Por Pedro Fernandes
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Philip Roth. Foto: Inge Morath. |
Antes de publicar When She Was Good, em 1967, Philip Roth já era autor
de outros dois livros: Goodbye, Columbus and Five Short Stories (1959) e
Letting Go (1962). É ainda um escritor interessado em explorar o folhetinesco
ou à procura do grande romance. O leitor custa se integrar no universo dos
acontecimentos porque, como criança aprendendo a andar, um narrador titubeia sem
saber ao certo como caminhará. Enquanto nos adaptamos ao sobre o que irá
contar, eis outro problema, ele nos oferece um complexo enredamento de
núcleos familiares, cada um, com múltiplas personagens e múltiplos enredos.
Somente quando encontra um dos fios e o elege como principal é que nos situamos
e podemos melhor acompanhar os passos muito precisos da narração que não se
descuida de alinhavar os aparentes fios desconexos do começo. Tudo isso serve para
dizer como este romance constitui um sério exercício de aprendizagem que
resultará o engenhoso Portnoy’s Complaint, apresentado dois anos
adiante.
De alguma maneira, poderíamos ler Quando
ela era boa como um romance que investiga o Complexo de Lucy e tal
exercício, antes de alcançar o comportamental e o psíquico, se preocupa em
oferecer os enredamentos de fabricação da persona. O indivíduo é
percebido como parte numa engrenagem feita ainda da ordem familiar, social e
cultural e de certa predisposição imemorial que ignora ou totalmente desconhece.
Embora situada no período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, a
narrativa recorre àquele tempo quando o interior ainda carrega visivelmente os
resquícios do passado selvagem feito da imposição de brancos contra indígenas. É
uma índia quem oferece o acalanto para pequena Ginny, a irmã por quem Willard
desenvolve um estreito vínculo de proteção que atravessa até alcançar a sua
terceira geração.
Desse passado que abriga o traço
do primitivo, outro aspecto se destaca. É a imagem da mulher submissa,
praticamente incapaz de agir por conta própria, estabelecida sempre como o
núcleo familiar, entretanto, à sombra do braço do patriarca, mesmo que aquelas
condições também imemoriais do herói tenham sucumbido, ou de fato, tenha sido apenas
um subterfúgio para que os homens se mantivessem sob os auspícios da mulher.
Isso significa que através do tecido familiar — Quando ela era boa quer
a princípio ser a saga de uma família num modelo que não pouco remonta ao que
fizera William Faulkner — o romancista examina algumas variáveis da ordem social,
como as fundações de um modelo que, geração após geração melhor aperfeiçoa suas
estratégias de domínio, mesmo quando o discurso do igualitário se faz a moeda recorrente.
O tempo dos acontecimentos neste romance é o do limiar, quando as mulheres são
impelidas para a vida cívica, mas a pergunta que tudo nos suscita é: mudamos
tanto assim ou apenas disfarçamos as práticas primitivas sob o véu do
civilizatório?
Situando-se na pequena cidade de
Liberty, um nome que contradiz integralmente as situações da narrativa, o
narrador se concentra em Lucy. Se os núcleos narrativos estão organizados no
seu entorno, o ponto de vista não está submetido à personagem e se prolonga pelos
acontecimentos de três grupos familiares: os Nelson, da personagem principal; os
Bassart, a família de Roy; e os Sowerby. Este terceiro núcleo se tornará o
principal para a narrativa porque, além de boa parte dos principais acontecimentos
se desenvolverem aí, seu papel na estrutura do romance, funciona como via entre
Lucy e Roy. Ele encontra na casa dos tios o refúgio de alguma maneira desfigurado
na própria casa, pela contínua cobrança do pai para o despertar do filho para as
responsabilidades da vida adulta. É ainda na casa dos Sowerby que Lucy, no
convívio de interesse com Ellie — filha de Alice e Lloyd e prima de Roy —, encontra
algum princípio do conforto familiar, algo que ela desconhece isso, uma vez que
o pai é um bêbado encostado na vida dos sogros, a mãe uma submissa sempre à
espera da radical mudança do marido enquanto preenche o tempo como professora
de piano, e os avós juntos com a mãe uns coniventes com a situação adversa de
Whitey. É com os Sowerby que Lucy faz duas descobertas que mudará
definitivamente o curso de sua vida: a de que todas as famílias são infelizes à
sua maneira; e a existência de Roy, quem desenvolve por ela um interesse
amoroso com consequências catastróficas para os amantes.
Até alcançarmos esse nó narrativo,
o narrador perscruta a infância de Lucy, sua dedicação para alcançar a
universidade, antes, a determinação do avô pela construção de uma família em tudo
distinta da qual ele foge quando vai para Chicago e depois para Liberty City e a
vida sem perspectivas ou excessivamente sonhadora do mimado Roy quando regressa
do serviço militar nas ilhas Aleutas. O descentramento, a fuga e a tentativa de
erguer seu paraíso particular feito das liberdades derivadas de seus anseios,
parece constituir, dessa maneira, numa qualidade que reúne todas essas
personagens ou aquilo que Philip Roth designa como uma recorrência universal da
humanidade, se repararmos em alguns elementos simbólicos recorrentes neste romance,
como a vida dos santos. Numa de suas buscas, Lucy recorre à igreja católica e
se vê envolvida com os princípios da perseverança encontrados em Santa
Terezinha.
Todos os percursos das personagens
de Quando ela era boa encontram-se desviados. Mas isso não é produto de
alguma força misteriosa contra a qual nenhuma vontade humana seja capaz de agir
e sim feito alcançado das suas atitudes ou escolhas. Tudo o que se desenvolve
com os Nelson, por exemplo, é parte da decisão de Willard em trocar a iniciada
vida em Chicago por Liberty City para oferecer os melhores cuidados com a irmã
demente largada pelo pai numa casa para loucos; sem isso, como Myra teria conhecido
Whitey? Este é um acontecimento que reverbera continuamente na vida dos Nelson,
que desfaz a perspectiva de boa família primeiro sonhada por Willard quando foge
de sua terra natal, depois pela neta quando inicia sua vida adulta na saída de casa
para Fort Kean.
Os conflitos neste romance se
organizam em ordem ascendente; suas personagens encontram instantes de repouso
mas não alcançam as soluções definitivas que procuram. Isso porque, talvez não
saibam — e nós tampouco com o movimento de nossas próprias vidas —, esse é o
curso de todas as existências. Mobilizamo-nos para um só fatal destino e é bem
o que se desenha na primeira parte da narrativa: fora de casa, Willard passa em
revista, diante das sepulturas de alguns de sua família, sobre o seu passado e
o retorno de Whitey ao convívio familiar, anos depois de estar preso na
Flórida. A presença dessa personagem é, antes do casamento fracassado de Myra,
aliás essa união é parte nisso, a força principal do dilema familiar. Whitey funciona
como hospedeiro, aquele que se instaura no interior de um sistema, de um organismo,
e enquanto dele se alimenta se multiplica, o decompõe e o destrói.
A imagem do hospedeiro é sugerida pelo
que a avó de Lucy repara sobre a neta pré-adolescente depois do episódio que a
desestrutura indefinidamente: a prisão do pai porque ela, num dos ataques de
Whitey contra Myra, chama a polícia. Para Berta — outra vez a mulher cobrando a
atitude ausente nos homens neste romance, o que não é unânime, mas recorrente —
o gesto de Lucy significa que “Ela está tomando conta da casa”. Mas, a neta se
situa apenas como o ponto adiante do núcleo infestador. Ao justificar que a
jovem ficou assustada com a atitude do pai e por isso recorreu à polícia, Willard
ouve da esposa: “E quem não fica quando aquela besta selvagem resolve atacar?
Aqui, nesta cidade, quando pegavam um homem desses, botavam para correr.” Whitey
é o selvagem, o incontido que, como o hospedeiro, precisa ser extirpado e não cultivado
como age o sogro; enquanto isso não acontece, suas fronteiras se alongam e toda
vez aflora com maior intensidade. Na vida de família que ensaia com Roy e o filho
Edward, a proximidade com os acontecimentos recentes do passado mais as descobertas
da vida de aparência dos Sowerby, fermentam na consciência que se quer correta
demais de Lucy os esporos do pai-doente desenvolvem toda a sorte de infortúnios
que a arrastam para um fim trágico.
Quando se descobre incapaz de
escapar das circunstâncias mais temidas, Lucy inicia sua cruzada individual contra
o mal, primeiro, como todos até então, fugindo, depois, negando, mais
adiante, medindo-lhe forças. A sua luta é agravada pelas condições; sem profissão
e com um filho por criar, suas investidas são, de alguma maneira, resultadas
das contradições que nela se instauram, sem resolução: é coerente livrar-se de
Roy em nome de recompor a liberdade perdida quando se descobre grávida tão logo
consegue escapar de Liberty City ou ao fazer isso ele é quem gozará dos interesses
de liberdade almejados por Lucy? Entre uma possibilidade e outra, ela se decide
que nenhum dos dois podem ser livres; um filho é parte indissociável deles e, mesmo
suspeitando do fracasso, é na família possível que investirá todas as suas
forças, refazendo cegamente, alguns dos passos que condena na passividade do
avô ou na incapacidade da mãe de desvencilhar de Whitey. Sem abdicar do
casamento nascido fracassado e assombrada continuamente pelos fantasmas do passado
continuamente reencarnados na sua própria existência na presença do marido, a
doença-pai se instaura em Lucy como material psíquico de recusa e a impele para
loucura.
Ela não consegue administrar a
realidade; receosa de que acreditar nas coisas é se deixar arrastar para o
mesmo lugar de sua mãe, começa a erguer um mundo outro, fundado na
transparência que não encontra no real sua correspondência, principalmente
porque toda sua atitude visa submeter o mundo ao seu ponto de vista. Instaura-se
um impasse entre o vivido e o que se almeja: ela mesma não pode se desfazer da
gravidez indesejada porque a mãe teria agido dessa maneira a mando do pai, como
acredita; o casamento com Roy não pode ser desfeito para não corresponder com
os motivos detratores dos Bassart e dos Sowerby; Roy não pode se aventurar em
ter um estúdio de fotografia em casa porque repetiria a condição de Myra que deformara
o ambiente da casa com as aulas de piano; e assim sucessivamente. O que ela
julga fracasso de um deve impelir para o seu sucesso, desde que isso não esteja
inferior ao sucesso do outro. No infeliz jogo das competições, é difícil para
Lucy aceitar que o destino da amiga Ellie foi pelo caminho que seria o dela, ou
que Roy possa ser tratado como o gosta de leite com biscoitos recheados ou que
decide qual o melhor lugar para morar considerando o seu conforto numa cama do
seu tamanho ou que se refugie no ninho dos tios Sowerby toda vez que
confrontado pelas relutâncias da esposa.
O narrador de Quando ela era
boa entende a natureza social de Lucy, as implicâncias da família
disfuncional e as artimanhas do patriarcado nesse sentido e nas estratégias de
gerência opressiva, mas se recusa fazer dessa personagem uma vítima do sistema,
porque ela assume a responsabilidade por suas escolhas e chega a cobrar dos
outros a coerência para tanto. Quer dizer, é possível imprimir uma leitura que
considere a protagonista desse romance como produto de determinada ordem social
dominante, mas essa garantia tem curta durabilidade porque, afinal, o indivíduo
não é uma entidade submetida. A questão é que, desde Dom Quixote ou de Madame
Bovary o mundo que se apresenta é aparência, produto dos nossos maniqueísmos.
Lucy não desconhece isso, mas não quer ser uma submetida e quer a todo custo
desfazer os múltiplos que engendram a realidade; esquece-se que não existe o
autêntico da realidade que almeja, que os adultos em menor ou maior grau
esconde dos outros — e por vezes deles próprios — segredos terríveis. Sua grande
incapacidade para compreender os dogmas do catolicismo, por exemplo, não
aceitando a dimensão do imaterial, resulta, na prática, na sua crença profundamente
materialista (e até pessimista) de que os males são nossos e cada um deve extirpá-los
para continuar vivo, o problema é que não o fazemos e não porque não queremos
mas porque os males nos impelem para a existência, da mesma maneira que ela
enquanto rediz que não quer repetir a vida da mãe, não consegue se livrar de
Roy e tudo o que ele significa.
Todas suas crises são despoletadas
pela recorrência do mal chamado pai. Ele sempre regressa e toda vez isso se
manifesta como a derrota terrível para essa Lucy que quer a todo custo se
desvencilhar do passado. Sem saber como agir — nem tudo se encontra ao seu
alcance — resta a alternativa de se lançar contra si própria, contra a família que
tenta construir com Roy principalmente por encontrar nela os resquícios da permissividade
que favoreceu a instauração de Whitey entre os Nelson/ Carroll, na família a
réplica da família negada e no marido as mesmas qualidades do pai, a mentira, a
desfaçatez, a incapacidade para ação… O mundo que ela denuncia é aquele que começa
se reerguer pós-1945, profundamente marcado pelas amarras do conservadorismo,
incluindo determinantes fixadas até hoje e, lamentavelmente, reproduzidas entre
os mesmos jovens que a própria Lucy no seu tempo reconhecia como pouco afeitos
a que as coisas mudem. Todo seu ímpeto parecerá em vão?
Irreconciliável com o seu mundo
porque este se transforma num lugar ainda mais hostil, uma vez que nele
prevalece os valores e os princípios que mais condena, o que resta a Lucy? Sua posição
recupera no nosso tempo a inteireza das heroínas do trágico grego, aquelas que movidas
por um senso de clarividência e justiça se insurgiram contra os modelos que velam
a verdade e ofuscam a inteireza das coisas, substituindo o autêntico pelo
falso, a ação pela tibieza, coibindo nossa capacidade de moldar nosso mundo. Um
mundo de aparência sobre o qual Philip Roth se faz profundo investigador no
restante da sua obra.
_______
Quando ela era boa, Philip Roth
Jorio Dauster (Trad.)
Companhia das Letras, 2018
352 p.
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