Jesus na literatura: protagonista de um calvário

Por Daniel Gigena

A Crucificação. Peça central do Retábulo de Issenheim. Matthias Grünewald, 1512-1516. Museu de Unterlinden, Colmar, Alsácia, França.


 
Os Evangelhos, e sobretudo as passagens sobre os últimos dias da vida de Cristo, desde a entrada triunfal em Jerusalém, montado num pacífico jumento, até à via crucis, morte e ressurreição, ultrapassam o âmbito da religião cristã e fazem parte da cultura universal. Ao longo do tempo, e sem deixar de questionar a história oficial, escritores proeminentes recriaram sua vida e seus ensinamentos em chave literária. “Por baixo da herança cultural deve haver uma herança psicológica comum; se não fosse assim, todas as formas de cultura e imaginação que não estivessem dentro de nossas próprias tradições não seriam compreensíveis”, postulou o crítico literário canadense Northrop Frye. Como Jesus é representado na literatura contemporânea?
 
“De que pode servir-me que aquele homem/ tenha sofrido, se eu sofro agora?”, se pergunta o poema “Cristo na cruz”, de Jorge Luis Borges. Esses versos de Os conjurados se somam a uma longa série de escritos em que o autor argentino refletiu sobre um herói religioso, mitológico e também literário: Jesus de Nazaré. Desde o conto filosófico “Três versões de Judas” — em que se especula que Jesus poderia ser Judas ou que este é um fator chave para seu ambicioso plano de salvação universal — até o conto “O Evangelho segundo Marcos”, no qual a crucificação é parodiada em um rancho de Buenos Aires e Jesus é igualado a outro judeu perseguido (o filósofo Baruch Spinoza), Borges humaniza a figura do Redentor. “Ele deve ter sido um homem extraordinário”, disse ele sobre Jesus Cristo. “Ao mesmo tempo, se uma pessoa acredita que é o Filho de Deus, se confessa opiniões tão extraordinárias como essa, não sei até que ponto podemos julgá-la. Ele é, sem dúvida, uma das pessoas mais raras e admiráveis ​​que o mundo já teve.” No acervo da Biblioteca Pessoal, Borges havia selecionado Os Evangelhos Apócrifos, que apresentam um Jesus mais humano, sensual e temperamental, diferente do bíblico.
 
Em História de Cristo, o italiano Giovanni Papini (outro autor escolhido por Borges para sua Biblioteca Pessoal), apresenta um personagem diferente daquele consagrado pela Igreja e pelos relatos devocionais, que o autor qualifica como “insípidas e intragáveis”. Neste livro de 1921, um dos maiores sucessos do escritor (que de detestar a fé cristã se transformou em veemente apologista), Cristo transborda vitalidade e aparece como ativo adversário dos poderosos. Papini também analisa em capítulos breves episódios e cenas da vida de Cristo: seu nascimento em um estábulo, os três reis magos, os apóstolos, as parábolas, a sinagoga de Cafarnaum, a montanha onde proferiu o sermão e os milagres. “Vivemos na era cristã”, escreve Papini. “E isso não acabou. Para entender esse nosso mundo e nossa vida, para nos entendermos, devemos nos referir a ele. Cada era volta a escrever seu Evangelho.”
 
No romance histórico Jesus rei (1946), o britânico Robert Graves reinterpreta Jesus como uma figura histórica que, devido à afiliação materna, poderia ter ascendido ao trono de Israel. Contada do ponto de vista de um homem que pertence a uma seita judaico-cristã (os ebionitas), a ficção de Graves apresenta Jesus como um mago, um sábio e um asceta que proclama uma ordem civil e sagrada que ameaça as elites de seu tempo. “Das muitas façanhas de Jesus, esta não foi a menos fabulosa: embora seus algozes tenham certificado sua morte após uma crucificação normal e o colocado numa tumba, ele voltou dois dias depois para seus amigos galileus em Jerusalém e os convenceu de que não era um fantasma; então ele se despediu e desapareceu de forma igualmente misteriosa. O rei Jesus (porque tinha o direito de ser assim chamado) agora é adorado como um deus por uma seita conhecida como os cristãos gentios”, diz Ágabo, o decapolitano, narrador de Jesus rei. Para Graves, o cristianismo pregado pelo apóstolo Paulo (que ele julga presunçoso e sem escrúpulos) é uma distorção da mensagem de Jesus. Em O evangelho nazareno restaurado (1953), Graves e o pesquisador Joshua Podro destacam o legado das tradições judaica e grega nos Evangelhos.1
 
O português José Saramago também escolheu Jesus como herói de seu famoso romance O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), centrado na infância e juventude do Filho de Deus. Nesta história alternativa, Jesus testemunha o martírio de seu pai terreno José, torna-se aprendiz de um misterioso personagem, debate amargamente com Deus no deserto e vive com Maria Madalena. À data da publicação o escritor Prêmio Nobel da Literatura de 1998 era considerado um “blasfemo” em Portugal e noutros países católicos, apesar de ter apontado que o seu romance era uma releitura dos Evangelhos, que começa com a cena dramática da crucificação: “Neste lugar, a que chamam Gólgota, muitos são os que tiveram o mesmo destino fatal, e muitos outros o virão a ter, mas este homem, nu, cravado de pés e mãos numa cruz, filho de José e Maria, Jesus de seu nome, é o único a quem o futuro concederá a honra da maiúscula inicial, os outros nunca passarão de crucificados menores.”
 
Em A última tentação de Cristo (1951), o grego Nikos Kazantzákis retoma a cena da Paixão e imagina uma tentativa de evasão do sofrimento de Jesus através de uma fantasia que lhe permite ser tentado, finalmente, por Satanás e viver uma vida de homem (o autor também o une a Maria Madalena). “Todo homem é um homem-deus, carne e espírito”, escreve o autor no prólogo do romance. “Por isso, o mistério de Cristo não é apenas o mistério de um culto em particular, mas alcança também todos os homens. A luta entre Deus e o homem irrompe em cada um, inseparável do seu ansioso desejo de reconciliação.”2 Após a publicação, a Igreja Ortodoxa Grega excomungou o escritor, um dos mais destacados de seu país. E a história da censura se repetiu quando, em 1988, Martin Scorsese lançou sua adaptação cinematográfica com roteiro de Paul Schrader e com Willem Dafoe como Jesus, Harvey Keitel como Judas, Barbara Hershey como Maria Madalena e David Bowie como Pôncio Pilatos. A projeção do filme foi proibida por anos na Turquia, Peru, México, Chile e Argentina. Nos Estados Unidos houve protestos de grupos católicos durante a estreia e, na França, grupos de católicos fundamentalistas atearam fogo a cinemas.
 
Outro italiano, o escritor e pintor Carlo Levi, publicou em 1945 o relato autobiográfico Cristo parou em Eboli, que narra seu exílio no sul da Itália por causa de sua militância antifascista. Neste texto, transformado em filme por Francesco Rosi em 1979, o protagonista chega à Lucânia e aos poucos descobre uma cosmogonia diferente da sua, na qual não só Cristo, mas também o Estado, o progresso e a tecnologia “pararam” na fronteira lucaniana. Para Levi, trata-se de “toda a experiência que aquele jovem (que talvez fosse eu) estava vivendo e revelava-lhe na realidade não apenas um país desconhecido, expressões, trabalhos, cansaços, dores, misérias e costumes desconhecidos, não apenas animais e magia, antigos problemas não resolvidos e uma força contra o poder, mas também a alteridade presente, a infinita contemporaneidade, a existência como coexistência, o indivíduo como centro de todas as relações e um mundo imóvel de infinitas possibilidades.”3 O livro de Levi, que descreve um “cristianismo sem Cristo”, foi elogiado por autores como Jean-Paul Sartre e Italo Calvino.
 
Em Sede (2022), da belga Amélie Nothomb, são narradas as horas antes da crucificação e morte de Jesus — nas quais ele sente medo e dúvidas e passa em revista sua vida em flashbacks — e a Ressurreição. Nas páginas do romance aparecem, com o humor provocativo e a ternura reflexiva da prosa nothombiana, Pôncio Pilatos, os apóstolos, Maria Madalena, os milagres, o sentido da morte e até os momentos em que Jesus questiona — como acontece no Novo Testamento — a seu Pai estrito. Assim raciocina o Jesus Cristo de Nothomb nas primeiras páginas de Sede: “Sempre soube que me condenariam à morte. A vantagem dessa certeza é que posso voltar minha atenção àquilo que merece: os detalhes. Achava que meu processo seria uma paródia de justiça. E, de fato foi, mas não da maneira como eu acreditava. No lugar da formalidade, rapidamente despachada, como havia imaginado, tive direito ao grande espetáculo. O procurador não deixou nada ao acaso. As testemunhas de acusação desfilaram uma após a outra. Não acreditei quando me deparei com os noivos de Canaã chegando, meus primeiros miraculados.”4
 
Ligações a esta post


Notas da tradução
1 A tradução dos títulos é livre e refere-se a King Jesus: A Novel e Nazarene Gospel Restored, respectivamente. Até o presente não encontramos traduções em língua portuguesa disponíveis ou editadas no Brasil.
 
2 O excerto é apresentado em tradução livre a partir do original deste texto, em espanhol. No Brasil, o leitor encontra uma tradução direta do grego feita por Marisa Ribeiro Donatiello, publicada pela editora Grua (2015).
 
3 O título referido segue a tradução brasileira de Wilma Freitas Ronald de Carvalho (Editora Nova Fronteira, 1986). O excerto, por sua vez, é tradução livre a partir do original deste texto espanhol.
 
4 A passagem citada tem tradução de Gisela Bergonzoni. É da edição publicada pela Tusquets Editores (2022).  
 

* Este texto é a tradução livre para “Jesucristo en la literatura: protagonista de un calvario”, publicado aqui, em Confabulario.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual