Por Alonso Díaz de la Vega
Luca Guadagnino é para mim um dos grandes mistérios do cinema
contemporâneo. Eu me pergunto, por um lado, se ele é um narrador radical que
evita deliberadamente explorar os temas em seus filmes ou se, ao contrário, ele
é um diretor anedótico, mal disfarçado por alusões temáticas e formais. Existem
bons argumentos para ambas as possibilidades, mas gostaria de desenvolvê-los
antes de chegar a uma conclusão sobre Até os ossos (2022), seu filme
mais recente, porque embora eu inevitavelmente me incline para uma
possibilidade, às vezes acho difícil ignorar a outra.
Tomemos seu filme mais famoso, Me chame pelo seu nome (2017), que
em sua estreia me pareceu muito focado em contar uma história sutilmente
significativa, ou seja, sua trama sobre um adolescente em plena descoberta da
sexualidade e do amor na Itália, procurava acima de tudo comover o público, mas
parecia ter algo a dizer sobre a beleza. A falta de jeito, as descobertas e a
experiência masculina de se masturbar com a comida — recorrentes nesse tipo de
narrativa, seja em forma de bolo, em American pie (1999), ou de fígado
em O complexo de Portnoy — buscam que o público se encontre na tela e se
entregue a esse reflexo.
O narcisismo costuma ser uma forma de a arte encontrar o caráter humano,
mas também uma armadilha para satisfazer o público e vender mais ingressos,
mais livros, mais discos. O maior cinema contemporâneo deriva do pensamento
marxista contra essa alienação causada pelo reflexo: o estilo cinematográfico
quebra a autoimagem na tela e constantemente nos alerta que corpos e árvores,
como em uma pintura, não são reais, mas simulações: figuras abstratas controladas
por outra pessoa. Guadagnino é um classicista rebelde, um tanto parecido com o
roteirista de Me chame pelo seu nome, James Ivory, que em seu próprio
cinema também preferiu o romantismo e uma certa ideia de elegância a um
sofisticado discurso cinematográfico.
No entanto, se Ivory tem sido uma espécie de arquiteto-cineasta que
parece fazer filmes para explorar espaços aristocráticos, tanto materiais
quanto abstratos — fico fascinado com o contraste em Maurice (1987) ou Howards
End (1992) entre a suntuosidade e a opressão por ela ocultado — a
delicadeza de Guadagnino sugere algo decorativo. Seu interesse pela beleza
parece mais uma expressão pessoal de refinamento do que de sintaxe
cinematográfica ou, em palavras mais simples, Guadagnino filma o belo porque é
belo. O esplendor de Me chame pelo seu nome me parece mais uma
coincidência com o romance original de André Aciman do que uma decisão
cuidadosa de navegar por ideias complexas. Em vez de refletir sobre a percepção
do belo, com faz o pensamento contemporâneo, Guadagnino apenas celebra o gracioso:
os personagens se acomodam à ideia tradicional de homens atraentes e a Itália é
um cartão-postal de cores cálidas e sensações de verão como a água e as folhas
das árvores. A filmagem de 35mm também está lá para afetar os sentidos com sua
textura, mas não para dizer algo a partir dela.
Isso não quer dizer que os filmes sempre nos devam uma significação ou
crítica, mas me parece que Guadagnino filma com um estilo tátil com a única
intenção de idealizar, que também é reduzido pela montagem acelerada para
manter o público entretido. Sua técnica, então, parece consciente, mas sua
intenção é agradar da forma mais direta e evitar a contemplação. Apesar de
tudo, a beleza de Me chame pelo seu nome corresponde às emoções do
protagonista e talvez seja injusto negar esse entrosamento.
Desde então, Guadagnino depende cada vez mais do que representa do que
de sua maneira de fazer: Suspíria: a dança do medo (2019) é interessante
porque é grotesco, mas menos que a versão original de Dario Argento; seus cortes
foram campanhas publicitárias para casas de moda — novamente, a intenção beleza
em si mesma — e o romance foi o maior sucesso de sua série We are who we are
(2020). Até os ossos, seu primeiro longa-metragem desde Suspíria,
pretende encontrar aquela beleza já típica em uma trama de canibalismo que joga
com noções de política e identidade, mas ao não concluir — ou mesmo construir
adequadamente — nenhuma, poderia mostrar que o diretor italiano é na verdade um
narrador habilidoso, mas sem ideias.
Em Até os ossos, uma adolescente estadunidense dos anos 1980
começa a fazer novos amigos em uma pequena cidade para onde acaba de se mudar
com o pai. Ela morde um deles no dedo uma noite e descobrimos que ela sofre de
uma fome incomum que seu pai lhe conta em uma fita cassete quando decide
abandoná-la: Maren (Taylor Russell) é uma canibal que já respondeu algumas
vezes antes ao impulso de comer os outros mas, ao descobrir mais personagens
como ela, descobre que a fome vai crescer com o tempo. Sozinha, rejeitada, seu
único plano é procurar sua mãe, para o que empreende uma viagem pela estrada de
onde conhece Lee (Timothée Chalamet),
outro canibal com quem descobrirá o amor.
A sinopse única já nos dá dois gêneros, duas metáforas importantes na
história do cinema: o canibalismo e a estrada. Filmes de terror como As
colinas têm olhos (1977), que condenava a guerra nuclear, ao misterioso Trouble
Every Day (2001), de Claire Denis, em que a fome dos outros representa o
desejo, contemplado em planos tão íntimos que as formas se confundem e somos
incapazes de distinguir um tronco de umas costas, uma perna de um braço. Quanto
aos filmes de estrada, a tradição é longa, de Monte Hellman e Dennis Hopper a
Wim Wenders e Kelly Reichardt. O tema constante é a identidade e sua busca, mas
Guadagnino aborda essas ideias de forma marginal. Seu principal interesse
parece ser os atores em cada cena, então há mais ênfase em mostrar Lee dançando
uma música do Kiss do que em girar os símbolos aparentes.
Não quero dizer com isso que prefira um filme sem cenas afetivas, mas
que leve a sério as metáforas que sugere. Trouble every day decide
ignorar completamente sua trama para se expressar em cenas eróticas e
violentas, enquanto Guadagnino passa a maior parte do tempo narrando,
espalhando ideias como a que dá título ao filme: Bones and all refere-se
a comer completamente uma pessoa até os ossos, como diz o título brasileiro. A
ideia aparece em um encontro de Maren e Lee com outros canibais mais dispostos
a matar do que eles, mas não tem ressonância até o desenlace, quando
aparentemente se liga ao amor, embora antes disso se expresse apenas como um
êxtase que pode acontecer com quem quer que seja.
Além da ausência de telefones celulares, o contexto da era Reagan não
oferece muito. E, no entanto, parece tentar. Guadagnino adiciona constantemente
o som de vozes no rádio. Ronald Reagan costuma se destacar falando sobre a grande
economia americana, mas Até os ossos não tem nada a ver com isso. Por
isso me ocorre comparar o mecanismo de Guadagnino com o de O casamento de
Maria Braun (1979), de Rainer Werner Fassbinder, que usa as vozes do rádio
não apenas para indicar os tempos da trama, mas para construir a alegoria de uma
mulher que representa a Alemanha Ocidental e seus laços não resolvidos com o
nazismo.
Até os ossos não tem
muito a nos dizer sobre reaganomics e tende a cobrir seus efeitos com a
ternura entre Maren e Lee.
A única coisa que se sustenta mais ou menos é a ideia de uma divergência
rejeitada pelos pais que poderia corresponder a algum tipo de vício, mas
Guadagnino se concentra tanto no refúgio que os protagonistas se dão que seu
tema acaba sendo, como sempre, o amor do próprio amor; a beleza do belo. É este
desequilíbrio entre um estilo afetivo mas aparentemente vazio que me faz
perguntar se Guadagnino parte de uma revolta contra as tradições narrativas — que
implicam conta não apenas por contar mas para esboçar ideias — ou se ignora as
possibilidades simbólicas das tramas que adapta para o cinema. Depois de pensar
sobre isso e escrever, finalmente tenho mais clareza.
* Este texto é a tradução livre de La belleza del canibalismo en Bones and all, publicado aqui, em Gatopardo.
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