Por Sérgio Linard
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Silviano Santiago. Foto: Louis Monier |
Movimento muito comum no meio
literário, quando se tem a intenção de elogiar um livro tido como clássico ou
como importante, é o de dizer que este mesmo livro “permanece atual”. Para o
bem ou para o mal, esta alcunha de constante atualidade de uma obra já é há
muito explorada por editoras, posto que os manuais escolares e de etiqueta das
redes sociais fazem com que um livro seja mais vendido se trouxer uma discussão
que ainda se faça corrente. Por vezes, os releases das editoras chegam a
dizer que um determinado livro de literatura contemporânea já nasce como um
clássico justamente por trazer um tema que, vejam só, é atual.
Informação parecida com essa é a
que se encontra na quarta capa da edição mais recente de Em liberdade,
de Silviano Santiago. Transcrevo: “Publicado pela primeira vez em 1981, este
trabalho ímpar de ficção mostra toda a potência de Silviano Santiago e continua
absurdamente atual em sua crítica a um Estado que oprime e desumaniza [...]”.
Neste caso, a casa editorial optou pelo uso do advérbio “absurdamente” para dar
mais ênfase — beirando a hipérbole — para aquilo que o texto, segundo os
editores, tem de mais atrativo para aparecer em destaque naquele espaço. A
crítica ao Estado desigual do Brasil que o livro de fato apresenta permanece
atual e isso seria um dos vários motivos que poderiam levar o leitor a se
interessar pela obra. Suspendo essa questão aqui, mas voltarei a ela um pouco
mais adiante, antes, é importante que falemos sobre a obra para que o debate
sobre essa “absurda atualidade” seja melhor alicerçado.
Antes disso, é importante destacar
que a obra recebeu o prêmio Jabuti de melhor romance no ano seguinte ao da sua
publicação. Em 2022, a Companhia das Letras deu novo projeto gráfico e publicou
o romance acrescido do conto “Todas as coisas à sua vez”. A obra está dividida
em duas partes, formadas por anotações de um diário ficcional de um Graciliano
Ramos também ficcional após sua saída da prisão em 1937. O enredo parte de um
acontecimento verídico, a prisão do escritor e ex-prefeito de Palmeira dos
Índios para construir um extenso diário de anotações dos primeiros dias e
acontecimentos após esse autor se encontrar Em liberdade. É de valioso
destaque perceber que a difícil tarefa de criar um diário fictício com base em
fatos reais, de uma pessoa cujos dados biográficos são de acesso relativamente
fácil, posto sua vida pública, foi minimamente pensado e executado de forma
portentosa, ainda que com pequenos desalinhos em certos pontos.
“Vou construir o meu Graciliano
Ramos.” É esta afirmação de Otto Maria Carpeux que serve de epígrafe da obra e
ajuda a demonstrar que aquilo que se lerá a seguir é um trabalho
milimetricamente pensado. O autor do romance em mãos, neste caso, Silviano
Santiago, coloca-se como o editor que recebeu as anotações diárias de
Graciliano Ramos diretamente das mãos do fiel guardião daqueles manuscritos.
Para tanto, Santiago escreve um prefácio narrativo ambientando e apresentando o
percurso para que estes textos chegassem ao estado em que o leitor final o
encontra. Esses prolegômenos do romance que, na verdade, já são parte integral
da narrativa, são tão bem executados que, caso o leitor passe despercebido do
aviso na página anterior de que o livro se trata de uma ficção, é capaz de
entender que Em liberdade é um texto autobiográfico; é possível que
acabe entendendo que a narrativa a seguir seja um texto não artístico. Mérito
de Silviano Santiago por ter conseguido arquitetar essa estruturação de forma
tão perspicaz, pois, em alguns trechos do livro, a diluição dos acontecimentos
reais nos criados pelo autor é tão natural que parece incontornável a intenção
de verificar até que ponto aquilo que se lê é real ou não. E então tem-se
início a apresentação dos escritos da primeira parte do diário com anotações de
14 de janeiro de 1937.
Após o período na prisão, na volta
para o estado de liberdade, em seu diário, Graciliano Ramos passa a relatar
como são os primeiros dias na casa de seu amigo e companheiro de atividade
literária Lins do Rêgo. Aqui, na situação de uma pessoa que precisa de favores
para manter-se vivo e com acesso a mínimos confortos, a aclimatação é um pouco
conturbada, mais por motivos pessoais do que externos a si; é essa conturbação
que motiva o escritor a registrar diários como se aquelas folhas funcionassem
como encontros terapêuticos, desabafando sobre os medos de retornar à prisão
ou, ainda, sobre como aquilo pode ter comprometido sua vida e sua carreira para
sempre. Nessa conflitante situação, encontramos um narrador em primeira pessoa —
afinal, trata-se de um diário — que não se reconhece no próprio corpo, haja
vista o sentimento de liberdade ser algo novo para aquele que passou por
diversas negações anteriores:
“Não sinto o meu corpo. Não quero
senti-lo por enquanto. Só permito a mim existir, hoje, enquanto consistência de
palavras. Estas combinam-se em certas frases que expressam pensamentos meus
oriundos da memória afetiva e criados pelo acaso.”1
Essa negação de sentir o próprio
corpo é bem comum na construção de personagens que se percebem em situações
moralmente tidas como erradas, tanto por julgamento externo quanto interno. No
caso desse Graciliano Ramos ficcionalizado, a continuidade da leitura de seu
diário revela que tal sentimento o ocupa porque só agora, com a potência de
novamente poder comunicar-se livremente, ele pode voltar a sentir agonias para
além das triviais e volta-se para as perturbações de cunho existenciais,
questionando-se até mesmo sobre seu corpo. Nas primeiras páginas do diário
temos, então, uma demonstração dessa agonia entre o sentimento de estar livre e
o medo de retorno à prisão ou, em outras palavras, o questionamento sobre a
prisão permanecer, em certo grau, marcada no corpo deste narrador.
Os capítulos seguintes, então, são
construídos em menor quantidade de páginas, mas com um andamento contínuo das
datas que se seguem até o dia 14 de fevereiro de 1937. Alguns capítulos,
inclusive, recebem o título de “Sem data” ou simplesmente do dia da semana em
que foi escrito: “Segunda-feira”, nestes dois casos, o editor fictício
registra, em nota de rodapé, a possível data, para o primeiro caso, ou a data
exata, para o segundo. Essa escolha, é verdade, não parece contribuir muito
para o andamento da narrativa, sendo algo até indiferente; trata-se de uma
tentativa de materializar as inconstâncias das anotações de Graciliano Ramos,
mas isso é algo que o próprio texto afirma por si, logo, essa alternância nos
nomes dos capítulos é um ponto de pouca contribuição para o romance. Ainda
nessa primeira parte, o leitor poderá perceber que há uma focalização parcial
no mundo externo da produção literária e de crítica aos traumas políticos que
envolvem os principais autores da época. Trechos de um sentimento de culpa ou
de autossabotagem sobre como Graciliano observa que seus livros podem ter feito
mais sucesso somente por conta de sua prisão política são integrados a longas
reflexões sobre como o fazer literário e da arte de modo geral é uma atividade
difícil no Brasil ou que raramente rende retornos financeiros aos seus
envolvidos.
Volto, aqui, ao ponto de reflexão
sobre a “absurda atualidade” da obra. A temática de que o Estado brasileiro é
regado ou fundado em falhas e em corrupções é, de fato, algo que permanece
atual, mesmo com o passar de muitos anos. São poucos e raros os avanços vividos
neste setor e, quando se tem alguma modificação positiva, o país parece
enveredar em um caminho marcado pelo passado e pelo retrocesso. Uma pena de ver
e de viver. Este ponto que, de fato, é denunciado pelo livro de Santiago, é o
que ilustra de maneira mais fácil a temática ainda atual de um livro publicado
há mais de quarenta anos. No entanto, convenhamos que se este for o único ponto
que justifique essa alegada atualidade, a contribuição do livro, para o debate,
seria diminuída, especialmente em tempos como os atuais em que se espera —
erroneamente — das obras de arte uma função no mundo das coisas
práticas.
Quero destacar, então, que o livro
traz uma discussão cuja reflexão é tão atual quanto a destacada pela editora na
quarta capa, mas que tem sido abafada, constantemente, pelos discursos
político-partidários que sustentam os ditos formadores de opinião do país. Se
você me concede a honra de ler as resenhas que publico neste espaço, já deve
saber que uma reflexão constante em meus escritos está diretamente relacionada
com a importância do pensamento sobre “como” um tema é retratado em uma obra,
para além das reflexões sobre o “o quê”. E Em liberdade pude encontrar um
narrador que faz coro a essa minha questão e que destaca, em suas reflexões
diárias, uma forte preocupação, desde o ano de 1937 (mas que data de muito
antes, sabemos), que segue atual no Brasil: os caminhos que a produção de obra
de arte tem tomado para poder ocupar lugares de reconhecimento. Ao
refletir sobre sua própria construção literária, o autor demonstra o medo, como
falei acima, de que seu texto esteja recebendo reconhecimento não pela
potencial qualidade artística, mas sim pelo entorno que cerca o escritor e os
acontecimentos políticos no país. Essa preocupação espraia-se, inclusive, para
a arte de modo geral, uma vez que Graciliano confessa ao seu diário como os
acontecimentos de premiações, de críticas elogiosas ou negativas estão
diretamente relacionados a envolvimentos políticos daqueles que escrevem e/ou
publicam os livros. Parece atual, não é mesmo?
Essas reflexões, também cabe o
destaque, ganham mais fôlego na primeira parte do romance, porque a escrita
delas ocorreu enquanto o narrador estava hospedado na casa de Lins do Rêgo,
sempre registrando sentir-se em uma situação de vulnerabilidade e de não
pertencimento. Como o anfitrião era, ele próprio, um escritor e recebia
constantemente visitas de outros escritores, aquele ambiente colocou em larga
perspectiva o frisson que envolve a produção literária brasileira. Essa
perspectiva é focalizada na primeira parte juntamente com as reflexões internas
do narrador-autor em estado de liberdade.
É nessa primeira parte que
encontramos, ainda, um ponto que destaco como uma falha formal do romance de
Silviano Santiago: um inesperado – negativamente falando – mau uso do gênero
diário em prol da construção do gênero romance. No rastro dos pensamentos de
Perrone-Moisés2, sabemos que o gênero romance é conhecido por ser
capaz de modificar-se conforme a necessidade do autor e da obra que se tem em
mente. Também é de amplo conhecimento que o uso do gênero diário para a
construção de romances é um expediente bastante comum. No entanto, para os
dois, ainda que múltiplas sejam as experimentações, possibilidades e mutações,
essa plasticidade não é ilimitada. Explico, portanto, onde encontra-se este mau
uso: com intuito de alicerçar seus argumentos sobre as dificuldades da
convivência com os amigos literatos após sua saída da prisão, o narrador-autor,
Graciliano Ramos, passa a reproduzir em seu diário citações diretas dos
discursos proferidos pelos amigos em mesas de jantar e em rodas de conversa.
A alimentação de um diário é algo
que envolve sentimentos, memória e escolhas, todas elas imbrincadas com a
subjetividade daquele que se propôs a alimentar esse caderno. Não é comum,
porém, que se tenha, neste tipo de texto, uma grande disposição de cenas
narrativas, com recorrência a reprodução de considerável quantidade de discurso
direto, afinal, a memória humana costuma guardar falhas também consideráveis
quanto a essa reconstituição. Mas, na construção deste romance, o leitor terá
um diário com páginas e mais páginas em que o gênero diário só é percebido no
cabeçalho das páginas iniciais dos capítulos, porque há, ali, uma data. O texto
em si é um romance comum, com narrador, diálogos, quebras de expectativas e
desfechos. Este fato, ressalto, só se torna um problema não pelo teor do
diálogo, mas porque o texto de Em liberdade acaba por não cumprir um
critério estabelecido pelo próprio autor: o de ser um diário. Graciliano,
em meados desta primeira parte, faz um destaque: ele diz saber que um dia
aqueles escritos serão publicados como livros, por isso a riqueza de detalhes.
O julgamento se isto é suficiente para amenizar ou justificar o desvio do
gênero cabe, então, ao leitor. Parece-me, porém, que a construção de um diário
poderia ter sido mais fiel à própria proposta do livro.
Isso posto, falemos da segunda
parte. Aqui o narrador-autor, Graciliano Ramos, já se encontra em um quarto de
pensão onde morará, está mais voltado a pensar em si e mais preocupado com as
exigências laborais para manter-se na cidade; o foco das anotações diárias está
no processo de feitura de um texto para ser apresentado à editora. Uma vez que
o sentimento de não pertencimento ao local de morada parece, aos poucos,
superado, afinal, ele não está mais “de favor” na casa de Lins do Rêgo, o
narrador consegue relatar melhor seus próprios sentimentos de incerteza, de
medo e de felicidade do que conseguiu na primeira parte do romance. Neste caso,
o desejo de sair — bastante recorrente na primeira parte — é ocupado pelas
“inspirações” para escrever e o narrador confronta suas próprias contradições e
ambiguidades, questionando a capacidade da literatura em lidar com questões
complexas da história e da identidade. Estamos, então, em uma parte mais
metalinguística.
A metalinguagem ajuda-nos a
entender como aquele narrador-autor enxerga a construção de uma obra literária,
passando por um ponto comum quando se trata de pensar o fazer artístico: “de
onde vem a inspiração?” No caso dessa segunda parte, Graciliano propõe-se a
escrever um conto sobre como teria sido a verdadeira situação da morte do poeta
brasileiro Cláudio Manuel da Costa. Para tanto, o autor ficcionalizado busca
informações que comprovem sua hipótese de que o suicídio do poeta foi forjado e
começa a conversar com outros colegas escritores, frequenta bibliotecas e,
principalmente, passa a sonhar com os acontecimentos a serem por ele narrados.
Graciliano Ramos descreve, nessa
parte, que sua visão do fazer literário estaria ilustrada na imagem de uma
pessoa que salta de um trampolim para um mar que é repleto de informações sobre
a obra a ser escrita. Naquele mar, o autor fica submerso, vindo à superfície
ocasionalmente para retomar o fôlego e, então, continuar seu árduo trabalho.
Esse mergulho profundo, porém, só pôde ocorrer quando o narrador se encontrou Em
liberdade, após os dez meses de prisão, porque, agora, a simples
sobrevivência aos casos de injustiça deixou de ser uma questão.
“Há dias saltei do trampolim. Há
dias mergulhei. Retenho a respiração por dias seguidos; retive-a enquanto não
explodiam os meus pulmões. Não aguento mais a pressão da água. Tenho de voltar
à superfície para respirar.
Quando mergulhar de novo, Cláudio
já existirá na folha de papel em branco, onde jogarei as suas palavras [...]
Graciliano redige, mas quem escreve é Cláudio.”
É interessante observar que o
ficcional Graciliano Ramos faz com Cláudio Manuel da Costa o mesmo movimento
que o real Silviano Santigo fez com o real Graciliano: metamorfoseia-se nele e
todo o romance começa a dialogar com sua própria estrutura, demonstrando essa
preocupação formal que, embora tenha falhado em detalhes da primeira parte,
recompõe-se com exímia qualidade na segunda. Neste livro, as reflexões acerca
da vida e Graciliano Ramos (o real), do poder opressivo do Estado, dos limites
e dos horizontes da obra de arte são articulados para construir um romance rico
em detalhes e em reflexões existenciais, próprias de uma pessoa que esteve
presa injustamente e que compreende a injustiça vivida.
O livro parte de um processo
ocorrido em um Estado alienante para questionar este mesmo Estado e demonstrar
que suas bases já apontavam para essa situação no presente de 1937, de 1981 e,
infelizmente, de 2023. A absurda atualidade alegada pela editora é real, mas
não é, como disse, a única justificativa para a leitura desta obra. É, talvez,
a menor delas, isso porque o pensar sobre a Literatura de modo geral é uma
proposição que o livro consegue alcançar com maior maestria, aproximando-se
mais das bem-sucedidas obras do mestre Graciliano Ramos.
Notas
1 Todas as citações do romance encontradas neste texto foram retiradas de: SANTIAGO, Silviano. Em liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
2 In PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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Em liberdade, Silviano Santiago
Companhia das Letras, 2022
296 p.
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