“Esse romance tinha tudo”: uma história oral de Reparação, de Ian McEwan

Por Alice Vincent

Ian McEwan tinha 50 anos quando começou a “rabiscar” em seu caderno o que viria a se tornar Reparação, uma idade que ele reconhece como “perto do pico, para um romancista”. Embora dificilmente se pudesse dizer que ele era um desconhecido — seu romance anterior, Amsterdam, venceu o Booker Prize —, pode-se argumentar que o oitavo romance de McEwan é o seu mais famoso (e, ele admitiu algumas vezes, o seu favorito). Ele vendeu 1,5 milhão de cópias apenas no Reino Unido e foi publicado em 42 línguas. Ele possui uma prateleira e tanto de condecorações — o Whitbread, o Critics Circle e o Boeke Prize entre elas. Quando adaptado para o cinema em 2007, obteve seis indicações ao Oscar, e galvanizou as carreiras de Keira Knightley e James McAvoy. Interpretar a inesquecível protagonista de McEwan, Briony Tallis, confirmou o talento de Saoirse Ronan, então com 12 anos, como prodigioso.
 
E, ainda assim, a despeito de todas essas honras cintilantes, o legado de Reparação é mais profundo do que apenas tornar seu autor um nome conhecido. Quando McEwan começou a publicar ficção nos anos 1970, ele obteve da Private Eye o apelido de Ian Macabro: seus romances eram abarrotados por relatos inabaláveis e detalhados de sinistros desmembramentos, raptos e pactos de eutanásia. Mas Reparação principiava com uma abafada tarde de alto verão em uma casa de campo inglesa enquanto uma garota no limiar da adolescência tentava, em vão, encenar uma peça para o retorno muito esperado de seu irmão. Como disse o The New York Times à época: “eis McEwan, no leme do que parece estranhamente similar ao tipo de romance inglês que os romancistas ingleses pararam de escrever há mais de 30 anos.”
 
Como os leitores viriam a descobrir, Reparação — fundamentalmente uma história de amor com um ardil devastador em seu centro — era igualmente um feito de engenhosidade literária. Ele desfralda seu desespero e desconforto feito uma torneira a pingar: gradual e irremissivelmente, até restar apenas o dilúvio. Um romance composto por três histórias distintas, com uma notável virada no final, Reparação foi aquela coisa rara: um livro devorado nos círculos literários e igualmente vendido aos milhares em supermercados. Quatro anos após o lançamento, ele foi incluído na lista de leitura do exame OCR A de Literatura Inglesa.¹
 
Ele também teve sua própria história singular. Emergindo das ruínas de um desdenhado conto de ficção científica, Reparação foi rapidamente enviado, e em partes, com a crucial seção conclusiva do romance chegando apenas após a produção já ter começado. Ao longo do percurso, McEwan alterou o título no último minuto, e a editora embarcou em uma das maiores sessões de fotos que já haviam feito a fim de arriscar aquela que se tornou sua capa mais duradoura. O resultado foi uma colisão de boa sorte editorial — e um dos maiores livros do século XXI. No centenário da editora Jonathan Cape, e 20 anos após seu aparecimento nas prateleiras, eis como Reparação veio a acontecer, de acordo com aqueles que lá estavam.
 
No final dos anos 1990, o capital de McEwan como autor estava em ascensão — e rápido. Amor sem fim, seu romance de 1997, liderou as listas de best-sellers. Um ano mais tarde, Amsterdam foi lançado e venceu o Booker Prize.
 
Ian McEwan, autor: Em algum momento por volta de 1997, fiz algumas notas sobre o final do século, e sobre olhar para trás e perceber que havia erros que cometemos — as duas Guerras Mundiais em particular, o Holocausto — que jamais poderiam ser corrigidos; que poderíamos tentar corrigi-los, mas o esforço seria prolongado.
 
Dan Franklin, ex-diretor editorial da Jonathan Cape: Ele disse que escreveu o começo do Capítulo Dois, e aquilo foi o início da coisa toda, e o escreveu em algum lugar estranho, como a Costa Rica ou algo assim, enquanto estava de férias dois anos antes.
 
Ian: Isso não levou a qualquer ficção de verdade, mas enquanto estava de férias com meus filhos tive algumas horas e me vi escrevendo quem sabe um parágrafo, talvez dois, sobre uma jovem adentrando uma clássica sala de estar um tanto ornada de uma casa de campo com algumas flores silvestres que acabara de colher, procurando por um vaso, e estava a par de um jovem do lado de fora que era jardineiro. Ela quer e não quer vê-lo ao mesmo tempo.
 
Dan: E você tem a sensação que ele tinha alguma coisa.
 
Ian: Quando cheguei ao final, não fiz nada sobre aquilo, mas sabia que provavelmente havia dado início a alguma coisa.
 
Dan: Há algo com os livros de Ian; eu publiquei muitos, muitos livros com ele. Em dado momento, eles simplesmente ficaram mais e mais rápidos.
 
Ian: Então o Booker foi em 98. Foi Amor sem fim? Não, foi Amsterdam. Eu já estava escrevendo este quando o Booker ocorreu.
 
Peter Strauss, atual agente literário de Ian McEwan: Naquela altura havia um momentum, e com muita razão, para o Ian, que estava escrevendo estes livros extraordinários e brilhantemente compostos. Havia essa excitação e expectativa quanto ao que estava por vir.

Ian McEwan. Foto:  Jenny Lewis

O que iria se tornar o segundo capítulo de Reparação foi, por um breve período, um conto de ficção científica, que McEwan abandonou.
 
Ian: Eu retornei a ele por volta de 18 meses mais tarde, rejeitei tudo, dei-me conta que havia então retornado à minha nota anterior sobre chegar ao fim do século, e que o momento preciso que eu havia descrito — com flores silvestres no vaso — passava-se no pré-Guerra. E, naquele momento, senti-me livre. Reescrevi de súbito o capítulo de uma forma totalmente diversa, e ele então se tornou o segundo capítulo do livro tal como publicado. Escrevi outro capítulo que eu sabia que iria sucedê-lo, que girava em torno da irmã mais nova daquela jovem, Briony.
 
Peter: Creio que ele estava preocupado que se tratasse de uma ideia maluca: a narração, o modo como foi construída, que os críticos não fossem apreciá-la.
 
Ian: Bem no início eu tinha a estrutura, que era composta por três novelas e uma coda, era assim que eu pensava. Uma porção, cerca de 65.000 palavras, passava-se em 1935. Então era 1940, e então somos conduzidos ao finalzinho do século, 1999, altura na qual o leitor toma consciência de estar lendo um romance escrito pela protagonista. E ele termina com as iniciais de Briony. E então chegamos à coda, narrada em primeira pessoa, no presente.
 
Peter: Ele disse, “Deus do céu, pensei, um livro sobre a Segunda Guerra Mundial, ninguém vai comprar algo assim.”
 
Ian: Eu me lembro, quando ainda estava escrevendo, mas me aproximava do final, de dizer ao Dan: “Eu sei que você quer um novo livro meu, mas só para você saber, este livro é essencialmente um livro para escritores. É um livro sobre a imaginação e o que ela significa, qual o poder da imaginação e qual o poder do escritor. E se você conseguir vender 15.000 cópias em capa dura eu ficaria lisonjeado.” E Dan disse, “Oh, ok, tudo bem.” E quando ele leu disse: “Você está completamente maluco. Ele tem todos os ingredientes, não apenas de um livro literário, mas toca em três questões de um livro popular.” Eu disse, “Ora, quais questões?”
 
Dan: Não sei como colocar em palavras, mas foi apenas aquela coisa instintiva. Ele tinha tantos elementos. Mesmo encarando-o de forma completamente cínica: ele tinha O Entreato na primeira parte, tinha um fantástico material de guerra, e então tinha esse incrível artifício metafísico no final. Então você meio que tinha de tudo. E de forma tão lúcida e brilhante que estávamos apenas ronronando.
 
Ian: Eu disse, “oh, muito bem, é por isso que não sou editor”. Eu não fazia ideia.
 
Roger Bratchell, Diretor de Marketing: Esse romance tinha tudo: a opressiva ambientação pré-guerra, a guerra, a virada. Era Ian em estado de graça.
 
Reparação foi produzido com grande rapidez — McEwan o enviou no início do ano, apenas alguns meses antes de sua publicação em setembro.
 
Suzanne Dean, Diretora de Criação, Vintage: Dan me entregou o manuscrito, um daqueles que eram impressos na impressora em preto e branco. Dan havia dito, “Nós vamos publicar isso, é melhor você começar a lê-lo já.” Creio que o manuscrito não estava completo àquela altura, Ian ainda estava escrevendo.
 
Roger: Dan anunciaria em algum momento: “há um novo do Ian para chegar. Ele vai me enviar em breve.” Por volta de uma semana mais tarde ele chegaria, completamente acabado, perfeito em todos os sentidos. O seu “trabalho” seria lê-lo por inteiro no final de semana. A euforia com esse livro era palpável.
 
Ian: Entreguei ao Dan os primeiros três capítulos, mas eu ainda estava escrevendo a coda. E eu não havia dito a ele, ou se disse ele havia se esquecido, que eu precisava viajar e dar uma palestra do outro lado do mundo, na Ilha de Vancouver. Eu estava correndo para terminar as derradeiras 8.000 palavras, e havia conseguido, tarde da noite, antes de pegar o avião na manhã seguinte. Enviei tudo por correio para o Dan de Oxford.
 
Pascal Carris, copidesque: Eu me lembro que aquele clichê editorial sobre haver um burburinho interno real sobre um manuscrito era, nesse caso, absolutamente verdadeiro. Todos haviam ouvido dizer que esta era uma história muito poderosa e dramática. Todos queriam pôr as mãos em uma cópia e lê-la o mais rápido possível.
 
Ian: O livro já havia circulado entre o pessoal da Cape. E todos o haviam lido, pensando que era a coisa toda, e estavam felizes com ele. Não faziam ideia de que havia mais por vir! Eles já tinham dito, “Nós amamos, é maravilhoso, o jeito que termina.” E eu disse, não, não, tem mais, está a caminho. Comecei a pensar, quando estava no avião, bem, talvez eles não gostem desse desdobramento, onde tudo que ocorreu na verdade se mostra como não tendo ocorrido.
 
Roger: Sempre havia uma virada característica. Então você lia o livro em busca “do momento”.
 
Ian: Felizmente, eles gostaram ainda mais.
 
Roger: Havia uma espécie de assombro silente quando as pessoas haviam lido o manuscrito — a gente simplesmente sabia que o livro seria descomunal.
 
O time trabalhou com rapidez na produção do romance, submetendo-o a edições e revisões. Enquanto isso, Suzanne, Dan e Ian puseram-se a trabalhar na capa de Reparação.
 
Suzanne: Era meu segundo ano no emprego. Eu não havia trabalhado em uma edição em capa dura com Ian, e este era obviamente um título importante. Eu me lembro da euforia na editora, o absoluto, “ó-meu-deus, isso é simplesmente incrível.” E o ritmo acelerado de trabalho em tal projeto descomunal.
 
Ian: Minha primeira ideia foi, “Nós bem que gostaríamos de uma foto dessa garota, deitada de bruços na biblioteca.”
 
Suzanne: Dan me disse após eu ter iniciado a leitura que Ian queria a foto de uma garota lendo na biblioteca. Foi a instrução que recebi. É uma obra de época, então começamos a procurar fotografias originais do período correto, com a aparência adequada. Não havia absolutamente nada para encontrar. Procurei em todas as bibliotecas. O que então nos fez pensar, “Ok, precisaremos de uma sessão de fotos.”
 
Dan: Eu estava envolvido verdadeiramente a fundo com a capa de uma forma que não costumo me envolver.
 
Suzanne: Dan veio junto porque era uma sessão realmente grande, ele normalmente não viria.
 
Dan: Nós tínhamos essa ideia de como a capa deveria ser, que era Briony deitada no chão em uma biblioteca à moda antiga com paredes revestidas de madeira. Nós então procuramos bastante por uma casa de campo, com uma biblioteca, com paredes revestidas de madeira, que pudéssemos usar para uma sessão de fotos. Achamos esta casa, acho que fica perto de St Albans.
 
Suzanne: Eu me lembro que todos entramos nesse imenso microônibus, e partimos para o outro lado da M25, para algum lugar como Milton Keynes. Para essa incrível casa de campo.
 
Chris Frazer-Smith, fotógrafo: É perto de Hemel Hempstead, é chamada de Gaddesden Place.
 
Suzanne: Creio que essa sessão de fotos foi o equivalente a quase um pequeno filme. Foi assim que pareceu. Eu nunca havia ajudado a organizar uma sessão tão grande quanto essa — jamais.
 
Chris: Tínhamos profissionais de cabelo e maquiagem, dois assistentes, um cara cuidando da iluminação de acordo com minhas instruções porque precisávamos iluminar algumas coisas... não era uma equipe muito grande.
 
Suzanne: Nós precisávamos achar logo a garota e ela precisava ter a aparência correta. Nós havíamos feito uma pré-seleção e, uma vez que a garota fosse escolhida, ela teria as medidas tiradas para as roupas. Mandamos fazer o vestido porque ela precisava ter o tipo certo de vestido, e era mais rápido. Saiu caro fazer assim, mas valeu a pena no longo prazo.
 
Chris: A modelo que posava como Briony era muito segura sem ser rude, e era muito boa em receber instruções. E penso que ela achou toda aquela coisa de usar um vestido de verão, fazer o cabelo, levemente divertida.
 
Suzanne: Ela saiu usando seu vestido branco, ela parecia tão à parte, tão imaculada, o período estava correto, tudo estava correto.
 
Chris: Foi há vinte anos, então eu usei filme, e usei filme reverso. Fotografamos em preto e branco todas as vezes, com câmeras de tamanho médio. Fotografamos no jardim nos fundos da casa; tiramos fotos dela em pé, com os braços cruzados, parecendo muito mal-humorada.
 
Suzanne: Passamos a manhã inteira fotografando inúmeras poses na biblioteca, e então fomos lá para fora depois do almoço e ela ficou ali parada no campo e há algumas fotos dela na relva alta que ficaram ok. Não havia uma que se destacasse entre elas. Naquela altura, a da biblioteca seria a melhor foto.
 
Suzanne: Então vi os degraus, e pensei, “quero os degraus também”. No livro, tudo passa a girar de imediato nos degraus perto da ponte.
 
Chris: Eu disse, “Vamos sentar nos degraus.” Como todas as crianças daquela idade, depois de um tempo ela ficou entediada e inquieta, e isso funcionou muito bem para nós. Eu normalmente teria esperado que a nuvem cobrisse o sol, mas pensei, que droga, vou simplesmente fotografar — já estávamos lá provavelmente por umas boas sete horas naquele momento, então tínhamos noção de que ela não ia aguentar por muito mais tempo. Ela estava literalmente me dizendo, “Senhor, conseguiu tirar a foto?”
 
Dan: O dia se arrastava, arrastava, arrastava. E a garota estava ficando mais e mais irritada.
 
Suzanne: O sol começava a se pôr atrás de algumas árvores, e ela começava a rabiscar com uma pedra no chão.
 
Chris: O modo como ela estava sentada nos degraus, eu podia ver. Acho que gastei dois rolos de filme preto e branco naqueles degraus, e pensei, “isso é ótimo, há algo de realmente bonito nessa sequência de quadros”.
 
Dan: Ali estava ela, sentada nos degraus, e batendo enfurecida uma das pernas, ela só queria sair dali, e Suzanne e eu estávamos parados, vendo isso por trás do ombro dele, mirando a cena.
 
Suzanne: Eu me virei para o Chris, e o Dan estava parado atrás do Chris e eu assentia, e ele fazia como que “é isso aí”, e nós todos tivemos a mesma ideia ao mesmo tempo, porque ela era tão genuína. Ela não estava pensando na gente, ela apenas pensava “estou entediada”. E dá para ver a forma que a cabeça dela se apoia na mão, ela se inclina para a frente e o pé está para cima, ela simplesmente está em um mundo todo dela. E essa é a diferença, aquela foto. E tão perfeita. E a gente sabia, e todos se voltaram e olharam uns para os outros, e foi como um arrepio, a gente simplesmente sabia que era essa a foto. Foi incrível.
 
Dan: Acho que é a única vez que isso aconteceu comigo: literalmente, ficamos de cabelo em pé por conta daquela foto. Dava para saber na hora que era a certa. E de fato foi, e seria uma das grandes capas.
 
Chris:  E eu disse, “acho que conseguimos”.
 
Primeira edição de Reparação, (Jonathan Cape, 2001)


 
Após a sessão, reduziram-se as fotografias a algumas poucas selecionadas. A primeira exibição delas foi inusual: em um jantar editorial para outro autor da Cape.
 
Ian: Tenho memória de que foi em algum jantar. Pode ter sido para Julian Barnes, pode ter sido para Martin Amis, não consigo me lembrar.
 
Dan: Se houve um jantar provavelmente foi para o Julian. Não creio que oferecemos um jantar para o Martin em todo o meu tempo na Cape. Festas sim, mas não jantares.
 
Ian: Dan e Suzanne apresentaram um envelope com quatro fotos.
 
Suzanne: Eu não estava lá! Dan estava, e ele apresentou isso e no dia seguinte foi a meu escritório e disse: “Você conseguiu quatro estrelas douradas de todos ontem à noite.” Eu fiquei meio que, ó meu Deus. Dá para imaginar? Mostrando todo aquele serviço. Mas eu era nova, você sabe.
 
Dan: Suzanne trabalha de forma extraordinária. Para os grandes autores ela prepara diferentes sobrecapas, manda imprimi-las e as dispõe abertas sobre a mesa e faz com que o autor venha e veja uma por uma.
 
Suzanne: Eu estava com as grandes caixas amarelas de fotos sob o braço, eu me lembro de colocá-las no chão e de entregar ao Ian as próprias sobrecapas, aquelas grandes e maravilhosas sobrecapas.
 
Dan: Ela e eu estaremos lá, e saberemos qual queremos que eles escolham.
 
Suzanne: Acho que naquela altura nós realmente, realmente queríamos a foto nos degraus, mas ainda estávamos tentando persuadi-lo. A gente mostrava para ele, tipo, “Olha como os degraus estão maravilhosos! A gente podia colocar essa na parte de trás, levemente arredondada, e na frente esta aqui.”
 
Dan: É quase certo que ele vai negar isso, mas a gente passou um sufoco para vender a ideia para o Ian, que não estava convicto. Mas a gente soube de cara, e é muito raro isso acontecer.

Ian: Eu devo ter embarcado. Nós todos concordamos que aquela nos degraus era a escolhida.
 
Roger: A magnífica sobrecapa da Suzanne Dean — simplesmente uma imagem brilhante para se trabalhar. Intrigante, evocativa de um tempo e uma era que transmitiam glamour e mistério, que te faziam sair do seu caminho.
 
Peter: O fato de a sobrecapa ainda ser usada — o que isso te diz? Vinte anos depois é ainda a sobrecapa. Ainda é boa.
 
Primeira edição brasileira de Reparação (Companhia das Letras, 2002)


 
O trabalho se aproximava do fim quando McEwan se deu conta de que algo precisava ser mudado — o título
 
Dan: A grande questão foi que, quando ele chegou, o romance ainda era chamado Uma reparação.
 
Ian: Eu quase sempre mostro meus rascunhos finalizados para o historiador Tim Garton-Ash. Ele me ligou a propósito, e disse: “Tem uma coisa que eu realmente preciso pedir que você mude, e não quero pedir isso por telefone, estou indo à sua casa. Agora.”
 
Peter: Acho que Timothy Garton-Ash sugeriu ele que tirasse o “Uma”.
 
Ian: Ele morava ali na esquina então ele veio, e não sei se ele se pôs de joelhos, mas disse: “Por favor, mude o título”. Ele disse, “É desajeitado na língua”. E eu disse “Bem, eu só queria ser um pouco modesto”. E ele disse: “Não seja. Por favor, chame de Reparação.”
 
Dan: Ian ligou e disse: “Mude o título”. O que é algo menor, mas incrivelmente significativo.
 
Ian: Eu liguei para o Dan e disse, ele já foi para impressão? Eu já devia ter corrigido as provas.  E ele disse, “sim...”, muito cautelosamente. “O que você precisa mudar?” Eu disse, “O título agora é Reparação, não Uma reparação”. E o Dan disse, “ufa, graças a Deus”.
 
Dan: Dava para ver na hora, era a coisa certa a se fazer.
 
Ian: Dan não me disse que não havia gostado.
 
Roger: Para aumentar a mística em torno do livro veio o pedido do autor para mudar o título de Uma reparação para Reparação. O que isso poderia significar? Voltamos correndo para o livro em busca de sentido. Algumas das cópias datilografadas deviam ter o título original — não me lembro, mas seria algo colecionável. A minha, infelizmente, foi parar nas mãos de um digno livreiro.
 
Reparação foi publicado em 20 de setembro de 2001 e foi rapidamente indicado para o Booker Prize.
 
Peter: Acho que ele foi distribuído no verão. Eles não fizeram provas, porque não havia tempo. Isso levou à agitação e barulho em torno do livro.
 
Roger: A gente decidiu fazer cópias datilografadas encadernadas quando o livro estava perfeito. Isso foi antes dos dias das redes sociais, então a questão era fazer que as pessoas lessem o livro.
 
Ian: Certamente houve uma festa de lançamento. Você tem que perguntar para o Dan.
 
Dan: Eu não consigo nem lembrar onde ocorreu a festa de lançamento.
 
Ian: A Cape deu muitas festas boas. A natureza das festas de lançamento é que elas geram uma espécie de amnésia — se você se lembra de uma delas é porque não prestou.
 
Peter: Havia agitação. Havia agitação pelo fato de Ian ter escrito outro livro, no momento que terminou as pessoas queriam compartilhar seu entusiasmo e alegria.
 
Dan: Eu lembro que as resenhas foram incríveis e tudo foi maravilhoso.
 
Ian: Houve algumas resenhas adoráveis. A maioria de nós, romancistas, está acostumada e publicar um livro e levar um belo chute aqui e algum elogio ali, e você precisa absorver tudo ao longo do processo e da mistura das coisas. Este livro, pela primeira vez, teve certa unanimidade.
 
Peter: Ele saiu no outono e dominou as listas, dominou o Booker e, apesar de não ter vencido, ele certamente foi o livro.
 
Roger: Eu não consigo me lembrar de fato do dia da publicação, mas me lembro das resenhas e das vendas. Eu me lembro do ranger de dentes quanto ele não venceu o Booker.
 
Edição de Reparação na série Clássicos Contemporâneos (Everyman's Library, 2014)


 
Sem muita demora, conversas acerca de uma adaptação estavam em andamento. Reparação, o filme, foi estrelado por Keira Knightley e James McAvoy, e forjou a carreira de Saoirse Ronan. Foi indicado a seis Oscars, venceu um, e obteve mais de £84 milhões de bilheteria.
 
Tim Bevan, produtor cinematográfico, Working Title: Deparei-me com Reparação por volta de 2002; bastante cedo porque era um sucesso e já havia uma corrida pelos direitos de adaptação. As duas combinações de diretor/roteirista que estavam sendo discutidas eram Richard Eyre e Christopher Hampton, e Tom Stoppard e John Madden. E Richard e sua equipe vieram até nós, basicamente, para dar suporte. Creio que o [produtor] Robert Fox também era parte daquele grupo.
 
Ian: Tomei uma decisão por volta de 1996 de me afastar de roteiros, e é por isso que, quando Christopher Hampton foi mencionado, fiquei muito satisfeito.
 
Stephen Durbridge, agente cinematográfico de Ian: É muito fácil dar uma ligada para um produtor cinematográfico e dizer: “Eu tenho esse romance maravilhoso do McEwan, gostaria de ler?” Eles costumam ir com tudo, mesmo. Mas, nesse caso, Robert Fox foi uma das primeiríssimas pessoas a lê-lo e ele então foi conversar com a Working Title.
 
Tim: Então encomendamos um roteiro. Sabíamos que seria complicado, porque ele é conceitualmente literário em seu centro. Como torná-lo interessante enquanto filme?
 
Stephen: Foi um filme difícil de fazer porque o assunto era bastante sério e não possuía apelo comercial evidente — não era um thriller ou uma comédia. Acho que houve muita disputa acerca do nível de orçamento e por aí vai.
 
Ian: Todas essas conversas iniciais eram sobre a dificuldade de traduzir essa ideia de se as coisas aconteceram ou não aconteceram para o cinema.
 
Tim: A gente realmente investigou como fazer esse truque literário funcionar em termos cinematográficos. No meio de tudo apareceu Anthony Minghella. Ele se sentou com Joe [Wright, diretor] e disse, “Eu não vou escrever nada aqui mas vou fazer com que você responda intelectualmente cada pergunta que eu fizer sobre a história e o roteiro.” Anthony havia feito O Paciente Inglês, então em termos de adaptação literária ele era um dos melhores do mundo. O roteiro foi completamente de Christopher, mas ele realmente precisou daquele aporte de Anthony para a ideia emergir.
 
Stephen: Eu fui a uma exibição do filme bem no início e havia pessoas da indústria lá e os distribuidores. E eu perguntei: “O que são todos esses cartões na mesa?” E lá estava a data de lançamento do filme em mais ou menos 15, 16 territórios. E pensei comigo, “É, mandamos bem nessa”.
 
Tim: A questão é, grandes romances, é bastante estressante transformá-los em filme porque o público literário tem uma boa visão do que aquilo pode ser. Eu me lembro de mostrar o filme para o Eric [Fellner, produtor] e ele saiu e disse, “Não mude um quadro”. Isso nunca acontece.
 
Ian: Quando você tem um filme que contou com um orçamento fortemente comercial, você pode estar certo de que o romance será arruinado. E nesse caso acredito que a coisa foi feita com muita sensibilidade. Penso que Joe fez um trabalho incrível. Ele é um diretor muito talentoso.
 
Tim: Eu nunca soube se Ian gostou ou não do filme para falar a verdade. Ele meio que foi seguindo a toada. E vendeu um monte de livros por conta do filme.
 
Ian: Um enorme número de leitores chegou até mim por conta do filme. Então foi uma experiência completamente nova para mim, estar nas gôndolas dos supermercados.
 
Dan: Eu amei o filme. Revi em algum momento durante a quarentena e sigo amando.
 
Roger: O filme foi a cereja do bolo.
 
Stephen: Alguém pensou, meu deus, se vendermos os direitos aqui alguém vai ganhar um Oscar? Não. Mas quando você fica sem fôlego por conta de alguma coisa como se deu quando se vê o filme pela primeira vez, então você começa a pensar nisso.
 
Pôster de divulgação do filme a partir de Reparação (2007)


 
Vinte anos se passaram e Reparação vendeu mais de 1,5 milhão de cópias somente no Reino Unido. Seu verdadeiro legado, contudo, é difícil de ser mensurado em número de vendas.
 
Dan: Reparação foi o ponto de virada completo. Até então, Ian tinha essa reputação de sombrio, por conta de seus primeiros livros e contos. Mas esse não era daquele jeito. Em Reparação foi como se, de certa forma, o sol tivesse saído. E ele saiu. O livro certamente mudou a recepção crítica de Ian e as expectativas do mercado livreiro sobre ele.
 
Peter: Há pouquíssimos livros que entram na consciência cultural pública e se tornam totêmicos. Reparação é um desses.
 
Suzanne: É o que se pode chamar de capa icônica. Há algumas que se acham tão entrelaçadas ao livro e é essa a verdadeira definição de icônico. Que sorte a minha ter estado lá para trabalhar nela. É uma das experiências mais incríveis desde que entrei lá, ao longo de todos esses anos.
 
Ian: Eu não sei como seria ter um Reparação toda vez que você publica alguma coisa, mas não é algo garantido para os escritores de literatura. A maior parte de nós tem um livro. Há sempre um grau de serendipidade quando se começa um livro e pareço ter tido baldes disso com Reparação.
 
Notas
 
1 OCR (Oxford, Cambridge e RSA Examinations) é uma das principais bancas examinadoras e entidades adjudicantes do Reino Unido. A grosso modo, seria algo como se em apenas quatro anos Reparação houvesse sido incluído em uma lista de leitura obrigatória para um vestibular ou concurso. [N.T.]
 

* Tradução livre de Guilherme Mazzafera para “‘This novel had everything’: an oral history of Ian McEwan’s Atonement”, disponível aqui
 
 

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