Vestígios de Carolina
Por Pedro Fernandes
Carolina Maria de Jesus. Foto: Ivo Barretti. |
Repete-se com alguma constância que
Carolina Maria de Jesus é ou foi uma escritora esquecida no âmbito literário
brasileiro. O sucesso do seu diário Quarto de despejo desde quando foi
publicado em agosto de 1960, entretanto, contradiz esse discurso. Mesmo assim,
esse tipo de afirmativa, longe de pertencer exclusivamente à escritora mineira,
se fixa como uma verdade inquestionável e não poucas vezes assume o tom de lugar-comum
cujo intuito parece ser o de seduzir o leitor pela responsabilidade de uma
obrigação, como se uma culpa original da qual faça o que fizer não conseguirá
limpar o passado doloroso do esquecido.
É preciso dizer que o esquecimento
nem sempre está associado à invisibilidade, embora seja correto afirmar a
existência de práticas cujo intuito resulta na invisibilização e por
conseguinte no esquecer. Mas, na maioria das vezes, esquecer é parte do
processo de lembrar. As entradas e saídas na redoma literária são uma constante
e não é possível trabalhar generalizações e nem com certezas. Terry Eagleton —
e muitos outros críticos cientes da falibilidade do cânone — demonstrou muito
bem isso ao afirmar sobre a possibilidade de esquecimento de Shakespeare em algum
futuro não muito distante de nós. Nada é eterno, sabemos. “Mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades” — já sentenciava o poeta.
A presença de Carolina Maria de Jesus
e todas as conquistas póstumas, incluindo o Honoris Causa pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro em 2021, demonstra uma presença perene da escritora
no universo literário brasileiro. Agora, assim como esquecimento nem sempre tem
a ver com invisibilização, reconhecimento não corresponde diretamente com a ausência
de práticas de invisibilidade. O seu caso está situado aqui. Ela não é e nem foi
esquecida, tornou-se nos últimos anos reconhecida, mas esteve submetida a um
modelo que, durante muito tempo contribuiu para invisibilizá-la nos espaços autorizados
de saber, a começar por certa relutância da sua presença entre outros nomes da
nossa literatura.1
O livro que fez de Carolina Maria
de Jesus uma Best-Seller ganhou rápida projeção internacional e inaugurou uma
dessas febres que, vez em quando, toma conta dos universos artísticos2.
Quarto de despejo vendeu a primeira tiragem de dez mil exemplares numa
semana e logo iniciou um trajeto ascendente de reedições e novas traduções, alcançando quase duas dezenas de
idiomas diferentes. Registro de contestação e testemunho direto de uma vida espezinhada
pela engrenagem de um modelo social fixado no capitalismo predatório, seus
diários abriram as duras feridas que o país se recusou a olhar e, infelizmente,
nada ou pouco fez para erradicá-las desde sempre.
De Quarto de despejo derivaram
inúmeras outras manifestações artísticas: canções, teatro, seriado, filmes — isso
enquanto sua obra era lida mas ainda não frequentava certos espaços de uma
elite intelectual brasileira. Esse lugar só alcançado postumamente se deve a
imensa projeção noutras frentes artísticas que conseguiram desvincular os
diários da mera posição de registro documental. Fora do país, onde a rigidez do
cânone parece menos cruel que no Brasil, essa obra sempre mereceu atenção como
fica demonstrado na breve mas singular recolha de materiais na edição especial dos
diários organizada por ocasião dos 60 anos da sua publicação. A essa altura, a
negação, que era sobretudo acadêmica, está superada. Contornar os estudos sobre
esses e outros escritos de Carolina é algo que não se faz sem um difícil esforço.
Os elementos que desconstroem a
ideia de esquecimento literário da escritora não estão às vistas apenas na
contínua reedição de sua obra — e agora na apresentação de novos textos de um espólio
motivo de intrigas, como é recorrente em quase todos os casos de família de
escritores neste mesmo país que assume a reiteração do discurso de esquecimento
—, nem nos muitos derivados objetos artísticos, nem nas resenhas, comentários e
pesquisas de intelectuais brasileiros e estrangeiros, nem nos números de vendas
da sua obra. E essa lista, creia, seria suficiente.
Mas existe ainda uma presença recorrente
de Carolina Maria de Jesus na imprensa, no tímido convívio com os escritores seus
contemporâneos em evidência (Rachel de Queiroz, Manuel Bandeira, Sérgio Milliet,
Helena Silveira, Clarice Lispector), nos incontáveis registros fotográficos e
de vídeo que sobrepõem o tempo anterior a Quarto de despejo. A aquisição
de parte do espólio da escritora pelo Instituto Moreira Salles foi um marco
para que alguns desses materiais ganhassem projeção pela primeira vez no ano do
seu centenário e na exposição organizada por essa instituição entre 2021 e 2022
e são uma ponta para outros que certamente aguardam algures a curiosidade dos
pesquisadores.
Entre os registros de imagem, um
dos primeiros que chegaram deste lado da web saiu do arquivo da Cinemateca
Brasileira a partir de uma matéria da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo sobre os estudos da obra de Carolina. Os recortes mostram várias
passagens da sua vida, de uma noite de autógrafos na Francisco Alves, com casa
lotada, de um passeio pelas ruas de São Paulo, da sua mudança da favela do Canindé
onde morava quando teve seus escritos descobertos por Audálio Dantas, o
jornalista que viabilizou a publicação de Quarto de despejo.
O sucesso dos diários formou
reconhecedores e detratores; estes últimos, é preciso dizer, constituíam uma parte
expressiva da opinião balizadora e foram os principais fomentadores das
práticas de invisibilização, fosse a redução da obra como produto de furo
jornalístico, fosse as estratégias de distribuição dos seus livros ou a posse
dos seus lucros, fosse o uso dos pejorativos que visavam manter o lugar
periférico de Carolina, fosse ainda o incômodo que seus registros causaram em
certa imagem de progresso que dominava os discursos propagandísticos do
Brasil na sua época.
Os detratores, geralmente apegados
a certos preciosismos pré-fixados a partir dos quais toda atividade escrita deve
estar submetida, são, ainda bem, cada vez menos relevantes, e mesmo assim contribuíram
de alguma maneira com a permanência da escritora que no esforço de desvincular
da estereotipia redige Casa de alvenaria (1961), Pedaços de fome
e Provérbios (ambos, 1963). Com eles, Carolina Maria visava ainda se
desfazer do estigma de mercado, de fonte jornalística, e agarrava-se à escrita
que antes fora instrumento de escape da sua condição social, como meio de sobrevivência.
Num canal do YouTube dedicado a
reunir vídeos raros, ela aparece no que são fragmentos de uma entrevista. Comenta
sobre o ser mulher, sobre o sucesso de Quarto de despejo, então
traduzido em vários países, e sobre o projeto futuro de escrita. Os
takes são preenchidos sempre com uma imagem sua em que atravessa uma
passarela, vinda de uma casa de alvenaria mostrada ao fundo. Ao sair da favela,
é notável que a mídia buscou continuamente construir também um esquecimento da
chaga urbana, algo que se impôs à própria Carolina, ela própria tornada em
dilema quando anunciada como ex-favelada.
Carolina de Jesus foi morar em São
Paulo em 1937 para trabalhar como empregada doméstica e logo na favela do
Canindé, zona norte da cidade, onde passou a maior parte da vida; depois do seu
Best-Seller, mudou-se para Santana, à pouca distância de onde morava; só em
1969 foi viver em Parelheiros, numa zona sul mestiça de casas ricas e
habitações populares. Conta-se que os visitantes para chegar à sua casa cor de
abóbora com janelas de caixilhos verdes precisavam andar em tábuas de madeira
sobre a lama.3 Essa descrição se aproxima do que vemos no vídeo.
O terceiro registro são excertos
do filme Favela: Das Leben in Armut (Favela: a vida na pobreza), um
documentário dirigido pela alemã Christa Gottmann-Elter, quando ela trabalhou
para a Fundação Adenauer, no Brasil (o primeiro mundo sempre se interessou pelas
feridas sociais feitas em parte por suas mãos). Esses recortes foram
apresentados pelo Instituto Moreira Salles, instituição que trabalhou no
restauro do material na Alemanha. O filme completo que enquanto esteve
desaparecido chegou a se tratar como O despertar de um sonho conta 16
minutos e foi baseado em Quarto de despejo.
Como no livro, o papel principal é
da própria Carolina de Jesus, nesse caso convertida em atriz do documentário de
1971 que só foi exibido entre nós no ano do centenário da escritora, em 2014. Mal
contada, o que sabe da história da película é que foi vetada na época pela embaixada
brasileira na Alemanha talvez por expor um Brasil contrário à vendida imagem de
país perfeitamente integrado ao desenvolvimento modernista.
É possível que o olhar estrangeiro
sobre Carolina e sua obra tenha sido produto exclusivo de uma curiosidade
exótica, parte de um imaginário de Brasil jamais desfeito. Ou ainda o apelo de
denúncia e prova material de que o país estava muito distante do sonhado primeiro
mundo, isto é, que o lugar subalterno da escritora de alguma maneira era uma
matéria da nossa condição no mundo. Independente disso, essas aberturas serviram
para construir a imagem de Carolina que nos permanece e que desde Quarto de
despejo não foi esquecida e é permanente aberta à compreensão no presente.
Para tratar de esquecimento no seu
caso é preciso voltar ao tempo anterior aos seus diários, mas então isso, nem
mesmo depois do reconhecimento, talvez nunca tenha passado pelos seus
interesses: sempre existiu toda uma vida de terríveis dificuldades que precisavam
ser vencidas um dia por vez e que, na ausência imperiosa do Estado, só restava o
esforço individual, como é para muitos até agora. O sucesso não resolveu isso. Antes da viagem que faria a Buenos Aires em 1961, ela aparece na revista Manchete queixosa das responsabilidades financeiras que tornam em não deixá-la em paz.
Fora do âmbito artístico e literário,
sim, cabe a noção aí recorrente de esquecimento. Parte de um sistema feito da
apropriação, da exploração, da usura e da negação, Carolina de Jesus se fez emblema
de uma realidade que, vergonhosamente, insiste em ser comum: a ingerência e a
negligência dos poderes dominantes pelo bem coletivo.
Notas
1 No primeiro instante, o feito de
Carolina foi meramente comercial. Mesmo hoje sua presença na literatura, o instante depois (e póstumo), é incômoda. Essa permanência cobra continuamente o
reconhecimento dos muitos autores do seu e do nosso tempo que fizeram da escrita
campo para o registro de suas vidas. Isso explica, em parte, a busca pelo estético
nos escritos de Carolina; uma alternativa para distinguir sua obra daqueles autores de ocasião. Antes da crítica, a própria escritora se
fará nessa busca; o resto da sua vida foi dedicado ao desenvolvimento de uma
profissionalização literária da escrita. Os compromissos de
Best-Seller e a limitação escolar — o primeiro, mal do mercado, e o segundo das
disparidades sociais do país que a viu nascer — contribuíram para que isso não acontecesse. Sua obra, entretanto, abriria caminho e reconhecimento próprios, situando-se numa tradição de profundas raízes na nossa literatura, a literatura social.
2 Revistas da época como Manchete
acompanharam o efeito-Carolina. Reiteradas vezes, o sucesso de Quarto de
despejo foi tratado como um lance de sorte, o ganhar na loteria, a
libertação da miséria, um conto de fadas. Fabulações midiáticas, evidentemente. Uma maneira de dizer, erroneamente, que qualquer favelado poderia, trabalhando honestamente, galgar o lugar de Carolina. Num país de extrema carência, esses
discursos ajudaram abrir as gavetas de uma variada gente comum interessada em
transformar suas vidas em matéria de escrita. Chamo atenção para, dentre outras menções na revista em registro, para a matéria “Escritores sem livros” (Manchete, Rio de Janeiro, 18 de novembro de 1961, p.66-70) que lista nomes de lugares diversos do país motivados para a escrita e publicação de suas histórias. O caso mais célebre foi o de Pelé,
quem publica pela mesma Francisco Alves, um ano depois de Carolina Maria de Jesus e a reboque do feito da diarista, a autobiografia Eu sou Pelé. Com Quarto de despejo, ela se tornava precursora de uma linhagem comercial de alto impacto no gosto do leitor e no
mercado editorial brasileiros.
3 Está citado em “The Cautionary
Tale of Carolina Maria de Jesus”, de Roberto M. Levine, publicado em Latina
American Research Review (v. 29, n.1, 1994, p. 55-83).
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