Por Cláudia Ayumi Enabe
|
Kenzaburo Oe. Foto: Jeremie Souteyrat. |
Ainda há muito a ser escrito sobre
Kenzaburo Oe (1925-2023), ainda mais por leitores e críticos brasileiros que se
disponham a recepcionar e interpretar o nexo entre a escrita política e a autobiografia,
tão cuidadosamente articulado pelo escritor que transformou a “questão pessoal”
(Uma questão pessoal, 1964) em uma imagem de expectativas que devem ser
reinventadas para se imaginar novos tempos (Jovens de um novo tempo,
despertai!, 1983). Pouco antes do anúncio de falecimento, a Estação
Liberdade divulgava o lançamento de Adeus, meu livro!, romance que
compõe uma espécie de trilogia, formada também por A substituição ou as
regras do Tagame (2000) e Morte na água (2009).
A mensagem que se sugere por essa
dupla despedida não poderia ser mais adequada a Oe: o escritor, ao se despedir
do livro, também parte, restando ao leitor dialogar internamente com as
ressonâncias da obra, tal qual Kogito Choko, alter ego de Kenzaburo Oe,
e sua constante conversa com o amigo morto, Goro, por meio de fitas gravadas
por este último antes de seu suicídio. Essa conversa imaginária que se prolonga
pelo romance evidencia a narração não somente como o meio para conformar um
sentido possível para as trajetórias pessoais.
Na obra de Kenzaburo Oe, o
individualismo não sobrevive aos conflitos da individualidade, que
necessariamente precisam ser partilhados em discurso e estruturados em narrativa
para que possam ressoar uma contundência plena. Em Uma questão pessoal,
Bird precisa vagar pelas ruas de Tóquio e transigir com suas figuras antes de
assumir seu lugar como pai de uma criança que nasce com sérias limitações. Esse
filho divergente se projeta como um símbolo potente na escrita de Kenzaburo Oe
ao representar uma sensibilidade outra, a qual se cria e se desenvolve a
despeito de uma realidade adversa, usufruindo de modos próprios de experiência.
Akari, filho do escritor fictício, é um compositor de grande talento, um
artista comprometido com uma procura diferente daquela empreendida por Goro e
por Kogito.
A diferença ilumina uma humanidade
mais complexa, resistente mesmo em meio ao que se possa denominar comumente de desastre.
Essa é uma posição que pode ser vislumbrada na ficção de Oe, mas também é
entrevista na recusa que de alguns de seus personagens a sucumbir, por mais que
transitem pelo sombrio. O tagame, sistema inventado por Goro para
preservar a conversa com Kogito mesmo em sua ausência, é um modo de subsistir
por meio da palavra, guiando o amigo e oferecendo um contraponto às questões
pessoais como individuais, no sentido de não cultivarem ressonância
coletiva.
Oe afirma, em sua obra, um
movimento descrito como tipicamente romanesco, mas ultimamente esquecido ou
maltratado por certa valorização do individualismo como nervo da experiência no
romance. Isto é, o autor japonês recusa tanto o puramente individual quanto a
massificação, e explicita que existe a possibilidade de uma partilha pelo
narrar atingir subjetividades muito diversas. Talvez esse princípio seja uma
forte razão que guie a narrativa próxima dos fatos biográficos, característica
da produção de Oe que mais salta aos olhos dos leitores comuns e dos
especialistas, embora tudo se realize no plano da ficção, de modo que o
ficcional permita criar esse vínculo íntimo que torna a formação de Goro e
Kogito no Japão pós-guerra uma trajetória compartilhada, assim como o
nascimento do filho conturbado do filho de Bird seja o símbolo de uma
sensibilidade própria, de uma vida persistente diante da adversidade.
O engajamento de Kenzaburo Oe pode
ser percebido justamente nessa vida que resiste diante das adversidades. O alter
ego Kogito Choko, aquele que sobrevive às guerras e a um tempo
desencantado, mantém um vínculo íntimo com seu filho Akari, cuja vida se criou
mesmo diante dos riscos apresentados pelo seu nascimento, e das limitações
impostas pela deficiência. Esse filho inesperado, o qual jamais abandona a
condição de filho, parece ser o símbolo de uma humanidade profundamente desfiliada,
desmemoriada dos bosques da infância, onde um menino podia fugir da guerra —
essa situação é evocada por Oe em sua palestra ao receber o Prêmio Nobel em 1994:
“O mundo era tragado por ondas de horror, mas lendo Huckleberry Finn eu
sentia que conseguia justificar o ato de adentrar as florestas das montanhas à
noite e dormir entre as árvores com uma sensação de segurança que nunca
encontraria sob um teto”.¹
O movimento simbólico na criação de
Oe não envolve a recuperação nostálgica de um mundo idílico, utopia rejeitada enfaticamente
por seus personagens, mas sim em encontrar dentro do humano as condições que
tornavam possível que um menino se sentisse seguro adormecendo a céu aberto.
Notas
1 Tradução minha para “The whole world was then engulfed by waves of
horror. By reading Huckleberry Finn I felt I was able to justify my act
of going into the mountain forest at night and sleeping among the trees with a
sense of security which I could never find indoors”.
Comentários