Aproximação à filosofia da pós-modernidade: uma patologia social
Por Lucas Pinheiro
Entender o que é a pós-modernidade está longe
de ser algo simples. Dos vários autores que tentaram e ainda tentam defini-la,
mesmo que sem êxito consensual, esta breve análise se detém a uma aproximação
ao pensamento de três: o polonês Zygmunt Bauman, que trata a pós-modernidade
pelo conceito de modernidade líquida, e os britânicos Anthony Giddens e David
Harvey, que definem a pós-modernidade como modernidade tardia e sociedade
pós-industrial, respectivamente. Para tanto, em um primeiro movimento de discurso,
é preciso retroceder às dinâmicas socioculturais da conjunção anterior, ou
seja, é necessário para o pensamento pós-moderno que exploremos algumas tônicas
características da modernidade, partindo de uma análise que procure manifestar
tal transição e preconizar um fundamento teórico para a assimilação, o
entendimento do pensamento pós-moderno.
Desde o seu início, a história do Ocidente é
marcada pela manifestação de processos de instituição, estabilização e
ultrapassagem de determinados paradigmas. Isto é, observa-se desde sempre que o
padrão instituído a partir de determinada filosofia é estabelecido e posteriormente
superado. Exemplos deste fenômeno podem ser apurados desde as narrativas mitológicas,
evidenciado-se no período pré-socrático, pela filosofia clássica, transcorrendo
até as crendices do medievo até desaguar no que buscamos definir como
modernidade.
Até o advento moderno, os episódios
precedentes seriam esclarecidos por potências soturnas, metafísicas, abstratas,
transcendentes, nebulosas, mas, com a sua eclosão exponencial, por volta do século
XVIII, encabeçada pela filosofia iluminista, deu-se um processo de
secularização que instituiu como padrão filosófico a racionalidade. À vista de
tal instituição de pensamento, presenciou-se a expansão do mundo em relação ao
homem em decorrência de eventos como a Reforma Protestante, o surgimento de cidades
melhor sistematizadas, a potencialização do modelo econômico capitalista e, é
claro, as grandes navegações que chegaram nas Américas — circunstância essa de
extrema importância para o pensamento do filósofo peruano Aníbal Quijano quanto
à modernidade, mas isto não será abordado aqui. O principal fundamento de tal
modernidade era o progresso da humanidade mediante os ideais cientificistas, e o
ímpeto filosófico estabelecido prescrevia a idealização de uma sociedade apta a
solucionar problemas de qualquer instância, a fim de estabelecer a ordem. Conforme
expõe a filósofa Marilena Chauí, a modernidade, em seu advento, teria privilegiado
uma perspectiva universal e a racionalidade; teria sido positivista e tecnocêntrica,
acreditando no progresso linear da civilização, na continuidade temporal da
história, em verdades absolutas (CHAUÍ, 2007 p. 179).
Nesta lógica, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman
apresenta um esquema que elucida a modernidade e desempenha certa função
interpretativa a este conceito. Logo no início de O Mal-estar da
Pós-modernidade (1998), no qual parte de leituras freudianas de O Mal-estar
na Civilização (1930), o sociólogo apresenta a ideia de que a modernidade
teria sido instituída pelo trinômio beleza, pureza (limpeza, purificação)
e ordem, e estaria sustentada por estes elementos. Bauman investiga a
empreitada do psicanalista austríaco e seu desafio aos paradigmas da
modernidade, que perscrutam sofregamente a consciência coletiva e norteiam a
noção acerca de seus efeitos, constatando que, ao analisar a cultura e a civilização,
o psicanalista reproduzia a história da modernidade:
“Só a sociedade moderna pensou em si mesma
como uma atividade da cultura ou da civilização e agiu sobre esse
autoconhecimento com os resultados que Freud passou a estudar; a expressão civilização
moderna é, por essa razão, um pleonasmo.” (BAUMAN, 1998, p. 7).
Aqui, ele expõe os termos:
“Assim como cultura ou civilização,
modernidade é mais ou menos beleza (‘essa coisa inútil que esperamos ser
valorizada pela civilização’), limpeza (‘a sujeira de qualquer espécie
parece-nos incompatível com a civilização’) e ordem (‘Ordem é uma espécie
de compulsão à repetição que, quando um regulamento foi definitivamente
estabelecido, decide quando, onde e como uma coisa deve ser feita, de modo que em
toda circunstância semelhante não haja hesitação ou indecisão’).” (BAUMAN, 1998,
p. 7-8)
Isto posto, pode-se afirmar que a beleza
como circunstância “inútil que esperamos ser valorizada pela civilização” (ibidem,
p. 7-8), seja, em essência, a universalidade do que se espera de uma sociedade
moderna. Os outros constituintes do trinômio, a pureza e a ordem,
desempenhariam tão somente a função de garantir, ou melhor, propiciar a
constância e a estabilidade da beleza numa sociedade. Ao referir-se à ordem,
é evidente que este conceito alude a uma questão de conduta, que se caracteriza
como sequela de uma dinâmica repetitiva e que exerce a responsabilidade de
igualar e ajustar aos paradigmas estabelecidos qualquer comportamento ou método
de como uma coisa deve ser feita/exercida. Como resultado, desenvolve-se uma sociedade
catedrática, doutrinadora que se dedica à convenção de ensinarem-se, aliás,
adestrarem-se uns aos outros a (con)viver sob a égide da beleza e,
agindo como um tipo de clípeo binômico, da pureza e da ordem.
Para isto, é decisivo que os indivíduos
renunciem às limitações de suas liberdades aspirando a cadência harmônica do
coletivo, do social em sua totalidade. Isto significa, então, que o indivíduo da
modernidade deve necessariamente abrir mão de sua liberdade na tentativa de
consolidar uma vida segura em sociedade; deliberadamente a consolidação de um Estado
de bem-estar social. Contraditoriamente, esta conduta que objetivava uma convivência
harmônica, dentro do coletivo social, fez com que aflorasse o mal-estar da modernidade,
o grande paradoxo antagonista do homem moderno, essa consternação que, diria o
austríaco, é a questão central do homem civilizado, moderno: a divergência
entre seu desejo de liberdade e o imperativo de normas de conduta que visam a ordem
estabelecida. “Você ganha uma coisa mas, habitualmente, perde em troca alguma coisa:
partiu daí a mensagem de Freud” (BAUMAN, 1998, p. 7).
A transição do século XIX para o XX,
entretanto, já comportava inúmeros sinais de transgressão do paradigma da razão
estabelecido na era moderna; uma experiência de conduta ainda dependente às
causas elementares.
Efetivamente, os cenários desfavoráveis ao paradigma
moderno foram apresentados quando se observou que seus ideais cientificistas
não eram mais uma certeza de progresso, aliás, de modernidade: o avanço tecnológico,
que levaria o homem à solução dos seus problemas, converteu-se nas câmaras de
gás na Europa e em um cogumelo, de matéria que se desintegrou em energia, na
Ásia. Com o clarão de luz mais claro que uma dúzia de sóis, rompeu-se, também, a
crença na razão, nos esclarecimentos e nas premissas totais, nos imperativos categóricos
de Kant, na consistência dos discursos anteriores, modernos. O filósofo e
crítico literário Terry Eagleton (1998, p. 7) a define deste modo:
“uma linha de pensamento que questiona as noções
clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a ideia de progresso ou
emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos
definitivos de explicação. Contrariando essas normas do iluminismo, vê o mundo como
contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas
e interpretações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em relação à
objetividade da verdade, da história e das normas, em relação às
idiossincrasias e a coerência das identidades.”
Este pluralismo de identidades possíveis simboliza,
então, o mal-estar da pós-modernidade. Subvertendo as condições: se antes o
paradoxo do indivíduo moderno estava em renunciar frações da sua liberdade em benefício
de uma seguridade social, na pós-modernidade a máxima de Bauman — ganha-se uma
coisa e, em contrapartida, perde-se uma coisa —, mantém-se tão legítima quanto
em seu antecessor, mas tomando o sentido oposto:
“Os mal-estares da modernidade provinham de
uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da
felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de
liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena
demais [...]. Se obscuros e monótonos dias assombraram os que procuravam a
segurança, noites insones são a desgraça dos livres. Em ambos os casos, a felicidade
soçobra.” (BAUMAN, 1998, p. 10)
Essa nova configuração do capitalismo,
vinculada ao desencanto com as narrativas globalizantes e as utopias, e, ainda,
ao avanço vertiginoso das tecnologias de comunicação e produção conduziam o mundo,
que se reconstruía no pós-guerra, a um novo e decisivo embate silencioso, coordenado
pelas duas grandes potências econômicas. E, na segunda metade do séc. XX,
presenciou-se um desvio brusco, mas não inesperado, ao liberalismo, atuando
como pano de fundo para as últimas tentativas de rebelião, de revolução.
A América Latina, em especial, testemunhou o
declínio de seus ideais socialistas em países como o Brasil, a Argentina e o
Chile, a tríplice dizimada pelas ditaduras militares da segunda metade do séc.
XX, financiadas sem escrúpulos pelos ominosos ianques.
Como evidenciado anteriormente, o manifesto pós-moderno
trouxe consigo uma transformação da própria modernidade a partir da
fragmentação e de uma abordagem social não-restritiva, consolidada a partir de
determinada mudança do paradigma moderno que não conseguiu mais se sustentar em
seu contexto e, como consequência desta pós-modernidade, o indivíduo
pós-moderno necessita uma mudança, um novo modelo de pensamento, uma nova filosofia,
para que seja possível pensar as novas condições sociais, e é em cima disso que
Bauman desenvolve sua tese intitulada modernidade líquida, conceituada
por ele como uma metáfora para descrever a condição de constante cinesia e
metamorfose que o sociólogo afirma ser observada nos relacionamentos, identidades
e economia na sociedade contemporânea, pós-moderna; Bauman figura em sua tese uma
transição de uma modernidade sólida a um modelo líquido das
relações sociais humanas, em que o indivíduo encontra-se constantemente em busca
por experiências sociais múltiplas, pluralistas, mas fugazes e que, portanto,
desencadeia a impossibilidade de certezas ao romper abruptamente com as acepções
que apresentaram-se na história desde o surgimento da filosofia até o final do
séc. XIX. Os valores precursores caíram em descrédito. Os princípios, no
desinteresse.
A esse desinteresse coincide uma metodologia
que pode ser assimilada no seguinte esboço: a história do pensamento/filosofia ocidental
perdurou mais de dois mil anos perguntando-se quanto ao porquê de serem as
coisas, pela sua razão de ser, incorporando essa razão ao imperativo das
causas. O tempo, como há de ser, passou. O séc. XIX chegou e nos destinou suas
profundas alterações quanto aos paradigmas sociais. O século XX, seu irmão mais
velho e enciumado, não respondeu positivamente às solicitações de seu irmão
caçula, impossibilitando-as:
“e eis que a macro-cultura das causas, com
todas as suas formações culturais sucessivas, encontrou seu limite de validade aí
por meados do século passado. E o que é e há foi deixando de ser avaliado por
suas causas e veio a ser experimentado pela sua capacidade de efetuar, efetivar,
produzir efeitos” (D’AMARAL, 2014, p. 353)
Percebe-se a eficácia, a capacidade de
produzir efeito, como paradigma. Por este termo, entende-se uma liquefação
entre o saber/saber, que portava a máxima da razão, e o saber/fazer em uma
mescla inexorável “tecno-lógica, na tecno-ciência, numa lógica tecno” (D’AMARAL,
2014, p. 352). Destes princípios, ocorre a aproximação do geógrafo britânico David
Harvey quanto aos aspectos da pós-modernidade, ao defender que este conceito
está implicado com alterações na economia e no saber. Harvey, em A Condição
Pós-moderna (1992), aponta que o mundo, em sua concepção fruto de uma sociedade
pós-industrial, está transformando-se celeremente e que as consequências de
tais transformações têm sido os catalisadores da subdivisão, da incerteza, da efemeridade
elaboradas no âmago de uma economia e de uma sociedade intensamente unificadas
e consolidadas pelo fluxo de capital. A pós-modernidade em Harvey é tida como uma
modernidade pós-industrial ao que se apresenta como uma potencial recusa a toda
uma proposta de modernidade racionalista, com sua tecnocracia e sua (im)possibilidade
de um progressismo linear e de convicções totalizantes, culminando em uma
comutação de protagonismo do capitalismo de produção de bens e da produção de acasos
e espetáculos, realçando o aspecto combativo do pós-modernismo em relação às metanarrativas,
substituindo-as por uma heterogeneidade desviante e, também, uma diferença
divergente.
Por sua vez, semelhante a Bauman e decerto
oposto a Harvey, o sociólogo britânico Anthony Giddens pressupõe a pós-modernidade,
qualificada por ele como modernidade tardia, como uma forma de expressão
característica da modernidade, pois a modernidade não alude tão somente a uma
experiência individual e/ou coletivo-social com alterações cada vez mais apressadas
e, é claro, abruptas, mas sim a um novo método filosófico de pensarmos as ,sociedades
para que, deste modo, seja possível romper com os paradigmas do passado. Assim,
o sociólogo entende a pós-modernidade como a recusa e, sobretudo, a oposição à tradição,
o que é decerto uma ideação weberiana, pois, de acordo com o sociólogo alemão,
a sociedade do séc. XIX, em toda a sua burocracia e industrialização, possuía,
também, como indispensável finalidade a objeção à tradição. No entanto, Giddens
expande o pensamento weberiano para além de uma limitação econômica no cenário
pós-moderno, compreendendo a globalização não exclusivamente como um conjunto de
mudanças econômicas, mas de transformações de grande impacto sociocultural.
À vista de tais considerações, é possível
apreender legítimos subterfúgios para as estruturas de poder que se apresentam na
pós-modernidade. Fundamentada pelo individualismo e pelo dispêndio capitalista de
consumo, tendo como veículo condutor a eficácia, pode-se concluir que as
próprias tônicas de identidade, liberdade e verdade estão vinculadas
a uma realidade capitalista. Isto nos indica, portanto, um caráter supressivo
de tal estrutura instituída, afinal, as imposições sociais e materiais determinam
a dimensão de poder — em sua concepção mais pura, a de possibilidades —, praticada
pelo indivíduo na pós-modernidade. Ou seja, o indivíduo com mais possibilidades
de consumo, de poder de capital, aproveitará melhor as possibilidades de suas vontades
e de seu poder de decisão. E aos indivíduos que não têm recursos para tal demonstração
sutil de poder, as possibilidades são obstruídas, na medida de seu capital,
à “liberdade” para desfrutar de escolhas, as quais serão sempre determinadas e jamais
ínsitas. Ao mal-estar social deste tempo que nos maltrata, soma-se este
imperativo: o sujeito pós-moderno, personagem subalterno e adstrito aos seus iguais,
tem de coexistir com um status quo de conformidade que justifica o sofrimento,
mesmo que miúdo e imperceptível em um primeiro momento, de muitos sujeitos para
que alguns poucos possam desfrutar dos privilégios do sistema, um deles sendo,
é claro, a liberdade em si.
Observa-se que, na pós-modernidade, os
princípios que inspiraram a vida moderna — isto é, o avanço cientificista, o
progresso das sociedades, etc — vêm perdendo espaço em uma cadência célere. O interesse
com o coletivo-social condescendeu seu espaço ao individualismo, que pretere um
contingente substancial de sujeitos que não são abrangidos em sua dinâmica.
Cabe, portanto, ao sujeito a preocupação e o comprometimento com sua própria felicidade;
a incessante busca pelos ideais de beleza, pureza e ordem não
se extinguem com a passagem da modernidade a pós-modernidade, “todavia, eles
devem ser perseguidos — e realizados — através da espontaneidade, do desejo e
do esforço individual” (BAUMAN, 1998, p. 9). Concluo, portanto, deixando claro que
a pós-modernidade é tão somente um período temporal-filosófico intrinsecamente vinculado
ao surgimento de um novo modelo potencializador, e mais cruel, do capitalismo,
de profunda efervescência da eficácia, da substituição das políticas de classe
e das revoluções coletivo-sociais pelas políticas de identidade e rebeliões
individuais.
Bibliografia
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In: Ética. Adauto Novaes (Org.). Rio de Janeiro: Companhia das Letras,
2007.
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HARVEY, D. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
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