Por Sergio Pitol
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Bruno Schulz, Autorretrato, 1920. Arquivo: Museu Nacional da Cracóvia. |
No panorama da literatura polonesa
de vanguarda, que decorreu no período entre as duas grandes guerras,
destacam-se três figuras insólitas, totalmente diferentes entre si, cuja obra começa
a ser devidamente apreciada apenas nos últimos anos. São eles: Stanisław Ignacy
Witkiewicz, Witold Gombrowicz e Bruno Schulz. A obra desses três “excêntricos”,
repleta de aparentes jogos, paródias, caricaturas, exageros levados à última
instância, oferece-nos a mais rica fonte de ideias de todo aquele período.
Antecipando-se em um quarto de século à literatura francesa, inglesa e
norte-americana do absurdo, eles nos oferecem um antegozo do trágico absurdo em
que o homem real se veria submerso alguns anos depois. O terror diante de um
mundo que vai transformar o homem em coisa e, como coisa, em algo incapaz de
sentimentos, alheio às ideias, radicalmente negado ao fantástico e à poesia e ao
intelectual — no melhor dos casos — em um robô a serviço dessa coisa.
Nada em sua vida, exceto talvez
seu final absurdo, sugere uma ligação entre a existência opaca desse obscuro
mestre de desenho de uma pequena cidade provinciana e sua obra fantasmagórica.
Schulz nasceu numa família de judeus em 1893, em Drohowicz, na Galícia, quando
aquela região ainda pertencia ao Império Austro-Húngaro. Mal chegou a 1918 e
sua cidade foi reintegrada à Polônia. Com exceção de uma estada de dois anos em
Viena, realizada na adolescência para estudar na Academia de Belas Artes, Schulz
não deixou sua cidade natal, exceto em viagens muito pontuais a Varsóvia ou
Lwow e durante uma estadia de três semanas em Paris. Tímido até o ponto de
vista patológico, seus dois livros de contos foram publicados quase por acaso,
patrocinados por alguns amigos que conheciam os manuscritos. Ao aparecer Lojas
de canela, Schulz foi aclamado pela elite cultural polonesa como um notável
inovador. Porém, durante a vida do autor, por motivos diversos, sua obra não
transcendeu um pequeno grupo de “conhecedores”. Com a eclosão da guerra, ele
foi retido no gueto de sua cidade natal, onde em 1942 foi assassinado por um
agente da SS.
Além de Lojas de canela,
publicado em 1934, e Sanatório sob o signo de clepsidra, de 1937 —este
último galardoado com o prêmio da Academia Polonesa de Literatura —, restam
apenas alguns rascunhos, cartas, fragmentos e uma boa coleção dos seus desenhos.
Todo o resto foi permanentemente perdido durante a ocupação alemã. A fama de
Bruno Schulz também não começaria até muitos anos depois do seu fim trágico. No
final da guerra, sua obra, quase desconhecida, não pôde ser publicada por
muitos anos. De modo algum se encaixava no quadro obtuso do stalinismo. As
acusações mais repetidas sobre seus livros eram as de formalista e decadente.
Moralmente, sua obra era nociva: vários de seus contos revelavam certas
obsessões de cunho masoquista. Não veio até 1964 quando a primeira edição
completa de sua prosa foi feita. Mas já em 1961, na França, Maurice Nadeau
havia publicado em sua coleção Les Lettres Nouvelles uma ampla seleção de seus
contos sob o título Tratado de los maniquíes (Tratado de manequins).
Nadeau comparava o autor com Franz Kafka e o situava na mais alta hierarquia
dos criadores europeus contemporâneos.
De certa maneira, começa aí a fama.
Logo depois, apareceram as traduções para o inglês, alemão, italiano, até chegar em
quase todas as línguas europeias.
Os dois livros de contos de Schulz
são uma rara incursão no mundo da infância. O universo é a província. Uma
família de judeus: o pai, a mãe, um irmão, a tia Pelagia, a criada Adela, são
os personagens. Numa pintura provinciana estática, turva, imobilizada, onde
nada acontece, Schulz, através de uma linguagem quase mágica, introduz-nos numa
esfera onde a realidade é ela própria e ao mesmo tempo a sua caricatura. Com
uma atenção minuciosa aos detalhes e uma verve verbal que chega à exasperação,
ele cria uma realidade sempre diferente: fantástica, absurda, cheia de tensões,
humor trágico, nunca patética porque uma ironia brutal o impede, risível e
colorida com um erotismo perturbador. Cada conto começa com os projetos do pai
para tentar criar um universo diferente daquele que o ambiente que o cerca impõe
e termina com sua derrota final infligida pelo “bom senso” de Adela, a criada,
a torturadora, diante do olhar do menino que permanece sempre como testemunha.
É a parábola permanente do sonho abatido e castigado pelo “sentido comum”.
O mundo de Schulz tem sido
repetidamente comparado ao de Kafka. Ambos os universos têm pontos em comum: a
mesma formação cultural austríaca, os dois autores pertenceram ao mesmo tipo de
burguesia, de costumes, ambos eram marcados pela mesma religião. Em ambos, a
figura paterna é obsessiva. Mas em Schulz o elemento trágico é cuidadosamente
escondido; os personagens não transitam para um pathos, suas derrotas
são sempre jocosas; há também o elemento erótico que nele desempenha um papel
muito importante e que quase não existe nas narrativas de Kafka.
A obra de Schulz é uma das
expressões mais vigorosas de uma individualidade criativa. Seus livros chegam a
constituir uma mitologia poética. Um mundo perfeitamente moldado, expresso de
uma das formas mais originais que se pode conceber.
As duas coletâneas, Lojas de
canela e Sanatório sob o signo de clepsidra não têm nada em comum
com nenhuma outra imersão na infância que eu conheça. Cito sobre isso um
comentário de Jerzy Ficowski, um dos mais credenciados conhecedores de Schulz:
“O conto schulziano surpreende
pela sua veracidade artística, nunca rompe o vínculo com a essência das coisas
de onde brotou e das quais é prolongamento e interpretação poética. A realidade
dessas histórias admite amplas possibilidades de transformação da matéria, de
extensão e encolhimento no tempo, em suas ‘ramificações laterais’, as metamorfoses,
a mistura de diferentes seres. O pai vira barata; o condor, caranguejo; a tia
Pelagia se transforma em um monte de cinzas sob a influência da raiva que a
consome internamente. O ato poético assume nessa prosa sensual as aparências de
um processo cognitivo.”
Alguns críticos apontaram que
Schulz levanta um protesto contra a degradação do homem ao pintar seus
fracassos, suas derrotas, sua queda. Não sei até que ponto isso pode ser
verdade, mas me parece que são expressões artificiais para defender a obra de
Schulz do anátema oficial, cobrindo-a com um humanitarismo entusiástico. Não
sei até que ponto pode ser exato que descrever uma condição seja denunciá-la.
Tampouco estou seguro do contrário, o que fica é a impressão de conhecer poucas
obras tão impiedosas, implacáveis e sem esperança como as desse obscuro judeu
da Galícia polonesa.
Um conflito central é que, em
última análise, o de todos os tempos, o de todas as gerações, o mesmo que
atormentou Shakespeare e Balzac, Lawrence e Camus, é revelado de forma palpável
nesses contos. A extinção de um mundo, de uma moral, diante daquele que deveria
suplantá-la está claramente definida e enraizada. As sombras — não personagens —
de Schulz movem-se fantasmagoricamente, à deriva, enquanto outras personagens —figuras
essas bem específicas — semelhantes a manequins, as substituem. E a vida
torna-se uma repetição incessante, monótona e cruel desse jogo insensato de
substituições.
Schulz é o evocativo da vida
patriarcal de outrora, carregada de aromas, empanturrada de memórias, das
lojinhas de canela onde uma carga acumulada de fantasia vem à tona nas mais
divertidas extravagâncias, e ao mesmo tempo é o adivinho de um mundo mecânico.
Onde a única coisa que faz sentido é agir, fazer. Desse antagonismo surgiram
suas estranhas e belas narrativas.
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