Se o olhar é
a razão do cinema, o que significa vê-lo e, sobretudo, fazê-lo numa tempestade
de imagens? Diariamente, filmamos e fotografamos animais de estimação,
mutilações e bolos numa civilização que juntou a retórica democrática com a
indulgência do consumismo. Se uma sociedade fascista é formada por soldados e
padres, ou uma socialista formada por camaradas e hipócritas, a nossa é de
clientes cuja liberdade de acesso à câmera e às redes sociais obedece apenas à
função de vender. Olhar para algo e depois mostrá-lo — ações fundamentais do
cinema — é lucrar com isso na economia do espetáculo: vender o extraordinário
ou o trivial para ganhar fama e aprovação por um tempo e, enquanto isso, ajudar
alguma marca a divulgar seus produtos desnecessários.
Porém, na
história do capitalismo houve um momento em que o visual foi definido como
heroico. Em
Janela indiscreta (1954)
Alfred Hitchcock deu a entender que um
voyeur
poderia fazer justiça espionando um feminicídio e assim adquirir provas de seu
crime para detê-lo, embora talvez isso não fosse uma questão de um determinado
tempo e sim de convicção: Hitchcock parecia falar a partir de e para a
cinefilia ao idealizar o olhar. Apenas alguns anos depois, Michael Powell
entendeu o mesmo ato como violência. Seu protagonista em
A tortura do medo (1960) não era um fotógrafo de boa índole com o
de Hitchcock, mas um cinegrafista psicopata que gostava de filmar quem matava e
assistir às filmagens mais tarde. Logo Stephen Dwoskin desafiou o público, em
seu filme
Dyn Amo (1972), a entender
o
voyeurismo como uma forma de
opressão: assistir strippers vai se tornando um ato cada vez mais degradante,
chegando até ao sadismo, que deveria nos expulsar de frente das telas com
horror.
Quem sabe se
Jordan Peele conhece a tradição pessimista de Powell e Dwoskin, embora provavelmente
conheça o otimismo de Hitchcock. Seus primeiros filmes compartilham com ele certa
poesia, certo humor — posso pensar na cena em que Daniel Kaluuya se afoga em
sua própria consciência, hipnotizado pela sogra em
Corra! (2017), ou na sátira de uma família branca ignorando a
revolução iminente em
Nós (2019) —,
mas em seu filme mais recente,
Não! Não
olhe! (2022), o diretor afro-americano parece farto da maneira como os
cineastas e seu público veem o mundo hoje e, portanto, consciente ou não,
confronta os temas de Hitchcock.
Não! Não olhe! conta a história de alguns
forasteiros em Hollywood. Os irmãos OJ (Kaluuya) e Emerald Haywood (Keke
Palmer) acabaram de perder o pai em circunstâncias inexplicáveis e precisam
assumir seu negócio de aluguel de cavalos domesticados para filmes. Os Haywood
são descendentes de africanos num entorno branco e se validam assumindo vestígios
de um cavaleiro negro que apareceu em um filme do pioneiro do século XIX
Eadweard Muybridge. Embora, segundo a fala de Emerald, essas imagens liguem os
Haywood e a comunidade negra à própria origem do cinema, Peele demonstra a
irrelevância dos símbolos quando seu negócio começa a entrar em colapso por
falta de novos contratos. Mesmo que a causa principal seja a morte do patriarca
que soube lidar com o povo de Hollywood, talvez Peele esteja tentando nos dizer
que a narrativa de inclusão na indústria é apenas um gesto que de fato não
mudou nada. Os protagonistas, como atores e diretores tradicionalmente
marginalizados na realidade, acabam participando de uma ideia estritamente
mercantil de imagens para sobreviver.
Quando os
Haywood notam acontecimentos estranhos em seu rancho, Emerald se convence de receber
a visita de alienígenas e decide, junto com OJ, filmar suas naves para vender
os vídeos online. A empreitada inevitavelmente se complica e seu irmão se
pergunta se há uma palavra para descrever esse mau milagre , ou seja, um
fenômeno surpreendente, mas infeliz.
Não!
Não olhe! é um filme sobre ver e fazer cinema, mas não da maneira nobre de
fãs e cinéfilos que formam comunidades para sonhar juntos, mas com a intenção
de explorar o milagre, que acaba por se vingar.
Peele
constantemente alude à indústria cinematográfica para construir sua agressiva alegoria
dela: na primeira cena, o pai dos protagonistas fala sobre a esperança de ser
contratado para uma sequência de Hollywood e, no clímax, OJ está vestindo um
moletom que o identifica como membro da tripulação; um personagem que espera
capturar o OVNI com sua câmera fala sobre “tirar a estrela de seu camarim”. A
ganância dos grandes estúdios encontra sua personificação em Jupe Park (Steve
Yeun), vizinho dos Haywood, que administra um parque de diversões baseado em
velhos faroestes. Aí ele esconde uma sala na qual expõe, por um preço, os
objetos ligados a um trauma violento de sua carreira de ator mirim. Sua
indiferença ao mistério e sua obsessão em satisfazer o público descrevem a
mercantilização das imagens no mundo capitalista e encontram um antônimo em OJ
quando entende que a única forma de se salvar é não assistir ao espetáculo que
atormenta seu rancho; daí o título: os personagens exclamam “
não” para negar sua curiosidade e se
proteger dela antes que ela os mate.
É difícil
mergulhar em um filme dominado por surpresas fascinantes, mas gostaria de
ressaltar que Peele parece ter Hitchcock em mente para detalhes como um
personagem que se refere aos alienígenas como uma raça chamada “os
espectadores”; no início de
Janela
indiscreta, Stella (Thelma Ritter) fala de “uma raça de espiões”. Por outro
lado, o suspense de
Não! Não olhe! se
divide em duas metades: o mistério, expresso a partir do invisível, e a
resolução, que prefere emoções mais intensas e imagens explícitas, algo
semelhante ao comportamento do grande autor anglo-americano, embora Peele
consegue fugir de seu didatismo. Suas inúmeras reviravoltas e abundância de
ideias alcançam uma incoerência desafiadora e, por isso, admirável.
Se o
objetivo de
Não! Não olhe! é chocar
com a indústria, o espectador-cliente e suas noções capitalistas do olhar, a
forma dramática do filme aumenta a agressividade do diretor ao nos negar a clareza,
pervertendo a ideia convencional do que é o cinema. Porém, embora Peele negue
o otimismo de Hitchcock, seu ponto de vista acaba sendo heroico como o de um de
seus personagens. Nos tempos de
Janela indiscreta,
a justiça fazia-se assistindo, espiando, mas
Não! Não olhe!, contemporâneo do Instagram e do YouTube, nos
convida a fechar os olhos para descansar da hipermidiatização e voltar a olhar
o mundo não com oportunismo, mas com humildade.
* Este texto
é a tradução livre para “Nope: a donde
van nuestras formas de ver y hacer cine?”, publicado aqui, em Gatopardo.
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