As pesquisas conduzidas por
historiadores partem de um esforço, amplamente documentado em diversas fontes, para
apreender e interpretação um tempo passado. Já no cinema, a construção de uma
narrativa histórica faz com que se percam as nuances em favor da síntese; além
disso, a forma como a história é contada fala do momento e da posição a partir
da qual essa história é construída. Isto adquire uma dimensão a mais se nos
referirmos aos episódios de uma história recente em que entram em jogo emoções
e interesses que continuam vigentes, bem como consequências sociais e políticas
que alcançam o presente e se mostram na vida cotidiana de forma mais ou menos evidente.
Argentina, 1985 (2022) enfrenta esse dilema ao extrair um caso exemplar para
a América do Sul e abordá-lo com recursos narrativos — clássicos e eficazes —
para entregar uma história comercial e simplificada, sim, mas também
esperançosa.
Dirigido por Santiago Mitre com
roteiro dele e de Mariano Llinás,
Argentina, 1985 segue o processo mais
imediato de preparação do julgamento contra os militares ocorrido naquele país
naquele ano e culmina com a decisão do tribunal. Estamos falando de um processo
que foi um divisor de águas para as denúncias civis contra o poder na América
Latina, no qual estiveram envolvidos diferentes agentes tanto do poder público
quanto da sociedade comum. Todo esse enquadramento é substituído dentro do arco
narrativo por uma grande figura central, um herói indiscutível: Julio César
Strassera (Ricardo Darín), o promotor encarregado de acusar os altos
comandantes militares por suas múltiplas violações aos direitos humanos durante
a ditadura que governou o país por sete anos — assassinatos, desaparecimentos,
prisões extrajudiciais, estupros e outros. Como personagens secundários, temos
sua jovem equipe, que tinha a missão de colher depoimentos para demonstrar a
existência de uma política terrorista de Estado e, assim, fazer com que os
comandantes militares recebessem um julgamento.
Argentina, 1985 adota o tom
dos dramas judiciais mais convencionais: temos o mencionado herói com um
objetivo claro e um grupo de aliados que o apoiam em sua missão; existe um
antagonista inconfundível — aqui apresentado como um personagem unidimensional
e genericamente inimigo implacável, um exército e um sistema político opressor
que bem poderia ser qualquer outro; uma série de contratempos que se apresentam
como nós que se desfazem um a um; certos elementos de suspense e melodrama
colocados especificamente para aumentar a tensão e uma viagem satisfatória do
ponto de vista em jogo até seu desfecho. Há também explosões cômicas e acentos
musicais estrategicamente colocados para temperar os fatos sórdidos aos quais o
julgamento se refere. Desde o início sabemos como as coisas vão acabar — afinal
de contas, foi o julgamento que mudou a história da Argentina — e, no entanto,
Mitre maneja as convenções e consegue puxar os cordões de tal forma que a
história cativa e comove, embora em um nível impressionista.
Quando Strassera recebe a missão
de encontrar provas contra os comandantes militares e acusá-los, seus aliados
habituais se recusam, decepcionados ou talvez com medo, de participar de um
processo aparentemente fadado ao fracasso. Também é impossível para ele
recrutar outros advogados experientes, pois eles continuaram a apoiar a
ditadura que acabara de cair. Isso deixa o promotor sem escolha a não ser
recorrer a um grupo de jovens sem experiência ou convicções arraigadas. Essa
equipe, o azarão projetado narrativamente para merecer simpatia e apoio,
enfatiza a severidade do confronto. A sequência em que os jovens são
entrevistados serve, ao mesmo tempo, para ilustrar a importância do diálogo e
da mudança geracional em qualquer movimento social: embora no início Strassera
e os jovens pareçam absolutamente incompatíveis, pouco a pouco nos mostrará que
a luta comum pesa mais que todas as diferenças.
Assim como nessas cenas, o filme é
sustentado por uma série de dicotomias — como entre velhos e jovens, entre
fanfarrões e defensores da justiça, entre cidadãos e Estado — que beiram a
simplificação dos acontecimentos. Nenhum dos lados é retratado detida ou
minuciosamente; ao contrário, tornam-se símbolos que parecem apontar mais para
uma ideia de universalidade do que para uma especificidade histórica.
Argentina,
1985, por ser um filme voltado para um público amplo e diversificado,
possui uma simplicidade que se torna a raiz de seu alcance e sucesso comercial,
mas também sua maior deficiência discursiva. Na ânsia de evitar as
complexidades do conflito e apresentar uma narrativa objetiva, com uma conclusão
inescapável, há uma descontextualização que é problemática. Sim, é verdade que
a história recente da América Latina é marcada por Estados autoritários, abusos
de poder e revoltas em busca de justiça e memória sociais, mas
Argentina,
1985 homologa todos os elementos circundantes para transformar este
episódio particular num caso de êxito facilmente intercambiável e uma espécie
de mensagem motivacional.
Deixe-me explicar com alguns
exemplos: é mencionado brevemente que Strassera cometeu graves omissões em seu
trabalho burocrático dentro do Judiciário — parece que ele não cumpriu seu
trabalho como promotor diante dos crimes da ditadura — antes de ter a
oportunidade de se justificar com este julgamento — por isso, em mais de uma
ocasião, ele é chamado diretamente de herói —, mas
Argentina, 1985 não
se aprofunda nesses acontecimentos. Não sabemos mais sobre as responsabilidades
anteriores de Strassera: seu arco narrativo começa e termina com o processo em
questão. A interpretação de Darín, um dos atores mais reconhecidos e apreciados
da atualidade na Argentina, se limita perfeitamente a esse fim. Como espectadores,
não nos são apresentados motivos suficientes para duvidar de suas intenções,
apenas algumas sugestões e uma desculpa. Por outro lado, o papel de alguns
agentes sociais essenciais no processo, como as Mães da Praça de Maio, fica em
segundo plano. Seus esforços são representados de forma superficial para abrir
caminho para o evento central do filme sem que ocupem muito tempo na tela ou
muita atenção na trama. Sua figura aparece em apenas três momentos: quando são
consultadas pela equipe de Strassera para colher os depoimentos — e, justamente,
uma delas afirma que, durante a ditadura, o procurador não fez nada —, quando
são solicitados a retirar seus lenços já que é proibido o uso de qualquer
símbolo político no local do julgamento e, no final, quando recolocam. Na
segunda sequência, não vemos sequer os rostos dessas mulheres, que parecem
estar ali simplesmente para que sua presença no contexto não seja totalmente
omitida.
Seguindo o tom do drama de
tribunal, as declarações e descobertas dos sobreviventes ocupam um lugar central
no desenvolvimento da narrativa. Quando a equipe de Strassera se aventura em
busca dos depoimentos das vítimas, constrói-se uma história coral que evita
entrar em detalhes desnecessários ou mórbidos. As histórias pessoais se
entrelaçam para representar a esmagadora coletividade da dor. Não se trata de
casos isolados de injustiça, mas de uma política sistemática com múltiplas
faces, com um sem vim de dívidas, com consequências que ainda estão presentes,
que não podem ser ignoradas. Nesse nível, o filme cumpre plenamente seu
objetivo, mas suas pretensões não avançam. Vale, então, nos perguntarmos se é
possível retratar um período histórico tão complexo e extenso a partir de um
único evento, se não é, talvez, um tanto equivocado nomear o filme
Argentina,
1985 quando há tanto que foi descartado em busca da eficácia da narrativa.
O que é dito torna-se o eixo
motriz do filme. Assim como os comandantes militares tentam se proteger,
afirmando que não reconhecem a validade do tribunal que os julgará por sua
natureza civil, Strassera, sua equipe e as vítimas vão fundo para mobilizar
todas as suas forças por meio da palavra. Destaca-se a interpretação de Laura
Paredes como Adriana Calvo, uma mulher que deu à luz em cativeiro, em condições
absolutamente sórdidas e desumanas. Enquanto narra o inferno que viveu, a
câmara obriga-nos a manter o seu olhar, confrontando-nos implacavelmente com
uma realidade que, insisto, ainda é válida em demasiados países. Sua história é
uma entre muitas, inúmeras outras, tanto na Argentina, durante a ditadura,
quanto no resto da América Latina, mesmo daqui a quatro décadas. A propagação
da violência e do abuso de poder exige uma abordagem rigorosa, um exercício
constante em que as arestas são nomeadas e analisadas para poder enfrentá-las.
Argentina,
1985 não pretende fazer isso, mas simplesmente destacar um momento
particular e evocar emoções a partir dele.
No início de
Argentina, 1985,
há uma cena que parece anunciar as intenções do filme: Strassera está em casa
assistindo à transmissão de um comunicado oficial sobre o processo contra os
militares com sua família; sua filha sai para encontrar seu parceiro e ele se
debruça na janela para vê-la partir. Ele olha para cima e então vislumbra os
flashes sincronizados de várias televisões: a mesma mensagem transmitida e
recebida nas casas que o cercam. O que vemos é um filme sobre o alcance de uma
história com propósitos específicos, em um determinado momento. Não é à toa,
portanto, que o clímax de nosso herói é justamente a leitura em voz alta da
acusação final com que encerra sua participação no julgamento, peça de oratória
que aponta sem hesitação os comandantes militares e parece restabelecer o poder
dos cidadãos na incipiente democracia, pelo menos nesta dimensão. Após uma
breve interação com o filho — novamente a ênfase na esperança que as novas
gerações representam e na importância de ouvi-las sem condescendência — o
promotor compila tudo o que aprendeu ao longo desse processo e coloca nas
palavras que elas serão seu último grande golpe, o passo final para a vitória. Conseguimos
ver as folhas riscadas e corrigidas, ouvimos a versão que apresentou diante do
tribunal e vemos a plateia irromper em aplausos
. Argentina, 1985 mantém
o foco do começo ao fim. Suas omissões, sínteses e simplificações são direcionadas
a um objetivo: apresentar esta história a um público que não a conhece muito e
causar uma sensação de satisfação no processo.
O filme em nenhum momento pretende
ser uma história conclusiva, por isso fecha com uma lenda que deixa claro que
este julgamento e sua sentença são apenas o começo de uma luta que continua até
hoje.
Argentina, 1985 não tem grandes aspirações autorais nem promete
rigor histórico, pelo contrário, apoia-se inteiramente nas convenções e
recursos do drama judiciário, desempenhando assim um papel, até certo ponto,
didático — e condescendente. “Senhores juízes: quero renunciar expressamente a
qualquer pretensão de originalidade para encerrar esta requisição. Quero usar
uma frase que não me pertence, porque já é de todo o povo argentino. Senhores juízes:
Nunca mais”, diz Strassera em sua argumentação final.
Argentina, 1985
adere a esta posição sem hesitar: não há nela busca de inovação ou
originalidade, mas simplesmente uma história sobre o poder das histórias para
entender o passado, navegar no presente e nos direcionar para o futuro. Estamos
diante de um filme que, mais do que ser sobre a ditadura, se limita a uma parte
dela, à vida que se segue, às negociações que se fazem da sociedade e da
autoridade para lidar com a atrocidade de um passado recente. No final das
contas,
Argentina, 1985 se parece mais um slogan, daqueles que se
replicam até que seu pano de fundo se dilua, do que uma busca profunda para
reivindicar a memória.
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