“Nada de novo no front”: monstruosidade e expressionismo no inferno da Grande Guerra
Por Rubén Amón
A cena mais comovente de Nada
de novo no front envolve um duelo de morte entre um soldado francês e um
alemão no labirinto subterrâneo das trincheiras. O adolescente alemão que
protagoniza o filme acaba levando a melhor, mas a vitória não contradiz a
sensibilidade com que atende o soldado moribundo abatido. Trata de acompanhá-lo
no transe da morte. Abraça-o. E extrai do seu casaco os papéis que o
identificam, as cartas e as fotografias da esposa e da família.
A alegoria da camaradagem na
atrocidade da guerra está muito bem refletida no romance original de Erich
Maria Remarque (1929). E proporciona ao cineasta alemão Edward Berger uma
passagem de profundas emoções e extraordinário vigor estético. A monstruosidade
da Grande Guerra pode ser contada a partir de pressupostos expressionistas. E
de um tratamento da imagem que transfere a ideia da matéria. Como se pudéssemos
sentir o cheiro da tinta de uma tela recém-pintada. E como se a forma de
sensibilizar o espectador consistisse em levá-lo pelo caminho da experiência
artística e depois deixá-lo chocado, atordoado.
É uma abordagem original que
explica o magnetismo do filme. Cru, implacável, impiedoso, mas também
subserviente ao propósito do esteticismo. Tão dilacerado quanto um aquelarre
de Goya e como o martírio de uma pintura de Caravaggio. E tão angustiante
quanto a crônica que Ernst Jünger escreveu sobre sua própria experiência nas
trincheiras.
O tenente Stürm, assim
se chamou o livro. E faz sentido evocá-lo porque o escritor alemão conseguiu
fazer com que seu livro sangrasse nas mãos no leitor, tal como acontece com o
filme de Berger. Uma história que mexe com os sentidos porque Nada de novo
no front transmite o fedor da merda, a hemorragia das amputações, a
explosão das minas, o suor dos adolescentes sacrificados, o tremor do medo e a
ferocidade das inovações tecnológicas que precipitaram as mortes de pelo menos
16 milhões de pessoas. Não os bombardeios, os primeiros carros armados, os
morteiros, mas mais ainda os gases letais e o uso atroz dos lança-chamas para
queimar soldados inimigos vivos. E fizeram parte de um apocalipse que Edward
Berger nos conta a partir do medo e de uma estilização tão cuidadosa quanto
abrupta.
A angústia deriva da espessura
estética com que Nada de novo no front rompe o limiar das sensibilidades
anestesiadas. É difícil impressionar o espectador que consome imagens e guerras
com o rotineiro distanciamento. Vimos tantas vezes as trincheiras e os
massacres da Grande Guerra que adquirimos uma perspectiva asséptica, que não mais
nos comove.
Berger nos sequestra do conforto
com a mesma intensidade do romance de Remarque. Ensurdece-nos e nos apavora.
Ele nos suja de lama. Expõe-nos à mandíbula de cavalos mortos, ao sufocamento
das câmaras de gás, à dimensão industrial das enfermarias e dos aleijados. E
usa uma trilha sonora estrondosa e metálica que evoca a música de A guerra
dos mundos (Steven Spielberg) e enfatiza a ferocidade das máquinas de
guerra, principalmente quando os monstros de aço entram em cena para esmagar a
resistência alemã no front ocidental. Ali estava localizado o marco zero do
massacre. Um labirinto de trincheiras onde três milhões de cadáveres foram
consumidos. E onde quase não houve avanços ou retrocessos territoriais em
quatro anos.
O protagonista do filme é o mesmo artífice
da narrativa no romance de Remarque, um garoto de 17 anos que finge ser maior
de idade para se juntar à campanha patriótica da Prússia e depois se significar
numa aventura alucinada que leva as condições de sobrevivência ao extremo e que
desarticula seus ideais. A Grande Guerra foi um moedor de carne. E um
inventário de atrocidades cujo valor monstruoso e exemplar nem sequer impediu
uma guerra ainda mais atroz apenas 21 anos depois, envolvendo exatamente os
mesmos rivais.
Faz sentido lembrá-lo porque o
romance apolítico ou antibelicista de Remarque apareceu em 1929. E porque
apenas um ano depois Lewis Milestone concebeu a primeira — e excelente — versão
cinematográfica. Ganhou duas premiações no Oscar (Melhor Filme, Melhor Diretor),
mas a repercussão do filme e o clamor de Remarque foram desperdiçados em seu
próprio grito.
Ligações a esta post:
>>> Também sobre a Primeira Guerra, Ernst Jünger escreveu Tempestades de aço
* Este texto é a tradução livre para “Sin novedad en el frente:
monstruosidad y expresionismo en el infierno de la Gran Guerra”, publicado aqui,
em El Confidencial.
Comentários