Fronteira — introspecção encontra uma casa
Por Bruno Botto
A obra de Cornélio Penna ficou um tempo fora de edição, era
mais um dos autores que virava tesouro de sebos com edições carcomidas pelo
tempo. Em meados de 2021, a editora Faria e Silva reeditou toda a sua obra, oferecendo
outra uma vez a oportunidade de o público conhecer esse autor pouco conhecido.
Nascido em 1896, Cornélio era natural de Petrópolis, estudou
direito em São Paulo e tinha fortes raízes familiares na zona da mata mineira.
Durante a década de 20, começou a sua carreira como artista plástico no Rio,
onde realizou a sua primeira exposição e trabalhou como ilustrador, gravador,
desenhista e jornalista para algumas revistas. Em 1930 começa a segunda fase da
vida artística de Cornélio, deixa as artes plásticas e escreve o seu primeiro
romance, Fronteira, lançado em 1935.
A década de 30 também era a segunda fase do modernismo
brasileiro predominado pelos romances regionalistas. Literatos de todo Brasil
começam a construir suas histórias com teor de crítica e denúncia das mazelas
sociais do país. Entre os autores dessa geração estavam nomes como Graciliano
Ramos e Jorge Amado, ambos filiados ao Partido Comunista Brasileiro, o que teve
grande peso em suas produções literárias. Por outro lado, autores como Cornélio
Penna e Lúcio Cardoso encabeçavam uma turma de escritores com tramas
psicológicas bem densas e introspectivas. Era uma década marcada pela extrema
divisão política de autores de esquerda e direita.
Fronteira é um romance que se passa numa zona
rural afastada e pobre, com um personagem sem gênero e nome que nos conta a
história de uma casa onde vivem Maria Santa e sua tia Emiliana. Maria Santa
acredita ser algum tipo de entidade religiosa para todos que vivem na região.
“Tia Emiliana conservou, desde então e sempre, diante da
sobrinha, quando se achavam presentes pessoas estranhas ou os empregados, a
mesma atitude reverente e misteriosa. E, dentro em pouco, toda a cidade a
cidade repetia a meia voz que Maria era mesmo santa, firmando-se o seu nome,
que acompanhou até o fim.” (p. 12).
O romance tem uma estrutura quebradiça, capítulos curtos em
formato de diário de um narrador que não se apresenta e não sabemos muita coisa
a seu respeito. Sua participação não deixa marcas, é quase como se fosse um
fantasma revisitando uma casa que tenta a todo custo promover um milagre.
O recorte narrativo embaçado ajuda a promover a confusão e
as lacunas supostamente deixadas pela história. Muitos apontam traços de
narrativas de mistério e gótico na obra; de certo, existem passagens que
flertam com tais gêneros, mas estão mais como alicerces narrativos do que
propriamente elementos definidores da história.
Penna não quer contar uma história linear e com descobertas
de um suspense. O clima angustiante raramente se desfaz, suas personagens
continuam debaixo de um véu e geram ainda mais dúvidas a cada fala ou
acontecimento da narrativa. Sua estética procura desafiar estados mentais,
questionar o real e o imaginário. E por isso é resguardado como um romance
intimista: é uma experiência em um espaço limitado marcada por um
aprofundamento nas memórias, um trânsito pela psique das personagens aberto a
espaços para reflexão e filosofia.
Abordar o psicológico de Fronteira não faz com que
Penna abandone os traços do regionalismo tão popular da década de 30. Lembrando que o autor sempre esteve ligado
com zona da mata mineira e o livro, parece transcorrer em uma área semelhante.
No fundo podemos observar uma estrutura patriarcal antiga,
uma história dos ecos da ignorância religiosa e da pobreza humana. Vide como a
projeção da idolatria de uma possível Santa comove todos os habitantes de uma
cidade que já viveu o seu apogeu de enriquecimento, que mudou o sistema e vive
nos escombros da pobreza.
“Por toda a parte o homem conseguiu por a nu as suas pedras
de ferro, negras e luzidias. E sobre elas construíram suas casas, onde famílias
degeneram lentamente, em cada uma está à loucura à espreita de novas vítimas.” (p. 90).
Degradação moral e de espírito constroem um dos romances
mais inventivos da década de 30, que propôs uma ruptura na estética da época e
ainda conseguiu casar o tema psicológico com uma das maiores vicissitudes
humanas: melancolia e solidão.
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Fronteira, Cornélio Penna
Faria e Silva (2021)
104 p.
Faria e Silva (2021)
104 p.
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