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A Crucificação. Peça central do Retábulo de Issenheim. Matthias Grünewald, 1512-1516. Museu de Unterlinden, Colmar, Alsácia, França. |
Os Evangelhos, e sobretudo as
passagens sobre os últimos dias da vida de Cristo, desde a entrada triunfal em
Jerusalém, montado num pacífico jumento, até à via crucis, morte e
ressurreição, ultrapassam o âmbito da religião cristã e fazem parte da cultura
universal. Ao longo do tempo, e sem deixar de questionar a história oficial,
escritores proeminentes recriaram sua vida e seus ensinamentos em chave
literária. “Por baixo da herança cultural deve haver uma herança psicológica
comum; se não fosse assim, todas as formas de cultura e imaginação que não
estivessem dentro de nossas próprias tradições não seriam compreensíveis”,
postulou o crítico literário canadense Northrop Frye. Como Jesus é representado
na literatura contemporânea?
“De que pode servir-me que aquele
homem/ tenha sofrido, se eu sofro agora?”, se pergunta o poema “Cristo na cruz”,
de Jorge Luis Borges. Esses versos de
Os conjurados se somam a uma longa
série de escritos em que o autor argentino refletiu sobre um herói religioso,
mitológico e também literário: Jesus de Nazaré. Desde o conto filosófico “Três
versões de Judas” — em que se especula que Jesus poderia ser Judas ou que este
é um fator chave para seu ambicioso plano de salvação universal — até o conto “O
Evangelho segundo Marcos”, no qual a crucificação é parodiada em um rancho de
Buenos Aires e Jesus é igualado a outro judeu perseguido (o filósofo Baruch
Spinoza), Borges humaniza a figura do Redentor. “Ele deve ter sido um homem
extraordinário”, disse ele sobre Jesus Cristo. “Ao mesmo tempo, se uma pessoa
acredita que é o Filho de Deus, se confessa opiniões tão extraordinárias como
essa, não sei até que ponto podemos julgá-la. Ele é, sem dúvida, uma das
pessoas mais raras e admiráveis que o mundo já teve.” No acervo da Biblioteca
Pessoal, Borges havia selecionado
Os Evangelhos Apócrifos, que
apresentam um Jesus mais humano, sensual e temperamental, diferente do bíblico.
Em
História de Cristo, o
italiano Giovanni Papini (outro autor escolhido por Borges para sua Biblioteca
Pessoal), apresenta um personagem diferente daquele consagrado pela Igreja e pelos
relatos devocionais, que o autor qualifica como “insípidas e intragáveis”.
Neste livro de 1921, um dos maiores sucessos do escritor (que de detestar a fé
cristã se transformou em veemente apologista), Cristo transborda vitalidade e
aparece como ativo adversário dos poderosos. Papini também analisa em capítulos
breves episódios e cenas da vida de Cristo: seu nascimento em um estábulo, os
três reis magos, os apóstolos, as parábolas, a sinagoga de Cafarnaum, a
montanha onde proferiu o sermão e os milagres. “Vivemos na era cristã”, escreve
Papini. “E isso não acabou. Para entender esse nosso mundo e nossa vida, para
nos entendermos, devemos nos referir a ele. Cada era volta a escrever seu
Evangelho.”
No romance histórico
Jesus rei
(1946), o britânico Robert Graves reinterpreta Jesus como uma figura
histórica que, devido à afiliação materna, poderia ter ascendido ao trono de
Israel. Contada do ponto de vista de um homem que pertence a uma seita
judaico-cristã (os ebionitas), a ficção de Graves apresenta Jesus como um mago,
um sábio e um asceta que proclama uma ordem civil e sagrada que ameaça as
elites de seu tempo. “Das muitas façanhas de Jesus, esta não foi a menos
fabulosa: embora seus algozes tenham certificado sua morte após uma
crucificação normal e o colocado numa tumba, ele voltou dois dias depois para
seus amigos galileus em Jerusalém e os convenceu de que não era um fantasma;
então ele se despediu e desapareceu de forma igualmente misteriosa. O rei Jesus
(porque tinha o direito de ser assim chamado) agora é adorado como um deus por
uma seita conhecida como os cristãos gentios”, diz Ágabo, o decapolitano,
narrador de
Jesus rei. Para Graves, o cristianismo pregado pelo apóstolo
Paulo (que ele julga presunçoso e sem escrúpulos) é uma distorção da mensagem
de Jesus. Em
O evangelho nazareno restaurado (1953), Graves e o
pesquisador Joshua Podro destacam o legado das tradições judaica e grega nos
Evangelhos.
1
O português José Saramago também
escolheu Jesus como herói de seu famoso romance
O Evangelho segundo Jesus
Cristo (1991), centrado na infância e juventude do Filho de Deus. Nesta
história alternativa, Jesus testemunha o martírio de seu pai terreno José,
torna-se aprendiz de um misterioso personagem, debate amargamente com Deus no
deserto e vive com Maria Madalena. À data da publicação o escritor Prêmio Nobel
da Literatura de 1998 era considerado um “blasfemo” em Portugal e noutros
países católicos, apesar de ter apontado que o seu romance era uma releitura
dos Evangelhos, que começa com a cena dramática da crucificação: “Neste lugar,
a que chamam Gólgota, muitos são os que tiveram o mesmo destino fatal, e muitos
outros o virão a ter, mas este homem, nu, cravado de pés e mãos numa cruz,
filho de José e Maria, Jesus de seu nome, é o único a quem o futuro concederá a
honra da maiúscula inicial, os outros nunca passarão de crucificados menores.”
Em
A última tentação de Cristo
(1951), o grego Nikos Kazantzákis retoma a cena da Paixão e imagina uma
tentativa de evasão do sofrimento de Jesus através de uma fantasia que lhe
permite ser tentado, finalmente, por Satanás e viver uma vida de homem (o autor
também o une a Maria Madalena). “Todo homem é um homem-deus, carne e espírito”,
escreve o autor no prólogo do romance. “Por isso, o mistério de Cristo não é
apenas o mistério de um culto em particular, mas alcança também todos os
homens. A luta entre Deus e o homem irrompe em cada um, inseparável do seu
ansioso desejo de reconciliação.”
2 Após a publicação, a Igreja Ortodoxa
Grega excomungou o escritor, um dos mais destacados de seu país. E a história
da censura se repetiu quando, em 1988, Martin Scorsese lançou sua adaptação
cinematográfica com roteiro de Paul Schrader e com Willem Dafoe como Jesus,
Harvey Keitel como Judas, Barbara Hershey como Maria Madalena e David Bowie
como Pôncio Pilatos. A projeção do filme foi proibida por anos na Turquia,
Peru, México, Chile e Argentina. Nos Estados Unidos houve protestos de grupos
católicos durante a estreia e, na França, grupos de católicos fundamentalistas atearam
fogo a cinemas.
Outro italiano, o escritor e
pintor Carlo Levi, publicou em 1945 o relato autobiográfico
Cristo parou em Eboli,
que narra seu exílio no sul da Itália por causa de sua militância antifascista.
Neste texto, transformado em filme por Francesco Rosi em 1979, o protagonista
chega à Lucânia e aos poucos descobre uma cosmogonia diferente da sua, na qual
não só Cristo, mas também o Estado, o progresso e a tecnologia “pararam” na
fronteira lucaniana. Para Levi, trata-se de “toda a experiência que aquele
jovem (que talvez fosse eu) estava vivendo e revelava-lhe na realidade não
apenas um país desconhecido, expressões, trabalhos, cansaços, dores, misérias e
costumes desconhecidos, não apenas animais e magia, antigos problemas não
resolvidos e uma força contra o poder, mas também a alteridade presente, a
infinita contemporaneidade, a existência como coexistência, o indivíduo como
centro de todas as relações e um mundo imóvel de infinitas possibilidades.”
3
O livro de Levi, que descreve um “cristianismo sem Cristo”, foi elogiado por
autores como Jean-Paul Sartre e Italo Calvino.
Em
Sede (2022), da belga
Amélie Nothomb, são narradas as horas antes da crucificação e morte de Jesus —
nas quais ele sente medo e dúvidas e passa em revista sua vida em
flashbacks
— e a Ressurreição. Nas páginas do romance aparecem, com o humor provocativo e
a ternura reflexiva da prosa nothombiana, Pôncio Pilatos, os apóstolos, Maria
Madalena, os milagres, o sentido da morte e até os momentos em que Jesus
questiona — como acontece no Novo Testamento — a seu Pai estrito. Assim
raciocina o Jesus Cristo de Nothomb nas primeiras páginas de
Sede:
“Sempre soube que me condenariam à morte. A vantagem dessa certeza é que posso voltar
minha atenção àquilo que merece: os detalhes. Achava que meu processo seria uma
paródia de justiça. E, de fato foi, mas não da maneira como eu acreditava. No
lugar da formalidade, rapidamente despachada, como havia imaginado, tive
direito ao grande espetáculo. O procurador não deixou nada ao acaso. As
testemunhas de acusação desfilaram uma após a outra. Não acreditei quando me
deparei com os noivos de Canaã chegando, meus primeiros miraculados.”
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