Uma carta de Dmitri Likhatchôv
Por Joaquim Serra
Dmitri Likhatchôv (1906-1999) foi
um filólogo soviético, autor de diversos estudos sobre cultura e literatura
russa. Em sua biografia Pensamentos sobre a vida: memórias, conta como
foi sua formação na Petersburgo pré-revolucionária, os anos do terror, as
diversas pessoas que conheceu na prisão e o que aprendeu em Solovki. Em
fevereiro de 1928, foi preso por atividades contrarrevolucionárias e enviado ao
Gulag. Durante a construção do Canal do Mar Branco, cumpriu parte da pena como
contador e despachante ferroviário.
No livro Cartas sobre o bem e a
beleza, Likhatchôv se dirige aos jovens leitores, reunindo seus principais
pensamentos e o modo como enxerga a relação entre arte, cultura e sujeito. A
“Primeira Carta”, traduzida abaixo, refere-se a um problema que nasce como um
sistema de pensamento para virar uma atitude diante do mundo. Como um fragmento
filosófico-formativo, Likhatchôv fala, por fim, sobre a vida, mostrando como os
valores do grande mundo podem afetar a visão que temos da realidade.
Dmitri Likhatchôv no escritório do seu apartamento em São Petersburgo. |
Primeira carta
O grande no pequeno
No mundo material, você não pode
colocar o grande no pequeno. Já na esfera dos valores não materiais, a coisa
não é bem assim; no pequeno cabe o grande, mas se você tentar encaixar o pequeno
no grande, este simplesmente deixará de existir. Se uma pessoa tem um grande
objetivo, este deve se manifestar em tudo — mesmo naquilo que pareça não ter
importância. É preciso ser honesto no discreto e no casual.
Só então você será honesto no
cumprimento do seu dever. Um grande objetivo abrange toda a personalidade de
uma pessoa e se manifesta em toda ação sua, sendo impossível pensar que por um
meio ruim se alcança um bom fim.
O adágio “os fins justificam os
meios” é pernicioso e imoral. Isto foi muito bem descrito por Dostoiévski em Crime
e Castigo. O personagem principal da obra, Rodion Raskólnikov, pensava que,
ao matar uma repugnante velhota usurária, conseguiria o dinheiro com o qual
atingiria um grande objetivo e beneficiaria a humanidade, mas sofre um colapso
interno. O objetivo torna-se distante e é irrealizável, mas o crime é real, terrível
e não pode ser justificado por nada. É impossível buscar um grande objetivo por
meios baixos. É preciso ser igualmente honesto tanto no grande quanto no
pequeno. Em geral, manter o grande no pequeno é necessário, em particular, na
ciência. A verdade científica é a mais preciosa e deve ser seguida por todos os
detalhes na pesquisa científica e na vida do cientista. Se aspirarmos na
ciência por objetivos “pequenos”, visando provar pela “força”, contra os fatos,
ou em busca de conclusões “interessantes”, eficazes ou qualquer forma de
autopromoção, então o cientista inevitavelmente falha. Talvez não
imediatamente, mas na fatura! Quando começam os exageros dos resultados da
pesquisa ou mesmo pequenas falsificações dos fatos, e a verdade científica é jogada
para segundo plano, a ciência deixa de existir, e o próprio cientista, cedo ou
tarde deixa de ser cientista. É preciso observar o grande em tudo,
absolutamente. Então tudo será fácil e simples.
Para este texto
D. Likhatchôv. Cartas sobre o
bem e a beleza (Письма о добром и прекрасном). 2018 (edição digital).
Comentários