfico é um derivado do cinema histórico, é de
se esperar que ele enfrente os mesmos problemas, inclusive ampliados: a
glorificação do passado, a caracterização anacrônica do biografado e o
inevitável risco de reduzi-lo a uma das suas características. Se o biografado é
um artista, seja em que área for, as coisas se complicam. Quando o cinema ficcional
representa o artista “criando”, ele o mostra encarcerado num escritório
rabiscando frases ou notas musicais, ou em pé diante de uma tela e brincando
com algumas pinceladas. São cenas que duram segundos, quando muito minutos,
pois seria impossível manter o interesse do público por muito mais tempo.
Assim, o processo criativo é reduzido a algo que não o engloba nem o
representa. Muitas cinebiografias sobre criadores buscam recriar as anedotas,
interações e cenários que poderiam tê-los inspirado — algo que pode iluminar
aspectos de seu trabalho, mas não o explicar (o que, afinal, também não é
necessário). De qualquer forma, o gênero biográfico serviu para alimentar a
tese de que o artista e sua obra são indissociáveis. Até recentemente, essa
noção não era problemática. Agora é o fio do qual pende o estudo da história da
arte.
Numa reviravolta inesperada na história, as cinebiografias que teriam
sido valorizados como mero entretenimento, agora podem ser consideradas
“evidência” de que um artista deve ser cancelado (e sua obra, descartada).
Assim como os acadêmicos aceitaram que os filmes substituíram os livros como
meio de acesso ao passado, talvez os historiadores da arte de hoje devam
considerar que os filmes biográficos podem influenciar a percepção do trabalho
de um artista. O leitor entenderá por que a questão de quais filmes podem ser
relevantes para comemorar o aniversário da morte de Picasso não tem uma
resposta fácil: depende de fatores que nada têm a ver com o valor dos próprios
filmes. Apresentarei um exemplo mais adiante.
O documentário é o gênero que mais vezes abordou a vida e a obra de
Picasso. Tem feito isso, porém, em curtas-metragens, com distribuição limitada
ou produzidos para a televisão. Isso não é um juízo de valor, mas fala da
natureza desses filmes: são peças informativas feitas a partir de material de
arquivo e entrevistas com críticos e historiadores da arte que discutem
questões já expostas em livros — e mais importante, em exposições. É o caso de Matisse-Picasso
(2002), de Philippe Kohly (pode ser visto no YouTube), sobre a admiração mútua
e a rivalidade entre os dois artistas. Considerando que o MoMA teve uma
exposição sobre o mesmo tema e que esta foi complementada por mesas de
discussão com os curadores que ficaram gravadas e também podem ser vistas online,
filmes como o de Kohly ainda têm valor, mas não são ponto de partida para uma
nova reflexão. Do mesmo recorte é o documentário Young Picasso (O jovem Picasso,
2019), de Phil Grabsky, que busca mostrar como a luz, os cenários, a composição
étnica e a estratificação social de Málaga, Barcelona e Paris, cidades nas
quais o artista passou o primeiro quarto da sua vida, alimentaram a obra desses
primeiros anos e integrou as fases seguintes.
Documentários como esses fornecem ferramentas para entender, por assim
dizer, o trabalho de um artista, mas não envolvem o espectador. Pretendem ser
guias e cumprem bem a sua função. Que não se engane: sou a primeira a
apreciá-los e recomendo ver os outros da série Exhibition on Screen, à qual
pertence Young Picasso (é possível alugar exibições em seu site). Bem
diferente de todos eles, Le Mystère Picasso (O mistério de Picasso, 1956),
do francês Henri-Georges Clouzot, que é talvez o único filme essencial sobre o
artista. Diferentemente dos documentários biográficos, não pretende informar,
contextualizar ou explicar retrospectivamente sua obra. Picasso já era uma
lenda viva quando aceitou a proposta do amigo Clouzot de fazer vinte desenhos e
pinturas a óleo usando uma tela translúcida que, ao mesmo tempo, ocuparia todo
o quadro do filme. Só no início do documentário e em algumas outras ocasiões é
que Picasso aparece empunhando o pincel; o resto do tempo permanece escondido
atrás da tela. O espectador, por sua vez, vê como as pinceladas rápidas do
pintor aparecem sobre um fundo branco. Através de uma voz em off que serve
de apresentação, Clouzot afirma que “daríamos tudo” para ter estado na cabeça
de Rimbaud ou Mozart enquanto criavam as suas grandes obras. “Por descobrir o
mecanismo secreto que guia o criador em uma perigosa aventura.” Isso, que é
impossível no caso da poesia e da música, acrescenta o diretor, é viável no
caso da pintura, pois “para saber o que se passa na cabeça de um pintor é
preciso seguir sua mão”. Seu documentário, diz ele, vai desvendar esse
mistério. Não tenho certeza se O mistério de Picasso atinge esse
objetivo — a cada pincelada e correção de Picasso, a única coisa que fica clara
é que a relação entre as pinceladas que aparecem é impossível de prever. É
também surpreendente observar as formas que a sua insatisfação assume (borrões
raivosos, a criação de um novo ponto focal), levando-o várias vezes a “limpar”
a tela para recomeçar. Graças ao recurso de “esconder” o autor dos traços,
chega-se a esquecer, mesmo que por alguns segundos, a identidade daquele
artista insatisfeito. É então que o documentário cumpre a promessa de mostrar “a
perigosa aventura da criação”. E é assim que Picasso aparece com seus olhos de
diabo e camisa sem mangas, ele — sua corporeidade — se torna o centro de
gravidade do filme. Não é o ideal e não pode ser evitado.
O que leva ao tema mencionado anteriormente: a força de atração que a
mitologia exerce sobre o artista. A lenda de Picasso como um colecionador de
mulheres — duas esposas e inúmeras amantes, que ele deixou logo depois, mas
manteve perto dele — sempre lhe valeu o adjetivo “misógino”. Na era pós #MeToo,
no entanto, seu trabalho poderia ser rejeitado. Em 2022, o Museu Picasso em
Paris convidou mulheres artistas para expor obras que aludem às pinturas de
Picasso com suas infelizes musas (a mais famosa, Mulher chorando, um
retrato de sua amante Dora Maar). Também no ano passado o museu congênere de
Barcelona organizou oficinas e mesas redondas sobre o tema. O contexto em que
essas atividades são realizadas quase garante uma reflexão produtiva para
analisar a relação extremamente complexa entre pulsões e criação. O risco de
simplificar surge quando um atributo do artista é isolado e este se torna um
todo que acaba ignorando o motivo de falar dele: sua obra. O cinema aumenta
esse risco. E se, como já foi dito, o cinema ficcional consegue captar o
imaginário coletivo a ponto de substituir outros referentes, não devemos
subestimar o fato de que a cinebiografia mais conhecida de Picasso é centrada
em suas muitas e complicadas relações com mulheres. Seguindo os critérios de
Rosenstone — falando de filmes que desencadeiam um diálogo com o presente — Surviving
Picasso (Os amores de Picasso, 1996), de James Ivory, é um filme que merece
destaque. Além disso, sendo produzido pela extinta empresa Merchant Ivory
Productions — associada ao cinema de qualidade —, foi um filme que teve
suficiente distribuição e atenção dos principais meios de comunicação. Ou seja,
era um retrato de Picasso que obteve visibilidade.
Como a maioria dos filmes desta produtora, o roteiro de Os amores de
Picasso foi escrito por Ruth Prawer Jhabvala (que faleceu em 2013) e é
vagamente baseado no livro Picasso. Creator and Destroyer (Picasso:
criador e destruidor), de Arianna Huffington. A história é contada pela
perspectiva da pintora Françoise Gilot (Natascha McElhone), que teve um
relacionamento de dez anos com Picasso (Anthony Hopkins) e é a mãe dos filhos
Claude e Paloma. Como o título sugere, esta é mais a história de Gilot: a única
das esposas de Picasso que o abandonou (e não o contrário). A ação
começa nos anos da ocupação alemã na França, quando Françoise, de 21 anos, conhece
Picasso, de 61. É por meio dela que o espectador lança um olhar sobre a vida
das mulheres que a precederam: Olga Jojlova (primeira esposa do pintor),
Marie-Thérèse Walter e a já mencionada Dora Maar. Françoise consegue apresentar
ao público a mulher que viria depois, e de quem Picasso faria sua segunda
esposa: Jacqueline Roque (Diane Venora), a mais retratada de suas companheiras
e com quem viveu seus últimos anos.
O maior problema de
Os amores de Picasso é aquele que afeta a maioria das
cinebiografias sobre artistas: elas não esclarecem a relação entre
temperamento, experiência e criação. Outro problema é que a única personagem
feminina mais ou menos elaborada é a de Gilot. O resto das mulheres são
desprovidas de dimensões — e claro que possuíam. Como mostra o filme, o drama
de suas vidas foi que Picasso as abandonara: “Sem ele não há nada. Sem Picasso,
só Deus”, diz Dora Maar, na voz de uma Julianne Moore um tanto caricata.
Picasso é retratado como o homem egocêntrico, manipulador e castrador que sem
dúvida, a ponto de, como visto no filme, querer impedir que as galerias
comprassem o trabalho de Gilot depois que ele a abandonou. (O filme não diz
isso, mas também quis impedir a publicação de suas memórias,
Life with
Picasso, mas não teve sucesso.) O viés da alegação de
Os amores de Picasso é minimizar o fascínio que o pintor
exercia sobre suas companheiras, que sofriam com seu narcisismo, mas sabiam que
eram adoradas por ele. Caracterizar Picasso como um monstro, disse recentemente
seu neto Olivier, é tirar o arbítrio das mulheres que o amaram. Eu concordo com
ele. Por que elas permaneciam ao seu lado? Cinebiografias como
Os amores de Picasso evitam a questão. Não é que haja uma
única resposta, nem é caso aqui procurá-la. É que essas paixões, e como são
metabolizadas, também fazem parte do mistério da criação.
* Este texto é a tradução livre
para “Picasso en el cine: dos misterios”, publicado aqui, em Letras Libres.
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