No Brasil, ninguém lê Pagu!

Por Renildo Rene

Registros fotográficos de Pagu descobertos em dossiês da polícia francesa revelados pela escritora Adriana Armony.


 
Exatamente 100 anos depois da Semana de Arte Moderna me dirijo à biblioteca da minha universidade, procuro por um exemplar de Parque Industrial e acho somente um único exemplar. Ele está em ruínas, despedaçado e segundo consta minhas pesquisas é uma edição particular de 1933, quase centenária que nem a semana. Não observo nenhum cuidado para que sequer a obra seja enviada para o acervo especial de preservação.¹
 
A verdade é que com o centenário do pontapé inicial do modernismo brasileiro, estou estudando os desdobramentos desse movimento e suas vertentes nos anos posteriores; a disciplina é Literatura Brasileira e junto com a docente e a turma, me debruço sobre as linguagens transformadoras dos Andrades — o Oswald e o Mário —, os romances ditos engajados no decênio de 1930 e todo aquele cenário efervescente que movimentava o país no século XX (principalmente no círculo da elite cultural). Mas surgiu justamente aquele nome no qual a leitura de sua obra não só me provoca pelo seu estilo radical e audacioso, como também pelo já gritante ocultamento de sua figura que permanece em nosso cotidiano. É o mesmo nome que mais tarde iria encontrar naquele exemplar solitário e em farrapos: Patrícia Galvão. Ou simplesmente, Pagu.
 
E quem foi essa mulher que se disfarçou com o pseudônimo de Mara Lobo?
 
— Pagu foi uma “destruidora de lares”, se envolveu com Oswald com este sendo esposo da grandiosa Tarsila do Amaral, então passemos a ignorar sua imagem.
 
— Pagu comprometeu muito o partido político, então façamos dela a primeira presa política da República.
 
— Pagu não teve nenhum compromisso estético com seu livro, então não devemos lê-lo.
 
Quando me deparei com esses pensamentos tão engendrados em boa parte do senso-comum, concluí também que foram eles que, permanente e rapidamente, diminuíram muito a força de Patrícia nos estudos literários. Meu encontro definitivo com essa mulher se deu então através de seu primeiro romance ficcional, Parque industrial (1933) e através dele, surgiu um sentimento de tentar compreender por que esse nome esteve por tanto tempo apagado do que nos contam da revolução artística iniciada no século passado. Talvez esse pensamento de inquietação tenha sido estimulado pela própria leitura da obra, que em sua primeira página já escancara o seu espírito rebelde naquilo que considero a sua passagem crucial:
 
“A ESTATISTICA E A HISTÓRIA DA CAMADA HUMANA QUE SUSTENTA O PARQUE INDUSTRIAL DE SÃO PAULO E FALA A LÍNGUA DESTE LIVRO, ENCONTRAM-SE, SOB O REGIMEN CAPITALISTA, NAS CADEIAS E NOS CORTIÇOS, NOS HOSPITAIS E NOS NECROTÉRIOS.”
 
Incomoda-me o fato de que uma obra tão impactante como a sua seja limitada ao termo “literatura panfletária”, como se fosse meramente uma propaganda de ideias. Não há como negar que no livro estão contidos sim, muitos conceitos que vão de Marx a Engels, de Burguesia a Mais-Valia, porém são termos que a escritora aplica efetivamente bem para construir um enfoque narrativo visando as personagens e suas relações dentro da história, e como se desenvolve a postura política e social delas. Nesse caso, a narração organiza um olhar consciente para uma realidade de um conjunto de mulheres heterogêneas esmagadas por uma sociedade capitalista e patriarcal, vivendo na mais horrorosa miséria.

O exemplar encontrado na biblioteca. Foto: Arquivo Pessoal.


 
São analfabetas, jovens, negras, mães e operárias: todas diferentes da alta-roda feminista intelectual e emancipadora e, por isso, “excluídas por natureza”. Isso é o que Pagu mostra no romance, estabelecendo também sua postura crítica, ao que parece ser uma própria avaliação do movimento que ela circulava — ideologicamente muito revolucionário e praticamente muito supressor.
 
Essa “língua” que Pagu ferozmente assume é uma língua que procura convocar, no sentido mais político da palavra, o leitor a realizar uma incursão pela história de vida da classe operária paulista — singularmente as mulheres, que vivem marginalizadas sob o peso maçante do nascente sistema capitalista na metrópole. Porém, nessa — nossa — história a escritora sai incompreendida: a elite e a crítica literária que circulavam na época se posicionam não só a reagirem negativamente à obra, mas também a reforçarem uma identidade pejorativa sobre uma alma tão envolvente.
 
Todavia, esse simplismo forçado à essa estrela incompreendida de nossa literatura parece ser também uma incoerência absurda para sua época e para a recepção crítica que se tem dela. Nas transformações pretendidas por Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e por não dizer Rachel de Queiroz, há um senso de que esses romancistas do decênio de 30 (mesma época em que Parque industrial foi publicado) se aproximam da abordagem ligada ao projeto ideológico que enfatiza um engajamento político e da ideologia da luta de classes — perspectiva que, particularmente, compreendo tão bem na escrita de Pagu quanto de seus pares (e até mesmo melhor que alguns daqueles autores).
 
Em 1930: a crítica e o modernismo (2000), por exemplo, José Luiz Lafetá discute pressupostos básicos do projeto ideológico e estético enfatizado nesses escritores do modernismo brasileiro. No entanto, na obra, que é renome dentro da crítica nacional, não faz nenhuma menção a Patrícia, mesmo quando o autor chega a citar autores que não são ligados diretamente àquela corrente embora dialoguem com vários de seus traços (inclusive os tons de denúncia social e política).
 
E tudo é um paradoxo muito grande, pois a tensão de novos caminhos sociais na literatura se fazia necessária e constantemente discutida para tais romancistas e, para Pagu tudo não passou de uma enorme perversidade com inúmeras consequências negativas para sua vida pessoal (que não consigo sequer imaginar). Melhor dizendo: como pôde ela ser tão incompreendida como revolucionária em um recorte histórico-temporal tão vanguardista e que pedia revolução nas artes? Parece que essa sensação brasileira de querer efervescência política e não abraçar movimentos “que vêm de baixo” é constante em nossa história.

A edição publicada pela Companhia das Letras, em 2022.



Em um 2022 que tanto se falou sobre revisitar esse movimento e suas iminentes exclusões sociais, as pessoas continuam não lendo Parque industrial e o pior, elas continuam destratando a escritora e sua obra.
 
Repito o nome dela quantas vezes for preciso, sem medo de ser pouco anafórico gramaticalmente em meu texto. Mas é que reduzimos Pagu àquilo que ela já anuncia em seu livro. Reduzimos ela (já em vida) como mais uma mulher humana da estatística que denuncia, que marginaliza o feminino em todos os campos sociais; inclusive na literatura, já que o cenário pouco mudou e permanece o mesmo com a proporção de autoria feminina lançada no país muito inferior ao recorte masculino.
 
Volto à minha afirmação inicial para inquietar o leitor para essa leitura, pois por mais evidente que isso possa parecer, até nos tempos de Pagu a misoginia era escancaradamente criminosa e sua obra, de outra forma violentada. Indago para que nos aborrecemos e nos chateamos para algo que caberia facilmente nessas manifestações virais da internet.
 
Indago para que essa pergunta seja uma retórica e que um dia lembre de nossas injustiças cometidas com uma escrita tão revolucionária:
 
Por que, no Brasil, ninguém lê Pagu?


Notas

1 Após a sua publicação sob o pseudônimo de Mara Lobo, o livro passaria por outras edições: pela Mercado Aberto/ EDUFSCAR (1994); na Coleção Sabor Literário, pela José Olympio (2006); pela Linha a Linha (2018) mais uma edição na década de 1980, e retornou em 2022 pela Companhia das Letras.

______
Parque industrial, Patrícia Galvão (Pagu)
Companhia das Letras (2022)
112 p.
Você pode comprar o livro aqui

 

Comentários

Luís Fagner disse…
Esse é um caso em que nossa deficiência crônica de leitura tem servido positivamente para cumprir o merecido destino que o tempo oferece a determinadas obras. O livro em questão é tão inecessário que você mesmo escreveu escreveu e não disse a que veio.

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