Todos os santos, de Adriana Lisboa

Por Gabriella Kelmer




Talvez seja lugar-comum introduzir um romance da escritora Adriana Lisboa pontuando sua prosa de alto teor lírico, em que encadeamentos simbólicos dão força motriz às narrativas, e ainda assim é preciso fazê-lo. Enquanto leitora, persiste, em mim, na leitura de suas obras, a impressão latente de uma compreensão a ser obtida na junção e repetição de imagens e afetos; de segredos que persistem nas dobras da linguagem, apenas ligeiramente fora de alcance. A borboleta sobre a pedreira de Sinfonia em branco, a sensação à beira-mar no Rio de Janeiro em Azul corvo, os corpos d’água de diferentes continentes de Todos os santos: de repente, uma coisa esbarra em outra, em um outro momento, e os espaços, perdas e traumas subitamente se interligam, indicando concatenações que sugerem menos a unicidade das diversas temáticas abordadas do que o árduo trabalho interpretativo de narradores sensíveis e ordenadores.
 
Todos os santos, lançado em 2019, é o romance mais recente da autora carioca. É a décima primeira obra literária publicada pela escritora; o quarto romance, depois Rakushisha (2007), Azul corvo (2010) e Hanói (2013), que lida com os deslocamentos espaciais de personagens cujas identidades sofrem transformações pela interação de diferentes culturas e pelos tensionamentos ocasionados pela distância e pelo não-pertencimento. Da Nova Zelândia, a brasileira Vanessa, narradora-protagonista, elege André, amor perdido, como interlocutor de uma narração que perscruta suas vidas entre duas perdas: a morte precoce do irmão mais novo da personagem principal, ainda na infância, e a partida súbita do próprio André, depois de duas décadas de união.
 
É num domingo de Todos os Santos no Rio de Janeiro — data da qual deriva o título da obra e o empuxo necessário à emersão do passado — que a vida familiar de Vanessa, mediana em sua configuração, nascida de um casamento ligeiramente desafortunado, é sequestrada pela tragédia. Mauro, o irmão caçula, morre afogado na piscina do clube durante um aniversário, fato que ocasiona não apenas a dissolução do matrimônio dos pais e a primeira migração da protagonista ao Recife, como também o emaranhamento de quatro personagens cujas histórias, antes paralelas, tornam-se uma só: Vanessa e Mauro, Isabel e André. Como os dois primeiros, os últimos, também irmãos, testemunharam a morte de Mauro. Mais tarde, o divórcio, nos dois núcleos, resulta em um novo arranjo familiar, quando o pai de Vanessa, despedaçado pela perda, encontra refúgio na mãe de Isabel e André. É também da tragédia, portanto, que surge a eventual convivência que aproximará Vanessa e André, conduzindo-os ao amor e à pesquisa compartilhada do kuaka, pássaro migratório da Nova Zelândia, onde, no presente de narração, a protagonista vive sozinha.
 
“Fizemos o que pudemos. Demos um jeito de reorganizar o sentido das coisas, de reencontrar um sentido para as coisas, de acomodar os nossos afetos. Décadas passadas, porém, estou aqui sozinha num dos lugares mais remotos do planeta, este lugar que era um projeto nosso, perguntando-me o que foi feito de você” (LISBOA, 2019, p. 9).
 
O procedimento narrativo se configura como uma colagem de momentos, e é na conjunção resultante que está a força maior da prosa de Adriana Lisboa: sua utilização vívida do detalhe e da imagem, da aparente inutilidade dos dias comuns, parece significar em cada vírgula, em cada ponto. As folhas secas colhidas inadvertidamente, por apreço despretensioso à beleza, tornam-se em certo momento alusivas do fim do relacionamento; a canção para Iemanjá, ouvida por Vanessa e André quando jovens na barca para Niterói, é lembrança do começo dos dois e antecipação das razões de seu desfecho; as chuvas que ocasionam o transbordamento do rio neozelandês Manawatu traduzem o avanço violento de outra enxurrada, que toma de surpresa a protagonista e a leva de volta à água clorada da piscina em que assistiu à morte do irmão. A revelação final do romance é sugerida vez e outra em pistas e fragmentos; sua descoberta é comovente, lançando luz nova à obra como um todo.
 
O romance é sensível, intenso, muitas vezes tocante, e a perspectiva de Vanessa, ao relembrar sua vida e reimaginar acontecimentos vividos por aqueles ao seu redor, está em acordo com uma imagem recorrentemente evocada: a de um bicho nos calcanhares, perseguindo a ela e a André, por mais que fugissem da própria história. O trauma da morte de Mauro persiste também do outro lado do mundo, quatro décadas depois de acontecer. Na estrutura da obra, o reencontro com esse momento se apresenta pela reconstituição minuciosa de uma história que, recomposta nas omissões propositais e nos erros decisivos, alcança aqueles que dela se evadiam. O passado, ao fim, apresenta-se inescapável.
 
“Eu esperava, calada. Nem sabia, André, que estava esperando pelos breves minutos que iam alterar tudo para nós, o bicho nos calcanhares que finalmente nos alcançava e cravava os dentes, depois de termos sido por tanto tempo bem-sucedidos em nos esquivar dele” (LISBOA, 2019, p. 150).
 
Sem desejar antecipar as descobertas contidas no romance, resta dizer, sobre a autora, que é possível aproximá-la de uma tradição da prosa intimista registrada desde Clarice Lispector, ainda que, contemporaneamente, faça mais sentido mencioná-la junto à Elvira Vigna e Beatriz Bracher, considerando esta última, em especial, pelo apreço de ambas em discutir simultaneamente a vida íntima e algo da história brasileira, mesmo que de modo sutil.
 
A leitura da obra é recomendada.


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Todos os santos, Adriana Lisboa
Alfaguara Brasil (2019)
152 p.

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