Aproximação à filosofia da pós-modernidade: uma patologia social

Por Lucas Pinheiro

Thomas Hartmann



Entender o que é a pós-modernidade está longe de ser algo simples. Dos vários autores que tentaram e ainda tentam defini-la, mesmo que sem êxito consensual, esta breve análise se detém a uma aproximação ao pensamento de três: o polonês Zygmunt Bauman, que trata a pós-modernidade pelo conceito de modernidade líquida, e os britânicos Anthony Giddens e David Harvey, que definem a pós-modernidade como modernidade tardia e sociedade pós-industrial, respectivamente. Para tanto, em um primeiro movimento de discurso, é preciso retroceder às dinâmicas socioculturais da conjunção anterior, ou seja, é necessário para o pensamento pós-moderno que exploremos algumas tônicas características da modernidade, partindo de uma análise que procure manifestar tal transição e preconizar um fundamento teórico para a assimilação, o entendimento do pensamento pós-moderno.
 
Desde o seu início, a história do Ocidente é marcada pela manifestação de processos de instituição, estabilização e ultrapassagem de determinados paradigmas. Isto é, observa-se desde sempre que o padrão instituído a partir de determinada filosofia é estabelecido e posteriormente superado. Exemplos deste fenômeno podem ser apurados desde as narrativas mitológicas, evidenciado-se no período pré-socrático, pela filosofia clássica, transcorrendo até as crendices do medievo até desaguar no que buscamos definir como modernidade.
 
Até o advento moderno, os episódios precedentes seriam esclarecidos por potências soturnas, metafísicas, abstratas, transcendentes, nebulosas, mas, com a sua eclosão exponencial, por volta do século XVIII, encabeçada pela filosofia iluminista, deu-se um processo de secularização que instituiu como padrão filosófico a racionalidade. À vista de tal instituição de pensamento, presenciou-se a expansão do mundo em relação ao homem em decorrência de eventos como a Reforma Protestante, o surgimento de cidades melhor sistematizadas, a potencialização do modelo econômico capitalista e, é claro, as grandes navegações que chegaram nas Américas — circunstância essa de extrema importância para o pensamento do filósofo peruano Aníbal Quijano quanto à modernidade, mas isto não será abordado aqui. O principal fundamento de tal modernidade era o progresso da humanidade mediante os ideais cientificistas, e o ímpeto filosófico estabelecido prescrevia a idealização de uma sociedade apta a solucionar problemas de qualquer instância, a fim de estabelecer a ordem. Conforme expõe a filósofa Marilena Chauí, a modernidade, em seu advento, teria privilegiado uma perspectiva universal e a racionalidade; teria sido positivista e tecnocêntrica, acreditando no progresso linear da civilização, na continuidade temporal da história, em verdades absolutas (CHAUÍ, 2007 p. 179).
 
Nesta lógica, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman apresenta um esquema que elucida a modernidade e desempenha certa função interpretativa a este conceito. Logo no início de O Mal-estar da Pós-modernidade (1998), no qual parte de leituras freudianas de O Mal-estar na Civilização (1930), o sociólogo apresenta a ideia de que a modernidade teria sido instituída pelo trinômio beleza, pureza (limpeza, purificação) e ordem, e estaria sustentada por estes elementos. Bauman investiga a empreitada do psicanalista austríaco e seu desafio aos paradigmas da modernidade, que perscrutam sofregamente a consciência coletiva e norteiam a noção acerca de seus efeitos, constatando que, ao analisar a cultura e a civilização, o psicanalista reproduzia a história da modernidade:
 
“Só a sociedade moderna pensou em si mesma como uma atividade da cultura ou da civilização e agiu sobre esse autoconhecimento com os resultados que Freud passou a estudar; a expressão civilização moderna é, por essa razão, um pleonasmo.” (BAUMAN, 1998, p. 7).
 
Aqui, ele expõe os termos:
 
“Assim como cultura ou civilização, modernidade é mais ou menos beleza (‘essa coisa inútil que esperamos ser valorizada pela civilização’), limpeza (‘a sujeira de qualquer espécie parece-nos incompatível com a civilização’) e ordem (‘Ordem é uma espécie de compulsão à repetição que, quando um regulamento foi definitivamente estabelecido, decide quando, onde e como uma coisa deve ser feita, de modo que em toda circunstância semelhante não haja hesitação ou indecisão’).” (BAUMAN, 1998, p. 7-8)
 
Isto posto, pode-se afirmar que a beleza como circunstância “inútil que esperamos ser valorizada pela civilização” (ibidem, p. 7-8), seja, em essência, a universalidade do que se espera de uma sociedade moderna. Os outros constituintes do trinômio, a pureza e a ordem, desempenhariam tão somente a função de garantir, ou melhor, propiciar a constância e a estabilidade da beleza numa sociedade. Ao referir-se à ordem, é evidente que este conceito alude a uma questão de conduta, que se caracteriza como sequela de uma dinâmica repetitiva e que exerce a responsabilidade de igualar e ajustar aos paradigmas estabelecidos qualquer comportamento ou método de como uma coisa deve ser feita/exercida. Como resultado, desenvolve-se uma sociedade catedrática, doutrinadora que se dedica à convenção de ensinarem-se, aliás, adestrarem-se uns aos outros a (con)viver sob a égide da beleza e, agindo como um tipo de clípeo binômico, da pureza e da ordem.
 
Para isto, é decisivo que os indivíduos renunciem às limitações de suas liberdades aspirando a cadência harmônica do coletivo, do social em sua totalidade. Isto significa, então, que o indivíduo da modernidade deve necessariamente abrir mão de sua liberdade na tentativa de consolidar uma vida segura em sociedade; deliberadamente a consolidação de um Estado de bem-estar social. Contraditoriamente, esta conduta que objetivava uma convivência harmônica, dentro do coletivo social, fez com que aflorasse o mal-estar da modernidade, o grande paradoxo antagonista do homem moderno, essa consternação que, diria o austríaco, é a questão central do homem civilizado, moderno: a divergência entre seu desejo de liberdade e o imperativo de normas de conduta que visam a ordem estabelecida. “Você ganha uma coisa mas, habitualmente, perde em troca alguma coisa: partiu daí a mensagem de Freud” (BAUMAN, 1998, p. 7).
 
A transição do século XIX para o XX, entretanto, já comportava inúmeros sinais de transgressão do paradigma da razão estabelecido na era moderna; uma experiência de conduta ainda dependente às causas elementares.
 
Efetivamente, os cenários desfavoráveis ao paradigma moderno foram apresentados quando se observou que seus ideais cientificistas não eram mais uma certeza de progresso, aliás, de modernidade: o avanço tecnológico, que levaria o homem à solução dos seus problemas, converteu-se nas câmaras de gás na Europa e em um cogumelo, de matéria que se desintegrou em energia, na Ásia. Com o clarão de luz mais claro que uma dúzia de sóis, rompeu-se, também, a crença na razão, nos esclarecimentos e nas premissas totais, nos imperativos categóricos de Kant, na consistência dos discursos anteriores, modernos. O filósofo e crítico literário Terry Eagleton (1998, p. 7) a define deste modo:
 
“uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a ideia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação. Contrariando essas normas do iluminismo, vê o mundo como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas e interpretações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em relação às idiossincrasias e a coerência das identidades.”
 
Este pluralismo de identidades possíveis simboliza, então, o mal-estar da pós-modernidade. Subvertendo as condições: se antes o paradoxo do indivíduo moderno estava em renunciar frações da sua liberdade em benefício de uma seguridade social, na pós-modernidade a máxima de Bauman — ganha-se uma coisa e, em contrapartida, perde-se uma coisa —, mantém-se tão legítima quanto em seu antecessor, mas tomando o sentido oposto:
 
“Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais [...]. Se obscuros e monótonos dias assombraram os que procuravam a segurança, noites insones são a desgraça dos livres. Em ambos os casos, a felicidade soçobra.” (BAUMAN, 1998, p. 10)
 
Essa nova configuração do capitalismo, vinculada ao desencanto com as narrativas globalizantes e as utopias, e, ainda, ao avanço vertiginoso das tecnologias de comunicação e produção conduziam o mundo, que se reconstruía no pós-guerra, a um novo e decisivo embate silencioso, coordenado pelas duas grandes potências econômicas. E, na segunda metade do séc. XX, presenciou-se um desvio brusco, mas não inesperado, ao liberalismo, atuando como pano de fundo para as últimas tentativas de rebelião, de revolução.
 
A América Latina, em especial, testemunhou o declínio de seus ideais socialistas em países como o Brasil, a Argentina e o Chile, a tríplice dizimada pelas ditaduras militares da segunda metade do séc. XX, financiadas sem escrúpulos pelos ominosos ianques.
 
Como evidenciado anteriormente, o manifesto pós-moderno trouxe consigo uma transformação da própria modernidade a partir da fragmentação e de uma abordagem social não-restritiva, consolidada a partir de determinada mudança do paradigma moderno que não conseguiu mais se sustentar em seu contexto e, como consequência desta pós-modernidade, o indivíduo pós-moderno necessita uma mudança, um novo modelo de pensamento, uma nova filosofia, para que seja possível pensar as novas condições sociais, e é em cima disso que Bauman desenvolve sua tese intitulada modernidade líquida, conceituada por ele como uma metáfora para descrever a condição de constante cinesia e metamorfose que o sociólogo afirma ser observada nos relacionamentos, identidades e economia na sociedade contemporânea, pós-moderna; Bauman figura em sua tese uma transição de uma modernidade sólida a um modelo líquido das relações sociais humanas, em que o indivíduo encontra-se constantemente em busca por experiências sociais múltiplas, pluralistas, mas fugazes e que, portanto, desencadeia a impossibilidade de certezas ao romper abruptamente com as acepções que apresentaram-se na história desde o surgimento da filosofia até o final do séc. XIX. Os valores precursores caíram em descrédito. Os princípios, no desinteresse.
 
A esse desinteresse coincide uma metodologia que pode ser assimilada no seguinte esboço: a história do pensamento/filosofia ocidental perdurou mais de dois mil anos perguntando-se quanto ao porquê de serem as coisas, pela sua razão de ser, incorporando essa razão ao imperativo das causas. O tempo, como há de ser, passou. O séc. XIX chegou e nos destinou suas profundas alterações quanto aos paradigmas sociais. O século XX, seu irmão mais velho e enciumado, não respondeu positivamente às solicitações de seu irmão caçula, impossibilitando-as:
 
“e eis que a macro-cultura das causas, com todas as suas formações culturais sucessivas, encontrou seu limite de validade aí por meados do século passado. E o que é e há foi deixando de ser avaliado por suas causas e veio a ser experimentado pela sua capacidade de efetuar, efetivar, produzir efeitos” (D’AMARAL, 2014, p. 353)
 
Percebe-se a eficácia, a capacidade de produzir efeito, como paradigma. Por este termo, entende-se uma liquefação entre o saber/saber, que portava a máxima da razão, e o saber/fazer em uma mescla inexorável “tecno-lógica, na tecno-ciência, numa lógica tecno” (D’AMARAL, 2014, p. 352). Destes princípios, ocorre a aproximação do geógrafo britânico David Harvey quanto aos aspectos da pós-modernidade, ao defender que este conceito está implicado com alterações na economia e no saber. Harvey, em A Condição Pós-moderna (1992), aponta que o mundo, em sua concepção fruto de uma sociedade pós-industrial, está transformando-se celeremente e que as consequências de tais transformações têm sido os catalisadores da subdivisão, da incerteza, da efemeridade elaboradas no âmago de uma economia e de uma sociedade intensamente unificadas e consolidadas pelo fluxo de capital. A pós-modernidade em Harvey é tida como uma modernidade pós-industrial ao que se apresenta como uma potencial recusa a toda uma proposta de modernidade racionalista, com sua tecnocracia e sua (im)possibilidade de um progressismo linear e de convicções totalizantes, culminando em uma comutação de protagonismo do capitalismo de produção de bens e da produção de acasos e espetáculos, realçando o aspecto combativo do pós-modernismo em relação às metanarrativas, substituindo-as por uma heterogeneidade desviante e, também, uma diferença divergente.
 
Por sua vez, semelhante a Bauman e decerto oposto a Harvey, o sociólogo britânico Anthony Giddens pressupõe a pós-modernidade, qualificada por ele como modernidade tardia, como uma forma de expressão característica da modernidade, pois a modernidade não alude tão somente a uma experiência individual e/ou coletivo-social com alterações cada vez mais apressadas e, é claro, abruptas, mas sim a um novo método filosófico de pensarmos as ,sociedades para que, deste modo, seja possível romper com os paradigmas do passado. Assim, o sociólogo entende a pós-modernidade como a recusa e, sobretudo, a oposição à tradição, o que é decerto uma ideação weberiana, pois, de acordo com o sociólogo alemão, a sociedade do séc. XIX, em toda a sua burocracia e industrialização, possuía, também, como indispensável finalidade a objeção à tradição. No entanto, Giddens expande o pensamento weberiano para além de uma limitação econômica no cenário pós-moderno, compreendendo a globalização não exclusivamente como um conjunto de mudanças econômicas, mas de transformações de grande impacto sociocultural.
 
À vista de tais considerações, é possível apreender legítimos subterfúgios para as estruturas de poder que se apresentam na pós-modernidade. Fundamentada pelo individualismo e pelo dispêndio capitalista de consumo, tendo como veículo condutor a eficácia, pode-se concluir que as próprias tônicas de identidade, liberdade e verdade estão vinculadas a uma realidade capitalista. Isto nos indica, portanto, um caráter supressivo de tal estrutura instituída, afinal, as imposições sociais e materiais determinam a dimensão de poder — em sua concepção mais pura, a de possibilidades —, praticada pelo indivíduo na pós-modernidade. Ou seja, o indivíduo com mais possibilidades de consumo, de poder de capital, aproveitará melhor as possibilidades de suas vontades e de seu poder de decisão. E aos indivíduos que não têm recursos para tal demonstração sutil de poder, as possibilidades são obstruídas, na medida de seu capital, à “liberdade” para desfrutar de escolhas, as quais serão sempre determinadas e jamais ínsitas. Ao mal-estar social deste tempo que nos maltrata, soma-se este imperativo: o sujeito pós-moderno, personagem subalterno e adstrito aos seus iguais, tem de coexistir com um status quo de conformidade que justifica o sofrimento, mesmo que miúdo e imperceptível em um primeiro momento, de muitos sujeitos para que alguns poucos possam desfrutar dos privilégios do sistema, um deles sendo, é claro, a liberdade em si.
 
Observa-se que, na pós-modernidade, os princípios que inspiraram a vida moderna — isto é, o avanço cientificista, o progresso das sociedades, etc — vêm perdendo espaço em uma cadência célere. O interesse com o coletivo-social condescendeu seu espaço ao individualismo, que pretere um contingente substancial de sujeitos que não são abrangidos em sua dinâmica. Cabe, portanto, ao sujeito a preocupação e o comprometimento com sua própria felicidade; a incessante busca pelos ideais de beleza, pureza e ordem não se extinguem com a passagem da modernidade a pós-modernidade, “todavia, eles devem ser perseguidos — e realizados — através da espontaneidade, do desejo e do esforço individual” (BAUMAN, 1998, p. 9). Concluo, portanto, deixando claro que a pós-modernidade é tão somente um período temporal-filosófico intrinsecamente vinculado ao surgimento de um novo modelo potencializador, e mais cruel, do capitalismo, de profunda efervescência da eficácia, da substituição das políticas de classe e das revoluções coletivo-sociais pelas políticas de identidade e rebeliões individuais.
 
Bibliografia
 
CHAUÍ, Marilena. Público, Privado, Despotismo.. In: Ética. Adauto Novaes (Org.). Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2007.
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-estar da Pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
D’AMARAL, Marcio Tavares. Sobre Tempos e História: o paradoxo pós-moderno. In: Pensamento do Brasil. Fernando Santoro, Gilvan Fogel, Gisele Amaral, Márcia Schuback (Orgs.). Rio de Janeiro: Hexis, 2014.
EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
HARVEY, D. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
 

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